(continuação da entrevista começada em
https://dererummundi.blogspot.com/2020/12/entrevista-eduardo-lourenco-por-jose.html)
— Pensar Portugal, a Europa e o Ocidente: Passado, Presente e Futuro —
“Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis.
O caos cultural do Ocidente, neste momento, e inexpugnável. Até já
a teoria divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa
a ganhar adeptos.”
JEF – E como é que é olha a integração de Portugal na União Europeia?
EL – Portugal não tinha mais nenhuma hipótese, nem Portugal nem os outros
países da Europa, da Europa dividida. O movimento globalizante intereuropeu
foi tao forte que ninguém podia ficar de fora desse apelo das grandes nações
para se reagruparem de forma a terem algum papel na nova configuração do
mundo, desenhada depois da Segunda Guerra Mundial. O acontecimento mais
importante na ordem política, e em todas as ordens, foi a nossa adesão oficial
e a nossa entrada na Europa.
JEF – Acha que foi o acontecimento mais importante destes últimos 30 anos?
EL – Determina uma parte da nossa história enquanto país. Nós sempre estivemos
na Europa. Mas estivemos na Europa a título em que cada nação está, em
luta com as outras, dividida. Desta vez, entramos para um espaço que sempre
aspiramos integrar, e depois consideramo-nos um pouco marginalizados pela
marcha geral das nações mais evoluídas da Europa. Entramos realmente na Europa
com benefícios imediatos; não foi a ideia utópica “vamos para a Europa,
vamos para a Europa, e estamos encantados”. Não. Começamos a receber imediatamente
benefício, uma ajuda que, de outro modo, seriam necessários anos
e anos de trabalho nacional para que pudéssemos fazer o que fizemos em pouco
anos, sobretudo no consulado do então primeiro-ministro Cavaco Silva e da
presidência de Mário Soares.
JEF – E qual é o seu projeto para a Europa? O senhor professor é federalista e pela
união dos povos e nações? Qual é o seu ideal europeu?
EL – Nenhuma das hipóteses, em termos práticos. A mais fácil de realizar seria
um tipo de estado confederativo, uma grande Suíça na Europa. A hipótese
federalista supõe sempre uma coisa federal e esta muito longe de ser o caso. A
Europa vai-se fazendo, empiricamente, mas quanto mais voluntarismo se mete
nessa cultura, mais ela naufraga. Colocam-se questões, começam a surgir todos
os problemas, depois há aqui uma coisa que impede a Europa de se fazer,
que é a reticência inglesa. A Inglaterra não quer que esta outra Europa continental
realmente encontre a sua unidade. A Inglaterra ficaria sem protagonismo.
JEF – Neste esforço de pensar Portugal e a Europa, e Portugal inscrito na cultura
ocidental, há quem tenha mantido sempre a preocupação de que a Europa não
perca o sentido das suas origens, das suas raízes greco-romanas e judaico-cristãs.
EL – O que e ainda uma temática atual, suscitadora de polemica, mas não tanto
quanto deveria suscitar, no que respeita a inscrição, no texto da falida Constituição,
da referência a essas raízes da cultura europeia. Não querem impor a
democracia, porque a democracia grega tinha escravos, não querem impor o
Cristianismo, porque é uma religião, mas não é a única religião, não impõem o
Islão, pois está à margem, e a Europa nunca se definiu em termos islâmicos. Em
suma, não querem impor nada, e daqui a pouco a Europa não existe.
JEF – Em seu entender, no quadro do tratado constitucional, seria importante inscrever o reconhecimento das linhas identitárias da Europa?
EL – Sim, pelo menos para ter um referente cultural, para sabermos minimamente
quais as nossas raízes culturais e mentais. Fala-se muito nos valores europeus,
mas ninguém sabe defini-los, ninguém está de acordo sobre esses valores.
Em última análise, a definição moderna de Europa, a partir da Revolução
Francesa, como o continente dos Direitos Humanos, fica clara, na aparência,
mas vasta demais. Não se pode apagar a fundamental herança da tradição humanista
que vem dos tempos greco-romanos e da raiz judaico-cristã.
JEF – Considera que uma das razões do malogro da Constituição Europeia foi essa
tendência, essa corrente iconoclasta, que se impôs, no sentido de apagar uma memória
segundo a qual era importante estar lá presente? Esse apagamento representará
uma espécie de atentado à própria identidade europeia?
EL – Sem uma ideia mínima do que foi a Europa, ou do que quer ser, não sei
muito bem que Constituição será a sua. Deve haver o mínimo de inscrição axiológico-
política que dei na os contornos dessa entidade histórico-mítica que é a
Europa.
JEF – Não considera que actualmente, nesta urgência de “Repensar a Europa”, há
um défice de presença de sábios, de humanistas, e um excesso de tecnocratas frios
e um pouco vazios de cultura? Isto não tem levado a esta indefinição europeia?
EL – Há, sobretudo, uma hegemonia da perspetiva política, no sentido da urgência
política, das soluções, como dizem os franceses, a là petite semaine.
Não há realmente grandes pensadores europeus neste momento, ou, se há, não
são ouvidos. A Europa está repleta de pensadores que meditaram, que têm belos
livros sobre este continente e sobre esta união, mas não são eles que estão
à frente da tecnocracia político-económica que domina a Europa em construção.
A Europa precisava de uma paixão, e essa paixão não existe.
JEF – Portanto, urge que se volte a recuperar a paixão pela Europa para que ela
possa ter futuro e possa ter uma presença significa cativa e regeneradora no mundo...
EL – O paradoxo é que a Europa não se faz, mas esse obstáculo interno que
a Europa cria a si própria tem feito com que o nacionalismo, não sob a fórmula
do século XIX, se tenha reavivado. O que está vivo neste momento e o desejo
e a vontade de cada uma das componentes da Europa se afirmar na sua plenitude
identitária. Há deficit de um pensamento europeu que seja globalizante,
porque cada uma das nações parece querer representar por sua conta essa
“inalcançável” Europa...
JEF – É uma espécie de exorbitação, fora de época, de um nacionalismo que já
passou.
EL – Não se pode ignorar o facto de o lugar da Europa no mundo ter mudado.
Antes, era a Europa que situava o mundo e agora e o mundo que situa a Europa.
A nação imperial por excelência de um novo tipo é a América. A Europa, agora,
tem os mesmos problemas que tinha no passado cada uma das suas nações
que tendia a hegemonia. A Franca, que durante tantos anos foi uma espécie de
referencia paradigmática para uma parte da Europa, e hoje uma quissanje de
debuxei-me odre, não de primeira grandeza.
JEF – Mas essas velhas nações imperiais parecem continuar a aspirar, têm saudades
do tempo em que o foram...
EL – Claro. Mas nenhuma nação e de primeira grandeza, provavelmente, nem
os Estados Unidos o são agora. Só que cada nação quer, de algum modo, reivindicar
essa grandeza perdida.
JEF – Voltemos agora a outra questão, que é a questão do tempo da sabedoria, da
idade da sabedoria, da velhice. Podemos dizer que o professor Eduardo Lourenço
é um ancião, tem tornado a sua velhice fecunda, e, na sua idade, é realmente um
exemplo de homem que continua a trabalhar, que continua a pensar. Como encara
a velhice?
EL – O problema é curioso. Tenho-me ocupado muito desta questão, a questão
do tempo, mas sempre vivi como se o tempo não contasse, numa inconsciência
absoluta.
JEF – Considera que é inconsciente?
EL – Absolutamente.
JEF – Mas no meio dessa inconsciência tem produzido muita consciência.
EL – A inconsciência é a definição última da infância, sempre pressupondo
que o tempo não existe. Sei que existe, que é mesmo a única coisa que existe,
mas comporto-me como se o tempo realmente não existisse, porque e uma
mascara como outra qualquer, a qual realmente não se pode fugir – ninguém
foge. Nós estamos inscritos no tempo, nós ardemos no tempo, expressamos
no tempo, nos consumimo-nos no tempo; mas nos não podemos objetivar essa
coisa, porque isso somos nos mesmos. Nós somos como uma chama que arde
e não podemos pôr a mão na própria chama. Portanto, partimos para outros lugares,
para outro sítio.
JEF – Mas deixe-me dizer isto, que é interessantíssimo: o senhor professor tem
dito, em várias entrevistas, que tem vivido a sua vida de forma quase inconsciente,
mas, entre os homens aqui em Portugal, os sábios, os pensadores, tem produzido
fundamentalmente consciência sobre a nossa cultura. Como é que vê esta contradição?
EL – Essa pode ser a leitura dos outros. Digo que sou inconsciente, mas trata-
-se de uma inconsciência de que sou consciente. Mas isso pelo olhar dos outros
e outra coisa, não e da minha responsabilidade. Isso é o olhar dos outros. Nos
somos também o olhar dos outros, provavelmente, nos somos, nos começamos
por ser o olhar dos outros. Nós nascemos no olhar. O primeiro olhar, quando se
nasce, e o olhar materno, naturalmente, ou paterno, ou os dois juntos. Nós nascemos
no olhar dos outros; quando chegamos ao nosso próprio olhar, já passou
muito tempo, já passou o tempo mais importante. Quando nos acordamos
para nos próprios, já tínhamos sido vistos, já estamos inscritos no olhar daqueles
que nos cercam.
JEF – Interessantíssimo. O olhar dos outros dei nê o nosso passado, sem dúvida.
Ainda um tema que não coloquei à sua consideração: falando do tempo, do futuro
de Portugal, agora está muito em voga a questão dos grandes portugueses, e sendo
o senhor um grande português...
EL – Mas sou pequenino, sou minúsculo!
JEF – Entre tantos portugueses, tantos pensadores, se tivesse de escolher figuras
marcantes da cultura portuguesa, grandes portugueses que o marcaram, quem é
que elegeria?
EL – Acho que se tivesse de escolher um português, escolheria Alexandre
Herculano.
JEF – Alexandre Herculano? Porquê?
EL – Porque Alexandre Herculano é o primeiro português de um Portugal novo,
do primeiro Portugal que não efectua uma ruptura com o Portugal de sempre,
com o Portugal antigo, de que ele vai ser o historiador, que ele e que vai criar;
em última análise, criou o Portugal antigo, o discurso do Portugal antigo. E ao
mesmo tempo é um homem que tem uma concepção daquilo que é o horizonte
de inscrição nossa, quer dizer, o nosso cristianismo, já com uma componente
inconciliável entre a exigência moderna de liberdade e a exigência, mais antiga,
de uma ortodoxia, com menos lugar para essa exigência.
JEF – É o homem de charneira, que faz a síntese entre o passado e o presente.
EL – É um homem de charneira, e o que ele inaugurou não acabou ainda.
JEF – Como é que dei me, em duas linhas, Portugal? Aliás, a sua obra, quase toda,
gira em torno da tentativa de dei mir Portugal.
EL – Portugal, como a Torre Triangular dos Barbelas, é um objecto sem termo
de comparação. É algo de tão insólito que só se pode comparar a Torre da Barbela
do meu amigo Ruben A. É isto: é um produto da História, é um produto de
certo tipo de sociedade, embora tenha uma identidade tão densa, tão profunda,
é uma espécie de uma ilha, como se vivesse como uma ilha. E os portugueses
são ao mesmo tempo geograficamente isolados, são margens, sobretudo
em relação a Europa. Mas, na verdade, os portugueses estão na margem e consideram
ao mesmo tempo que estão no centro do mundo. Somos uma espécie
de Robinson Crusoe.
JEF – Só uma pergunta indiscreta: sente orgulho em ser português?
EL – Sinto orgulho em ser português quando um olhar, por exemplo, um olhar
do estrangeiro, um olhar diferente, põe em causa aquilo que nos somos, a nossa
História, os nossos valores, a nossa cultura. Mas não um orgulho especial.
Teria provavelmente o mesmo orgulho se fosse chinês. O chinês deve ter um
orgulho de tal ordem que, para ele, outro país realmente não existe. Não faco
ideia do que seja o orgulho chines, no presente, e no futuro também não se
sabe. Tenho uma expressão muito ambígua de orgulho. Mas, se tivesse de escolher
outra vez um lugar de nascimento, não escolheria outro.
JEF – Outra pergunta importante que tenho de lhe fazer, agradecendo a sua
paciência: editou um livro, famoso e muito interessante, intitulado As saias de
Elvira, onde refle este sobre um tema interessante, que está a tornar-se fraturante na
sociedade portuguesa, que é a questão do casamento. É uma das questões mais
interessantes, retomando um artigo dos anos 60, de O Tempo e o Modo. Neste
sentido, como é que olha o casamento?
EL – O que penso do casamento está escrito nesse artigo. Na sociedade que é
nossa, que nós herdamos, o casamento é a solução ao mesmo tempo humana e
social mais coerente que se encontrou para perpetuar uma espécie, em termos
que não são da simples natureza. E isso significa que o casamento é um artificio,
é um artificio como toda a sociedade realmente é um artificio. E, nesse capítulo,
é um desafia a todos os que embarcam realmente nessa aventura, porque a
natureza está sempre contrariando. O casamento foi, sobretudo, digamos,
uma instituição sobrenaturalizada pela sua inscrição na esfera religiosa, como
uma obrigação de fidelidade, que é uma fidelidade de que a natureza não dá
exemplos, ou raros.
JEF – E foi de certo modo a insustentabilidade da possibilidade do casamento como
instituição perene que deu origem à necessidade de ser transcendentalizada,
para ser depois perpetuada.
EL – Penso que o tipo de casamento que triunfou na sociedade ocidental, depois
do Cristianismo, é um dos responsáveis pelo dinamismo e pelo dramatismo
desta civilização ocidental; quer dizer, é uma solução que obriga a uma invenção
permanente de si própria, justamente na medida em que ele não está inscrito na
natureza: e um desafio o que se faz a si próprio. Por conseguinte, o casamento é
sobretudo a realização desse diálogo, é a coisa mais dramática e mais sublime,
quando ela de facto se proporciona.
JEF – Abordemos agora a análise que faz, na sequência da reflexão que outros
pensadores a nível mundial têm feito, sobre a identidade da cultura ocidental, a
queda ou o crepúsculo dessa cultura hegemónica do Ocidente. O senhor professor
tem um livro de título muito sugestivo, A morte de Colombo, e que também é um
jogo de espelhos que analisa a relação da Europa com a América, nomeadamente
a América Latina, e a evolução que essa mesma Ibero-América está a ter num
movimento interior de uma certa negação do pai, de complexo de Édipo, de não
reconhecimento ou de rejeição do legado identitário da cultura colonial europeia.
Podemos falar um pouco dessa sua reflexão em curso?
EL – Com prazer. O Ocidente esteve sempre em crise. A história do Ocidente
e uma história de crise. A própria palavra Ocidente significa ca qualquer coisa que
cai, como Hegel a glosou. A civilização segue o trajeto do Sol, desde o Oriente,
palavra tao reveladora que a Maçonaria recuperou, que e donde vem a Verdade;
donde vem o Sol, vem a Verdade. A Europa teria sido um ponto de transição
onde o Sol se manteve durante muito tempo, e depois esse Sol também conheceu
o seu ocaso. E uma metáfora de tipo cosmológico. A ideia de crepúsculo do
Ocidente surge no famoso título do Oswald Spengler, um livro de 1923, sobre
A queda do Ocidente. A “queda do Ocidente” e um discurso próprio de um europeu.
É um alemão que, diante da catástrofe da guerra civil, da catástrofe que foi
a Primeira Guerra Mundial, pensava que a Europa caminhava fatalmente para
a sua extinção, num processo semelhante ao da queda do Império Romano,
mas desta vez com uma queda mais rápida. Este é um diagnóstico de europeu.
Esta refle exão, que aparece nas entrelinhas pelo menos, desse livrinho chamado
A morte de Colombo, versa sobre uma morte diferente. O morrer do Ocidente é
ser subalternizado, é perder o lugar cimeiro que foi o dele. Por exemplo, Fernando
Pessoa considerava ainda que a Europa era o mundo inteiro. Todo o mundo é
Europa para Fernando Pessoa. A Europa fora para todo o sítio e estava em todo
o sítio. As marcas de modernidade em toda a parte tem selo europeu, e isto começou
connosco, com a chegada de Francisco Xavier ao Japão. Em escassos 70
anos tudo mudou. Porem, esta morte de Colombo e a rejeição do nosso discurso
sobre a História como actores, por excelência, dela, fundamentalmente, como
criadores do mundo moderno, como inventores do mundo moderno no sentido
próprio da palavra, como descobridores do Novo Mundo. Ora, essa descoberta
do novo mundo é-nos negada pelos descobertos. Agora são os descobertos que
dizem “vocês nunca nos descobriram”: isso é uma má leitura.
JEF – Polémica essa suscitada pelas comemorações dos Descobrimentos...
EL – As comemorações da nossa gesta imperial, ou eurocêntrica, de descobridores
do mundo terminaram; para nós e para franceses, ingleses, holandeses,
embora sejam menos comemorativos do que nós. No nosso caso, por detrás
esta a gesta crista da evangelização. Agora dizem-nos: não só rejeitamos
essa vossa pretensão de que precisamos de ser descobertos e evangelizados,
mas também nos dizem que devemos enrolar as nossas bandeiras, lembrar
a história em casa, mas sem a impor extramuros. Quando se celebrou, em
1892, o centenário da descoberta da América, a Espanha fez uma festa grandiosa,
festa espanhola e, indiretamente, festa europeia. A Espanha estava a seis
anos do fim desastroso do seu império em Cuba, as mãos da jovem América. Em
1898, a Espanha já tinha feito esse processo, que nós fizemos quase 100 anos
depois. Nós tínhamos começado primeiro e acabamos depois. As comemorações
colombinas foram memoráveis. Nessa altura ainda havia a força para exportar
os ícones europeus para Cuba, para a América Latina. O século passado
foi o século da descolonização das áfricas e da Ásia, por um lado, e, por outro,
da afirmação do que já estava descolonizado. Assistiu-se a uma recuperação
do próprio passado e a reivindicação de um discurso em relação a esse passado,
um passado imposto, um passado imaginário, ou virtual, de uma dominação
que já ninguém suportava. Não foi possível comemorar Cristóvão Colombo.
Os Estados Unidos da América celebraram Colombo, que nem os descobriu, por
terem há muito vencido a barreira do ressentimento e estarem sentados no antigo
trono da Europa. Quanto as comemorações da descoberta do Brasil – até
nós nos vimos na contingência de ter de ir lá impingir a caravela das Descobertas.
A caravela naufragou com grande gáudio dos brasileiros, que acharam uma
enorme graça aquilo. E tinha. Não fizeram de propósito, mas calhou assim. Não
se comemorou coisa nenhuma. De qualquer modo, fomos lá, foi lá o presidente,
todos a fazer de Potemkin. O discurso brasileiro autêntico, o discurso dos seus
poetas, dos seus historiadores, não é um discurso comemoracionista; é um discurso
de uma nova universalidade que evacua essa pretensão descobridora. É
o fim da colonização, não só o fim pratico, que esse já foi há muito tempo, mas
agora um fim muito mais importante, que é o fim cultural.
JEF – Acha preocupante esse fim? Acha que é um descalabro?
EL – Não é preocupante, é normal. A mitologia do pai descobridor e do filho
colonizado acabou, mas é bom que se dê por isso. Não podem estar a fechar-
-nos os olhos e nos a pensarmos que no-los estão a abrir.
JEF – Considera essa rejeição a amputação de uma parte importante da cultura e
da história da Ibero-América?
EL – Eles não a podem amputar, porque os verdadeiros atores, a título póstumo,
da descoberta europeia, são eles mesmos, “ibero-americanos”, herdeiros
dos colonizadores, convertidos hoje em pais de si mesmos. Eles estão a preparar-
se para substituir a Europa, por um lado, e substituir-se ao adversário e inimigo
mais próximo que eles têm, que é o grande irmão do Norte. O que o Brasil
quer é opor-se e pôr-se no lugar da América, e é compreensivo. Servem-se dos
índios, dizem que pretendem defender a cultura indígena, mas isso é discurso
de colonizador. As elites de origem colonial, os seus filhos, os seus netos e que
fazem esse discurso.
JEF – Que significa cá este processo de revolta, de rejeição, de evasão? Vivemos numa
época de barbárie cultural? Procura-se uma nova identidade?
EL – Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis.
O caos cultural do Ocidente, neste momento, é inexpugnável. Até já a teoria
divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa a ganhar
adeptos. Isto podia ser uma espécie de folclore, mas é menos inocente do que
parece, agora que a China aparece no horizonte como uma nova América...
JEF – É o poder de atracção e de prestígio deste novo império emergente. Até começam
a atribuir-lhe feitos que eram apanágio da Europa.
EL – Inclusive as nossas Descobertas. Quando estive em Macau, conheci no
Museu de Macau a história de um famoso almirante chinês que teria vindo da
China até às costas de Africa, o que é perfeitamente plausível. Os chineses teriam
sulcado quer o Pacifico, quer o Atlântico, quer o que é hoje a América. Embora
não haja prova nenhuma disso, o facto de se aventar esta possibilidade
significa que há uma tentativa de recomposição, de rejeição integral de toda a
mitologia ocidental. Temos de nos habituar à ideia de que a nova versão da História
não é a Palavra de Deus.
JEF – Está em curso um processo de mudança dos grandes pivôs imperiais no
xadrez mundial.
EL – Completamente. E sempre a partir de um presente que se reescreve a História,
e o presente hoje não é a Europa, ela perdeu o seu lugar, logo são outros que a escrevem.
JEF – Considera, para terminar, que vivemos então numa era nova de relação da
Europa com o mundo, dos países da Península Ibérica com a América Latina? Entrámos numa época que denominou de barbárie, que está a sobrepor-se à cultura
civilizada?
EL – Não, o problema é que o que está a acabar é a convicção, em que nós vivemos
durante tantos séculos, de que só nós é que éramos civilizados.
JEF – Mas isso é positivo.
EL – Claro que é positivo. O que é negativo nisso é pensar que, de facto, o passado,
tal como nos o fizemos, não existiu, ou que nós somos os bárbaros deles.
O problema é que esta pretensão está, por assim dizer, na ordem das coisas.
Muda de actores, mas não desaparece nunca. O bárbaro é, por definição, o
Outro.
JEF – Em suma, o grande perigo é o apagamento do passado.
EL – Se por acaso a China recuperar todas as suas potencialidades, uma China
tem atrás dela 4000 ou 5000 anos de história. Se algum dia for uma espécie
de sucessora da América, evidentemente que vai reescrever a história do mundo
de outra maneira.
JEF – Fá-lo-á de acordo com a sua ótica, com o seu horizonte de compreensão
próprio…
EL – Eles nunca a poderão escrever como nós a escrevemos. Nós somos, culturalmente
falando, herdeiros de gregos e romanos. Foram eles que inventaram a História. A consciência histórica e o acontecimento essencial da história do mundo.
JEF – Então, a feitura da História é um instrumento de colonização cultural, usado
pelos povos cultural e politicamente dominantes?
EL – Nunca isso foi tao evidente como hoje. Todos os acontecimentos são escritos
em americano, tudo é escrito em americano... Os nossos ídolos, os nossos
jornais estão americanizados... Todos os dias há uma página na imprensa
em que aparecem os ícones americanos. Mesmo quando se está no Brasil, esquece-
se completamente que a Europa existe. Não há lá uma notícia capital sobre
a Europa. E na América também não há nenhuma notícia sobre a Europa,
excepto sobre alguma coisa que tenha a ver com ela. É como se fossem mundos
aparte, hoje, na época da hiperglobalização. No século XIX, havia na América
mais notícias sobre a Europa do que agora. A América, no século XIX, estava
com os olhos postos em Paris e em Londres. A Europa era ainda o “tesouro do
mundo”, tesouro cultural, e onde está o nosso tesouro.
JEF – Senhor professor, uma palavra final sobre o futuro.
EL – E quem tem uma palavra sobre o futuro? Como dizia Bergson, ninguém
tem palavra sobre o futuro. Se eu tivesse uma palavra sobre o futuro, dizia-a.
Qual e a filosofia do futuro? Se eu soubesse, escrevia-a já. O futuro é de uma imprevisibilidade total. Antigamente a profecia era mais verossímil, porque o tempo
ainda era muito homogéneo. A maneira como se vivia no século XIV, ou XV,
ou XVI, e como se vivia na minha infância, na Beira, não eram muito distantes.
A aceleração brutal causada pela invenção científica mudou-nos o mundo. Eu
já estou separado deste tempo, já estou hipermorto a vários títulos. Quando
vejo o meu neto mergulhado na Playstation, não sei o que ele está a fazer. Ou
não quero saber, o que é pior. Já estou navegando por conta de ninguém noutro
lado. O do não-futuro.
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