"A idolatria foi condenada por três religiões diferentes – e nem sempre convergentes – como um dos piores pecados que um ser humano pode cometer. A Bíblia, a Tora e o Alcorão convergem nisso sem a mais pequena reserva. O homem que idolatra não admira com fundamento: adora com fanatismo e vê, nos que ponham reservas a tão aquecida paixão, um inimigo arrogante, um desmancha-prazeres e um convencido. Quiçá um herético ou um infiel a abater. A idolatria renega o equilíbrio, a saúde mental e o sentido crítico.
Sobre a idolatria, o grande
dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, disse várias coisas saborosas, entre
elas, esta: “O selvagem dobra-se diante ídolos de madeira e de pedra, o homem
civilizado, diante de ídolos de carne e osso.”
A nossa vida intelectual,
depois de quarenta e seis anos de democracia e de muitas décadas de saudável
pedagogia libertadora de um António Sérgio, vive ainda no comprimento de onda
da mais provinciana e infecunda idolatria, como se torna evidente com a
histeria obituária que por aí se despenha, de cada vez que se assinala o
passamento de um vulto de algum modo mais destacado, no nosso meio cultural. A
falta de perspectiva e de aconselhável comedimento que então nos assola é
simplesmente assustadora. Uma avaliação honesta, modesta, comedida, e fora das
ejaculações mais intemperadas é considerada inveja, mau feitio e
desmancha-prazeres.
O cronista A, o romancista
B, o poeta C, o filósofo D são, no mínimo, verdadeiros gigantes, só que ninguém
dá por eles, nos verdadeiros areópagos. Há nesta loucura não tão mansa como
isso algo de muito doentio: uma espécie de sobrecompensação para a nossa
pequenez e relativa pouca relevância internacional. Debita-se para aí uma
ladainha de Bandarra, com promessas férvidas de triunfos que nos compensem de
infortúnios pretéritos.
Escrevemos então o melhor
romance dos últimos cem anos, um poema tão grande como os Lusíadas e temos, entre nós,
o melhor filósofo dos últimos três séculos
ou mesmo de sempre. E fazemos uma festa com grande espalhafato, que só
não nos torna mais ridículos porque ninguém, lá fora, dá por isso.
Na África do Sul, na língua
Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande
porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português,
um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele.
O pior das idolatrias é que
são um terrível entrave ao progresso do conhecimento. Este sempre se fez de um
necessário acolhimento à contradição e ao encontrar sucessivo de melhores
respostas para as nossas perplexidades. A admiração não faz mal, mas o
embevecimento é de mau aviso. Além do mais, o idólatra tende a reduzir o
diâmetro do foco da sua atenção: só vê o idolatrado e nada mais à sua volta ou
para trás, numa espécie de “criacionismo”
que a ciência de há muito rejeita.
Para terminar, direi que o
Portugal de Bento Caraça, de Aniceto Monteiro, de Aurélio Quintanilha, de Tiago
Oliveira, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Jaime Cortesão, de Raul Proença,
de José Régio, de Rui Luís Gomes, de Abel Salazar, de Jorge de Sena e de tantos
bons argonautas da Seara Nova não
merece que lhe suceda um Portugalinho idólatra, provinciano, unânime e
contente.
Alguém dizia que um
Professor é um cavalheiro de opinião diferente. Um verdadeiro pensador, um
verdadeiro investigador, um verdadeiro artista criador é também isso mesmo: um
cavalheiro de opinião diferente. A idolatria não acolhe a opinião diferente e é
sempre um triste sinal de atraso.
Por mim, enquanto o vigor me
não abandonar, terei sempre muito orgulho em pertencer à tribo dos cavalheiros
de opinião diferente. Até porque, mesmo com a minha provecta idade,
não quero ficar parado".
1 comentário:
Fugir para onde? Todas as religiões têm imagens, estátuas, objetos, livros que idolatram. Idolatria é idolatria, não importa o foco. A validade do que não é considerado idolatria é baseada em quê?
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