quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

POESIA DO ANTROPOCENO


Meu prefácio ao livro de Daniel Gonçalves, «Elogio da Tristeza»  (Nona Poesia, Ponta Delgada). que acaba de sair. O poeta, que vive em Santa Maria, escreveu versos com base na maior erupção vulcânica que conhecemos:

A Terra tem ocasionalmente grandes fúrias. Uma das maiores, talvez a maior dos últimos dois mil anos, foi a explosão do Monte Tambora, numa ilha da Indonésia, ocorrida em Abril de 1815. O evento foi classificado no índex de explosividade vulcânica com o grau máximo (sete), um grau acima do da grande explosão de Krakatoa, em 1883, também na Indonésia, e muito acima da erupção da Urzelina, em 1808, na ilha de S. Jorge, nos Açores, que foi das maiores de sempre em Portugal. Morreram, directamente pelos efeitos da megaexplosão de Tambora ou indirectamente pela fome causada pelas subsequentes alterações climáticas, mais de 70 000 pessoas (sem contar com as vítimas de epidemias que advieram, de tifo, na Europa, e de cólera, na Ásia). O material vulcânico expelido, que excedeu os 175 quilómetros cúbicos de volume e ascendeu a mais de 40 quilómetros de altitude, dispersou-se rapidamente pelo globo, uma vez que a atmosfera não conhece fronteiras. Na Europa e na América do Norte, o ano seguinte, 1816, ficou conhecido como o “Ano sem Verão.”

O planeta sofreu grandes mudanças e a arte também. Na literatura, foi no “Ano vem Verão” que nasceu Frankenstein, da imaginação da inglesa Mary Shelley (que então só tinha 18 anos), confinada, numa villa à beira do Lago de Genebra, com o seu namorado e futuro marido, o escritor Percy Shelley, com Lorde Byron e com o médico John William Polidori (que na mesma altura escreveu a primeira história de vampiros, muito antes do Drácula). Em Yunan, na China, mais perto do vulcão, estava o poeta Li Yuyang, que pôde testemunhar as enormes perdas de colheitas,  a fome e o desespero dos camponeses. Nas artes visuais, as pinturas dos ingleses John William Turner e John Constable, e do alemão Caspar David Friedrich, modificaram-se com o aparecimento de nuvens escuras e de vermelhos no céu. O céu passou a estar coberto de nuvens escuras e os pores-do-sol passaram a ser dantescos. Em 2007, um grupo de meteorologistas investigou quantitativamente (analisando a razão vermelho/verde nas imagens digitais do céu) a relação entre as representações pictóricas em centenas de quadros pintados ao longo de quatro séculos e os eventos vulcânicos, tendo concluído que existe uma relação íntima entre geologia e artes: quando os vulcões  despejavam o seu material piroclástico para a atmosfera, logo mudavam as cores do céu nas telas. Disse Turner, aqui citado por Daniel Gonçalves: “A minha actividade é pintar aquilo que vejo, e não aquilo que sei que lá está”. Isto foi muito antes de Picasso ter dito: “Pinto as coisas como as imagino e não como as vejo.”

O poeta Daniel Gonçalves, natural de Zurique, que não fica muito longe do Lago de Genebra, e residente na ilha de Santa Maria, no mesmo arquipélago que viu as erupções das Urzelinas, escreve aquilo que imagina, pois não viu o “Ano sem Verão”. Os seus poemas em “Mil oitocentos e dezasseis” mostram que o vulcão Tambora continua hoje metaforicamente em actividade,  ao provocar  explosões na mente do poeta. Os seus versos são tensos e dramáticos, como se espera da escrita ditada pelas fúrias da Terra, mas, ao mesmo tempo, rendilhada e elegante como fios de lava que escorrem pela montanha. Gonçalves tem já um bom número de volumes e de prémios, e este livro, dentro de um livro maior, Elogio da Tristeza, vem confirmar a força da sua erupção literária. Talvez seja a geografia vulcânica dos Açores a ditar o vigor poético dessas ilhas, tão nítido em poetas como Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Coreia, Emanuel Félix, J. H. de Santos Barros e João de Melo.  A poesia geológica de Gonçalves, que reside na ilha com a história telúrica mais antiga, fez-me lembrar Vitorino Nemésio, que, em Limite de Idade, nos deixou notável poesia biológica.

Vejamos curtos excertos que são significativos dos quatro “andamentos” em que se divide o canto gonçalviano “Mil oitocentos e dezasseis”, esperando despertar o apetite para a leitura integral. No primeiro, sobre Tamboro: “um ano sem verão, uma vida sem sol, que me importa a grande sombra, se me faltas tu (…)”. No segundo, sobre a génese de monstros no lago suíço: “lago de Genebra”, como dar vida a um monstro, de que chão/ arrancar, um barro daninho, de que peito, uma/ costela falsa, de que água, de que vinho, as partes/ sólidas, que hão-de falar, de que espectro de// deus, de que tábua de poesia, de que margem de/ lama, como pôr de pé este monstro, à luz destes/ relâmpagos, desta névoa sibilante, lembrando os/ fantasmas, o arquipélago dos corvos, (…). “ No terceiro, sobre a pintura inglesa com alterações cromáticas: “eu, joseph mallord william turner, culpado de/ viver no céu, e esconder-me em terra, de lamber/as cores, antes de as entregar ao tempo, de pagar/ adiantado, pelo ilusionismo dos meus pincéis,// culpado de dar corda à poesia, e às tentações/ da carne (…).” E, por último, no quarto andamento, sobre a tragédia agrícola chinesa: “o poeta encarcerado no langoroso poema da/ ruína, cravando os dentes felinos da metáfora, no/ útero gelado do céu, o poeta a conduzir o dragão/ furioso, a ver se a poesia atordoa o pesadelo, e// quebra as pesadas pranchas da miséria, enquanto/ a caligrafia vacila (…).”

A explosão de Tambora foi uma das maiores do Holoceno. Mas hoje vivemos, para muitos cientistas, no Antropoceno, um tempo em que as alterações climáticas não resultam de fenómenos naturais, mas sim da acção humana. O ano de 1816 mostra-nos o que podem ser os anos daqui por duas ou três décadas. Embora a sua inspiração remonte ao Holoceno, Daniel Gonçalves é um poeta do Antropoceno. A sua poesia, enraizada no passado, é, sem dúvida, do presente, alertando-nos para um futuro funesto que ainda estamos a tempo de prevenir. Cito Ricardo Reis:  “Uns , com os olhos postos no passado,/ Vêem o que não vêem: outros, fitos/ Os mesmos olhos no futuro, vêem/ O que não pode ver-se (…).” A poesia tem o supremo dom de tornar o tempo transparente.

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