terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A noite expira e o pai está em alvoroço

 

A noite expira e o pai está em alvoroço. Conta as notas e sobe ao meu quarto. Depois, descemos a ladeira, no fim de agosto. Vamos sob o aroma das uvas silentes; vamos com as gotas do nevoeiro caindo dos olhos dos cardos; vamos com os caminhos de baba dos caracóis arrastando-se nas parras; vamos com o relógio suspenso nas sete e meia da manhã, a hora do silvo do comboio que passa por entre uvas, a este, e por entre pinhais e campos de milho, a oeste; vamos com as revoadas das andorinhas no alto dos postes de tensão. Acordam, de fronte para nós e no interior dos carros, homens que passam para as praias deste domingo para desfrutarem as últimas vagas de sol. A estrada sinuosa está imobilizada ao fundo da cidade. Os postes de iluminação iluminaram, durante a noite, a rua erma. O eucalipto e as heras verdes, na margem da estação, ameaçam o céu inexpugnável. Burilamos a brita e entramos na sala do guiché da estação, onde o pai diz a um adido sorumbático e tresandando a óleo queimado: – Bom dia, senhor. Um bilhete e meio para a Pampilhosa do Botão. O homem esbugalha os olhos pretos e as pestanas brancas, mira-me de alto-a-baixo e, após um breve instante de silêncio, diz: – Não tem consigo o bilhete de identidade do seu neto? – Olhe que nem me passou tal coisa pela lembrança! Sabe como é, as pressas, viemos a pé da Póvoa!Ó amigo, desta vez passa, mas para a próxima veja lá se traz o bilhete consigo! As moedas giram e os bilhetes giram, o pai arrecada-os na carteira, desculpando-se de que nunca mais voltará a acontecer tal coisa, e, depois, sentamo-nos sob os ponteiros negros de um relógio de parede redondinho e gigante como uma lua. O comboio de oeste estaca fragorosamente na linha e um casal de idosos cheio de cautelas, pé ante pé, desce os degraus metálicos, lamuriando-se de que a idade é um fardo, que era assim a vida, que a cabeça bem quer, mas as pernas já não aguentam. Uma bandeira vermelha enrola-se no braço de um ferroviário, na travessia, e, no lado oposto, um outro fato azul manobra a agulha para o comboio que chegará daqui a nada de Coimbra. Subimos, cautelosamente, para o comboio, absorvendo o ar da manhã, e acomodamo-nos nos bancos surrados. Entretanto o comboio de este chega e detém-se ao lado do nosso. Arrancamos, por fim, preguiçosamente, aos soluços, das caieiras de silvas, nos fornos de cal, e seguimos o silêncio das uvas rumo à estação da Pampilhosa do Botão.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...