Agradeço, ao académico e
crítico literário Eugénio Lisboa, o
envio, a meu pedido, de um notável texto seu sobre snobismo literário, publicado no “Jornal de Letras”, que transcrevo com o maior prazer:
The tale of pure incident, in which the
characterization is perfunctory or commonplace,
has just as much
right to exist as the other.
Somerset
Maugham, The Art of Fiction
Há duas
espécies de snob: o snob sofisticado ou “chic” e o snob provinciano. O snob provinciano é o que, não muito seguro das suas convicções de snob, as arvora ostensiva e
estouvadamente, convencido de que faz figura de “exigente”, quando faz apenas
figura de rústico ingénuo. Entre os snobs
da segunda categoria está, por exemplo, o intelectual enfastiado, que declara urbi et orbi não gostar de ler ficção com história dentro. Uma boa história
incluída no bojo de um excelente romance – incomoda-o.
Prefere, diz ele, um romance ou uma novela de pura caracterização ou “de
personagem”, ou, então, “de atmosfera”. No limite, nem história, nem
personagem, nem atmosfera: deliciar-se-ia, espartanamente, com a pura perfeição
da ”escrita”: o esplendor da linguagem seria, para si, alimento suficiente. De
qualquer modo, o romance de personagem ou o de atmosfera ainda seriam
aceitáveis, mas o romance com história dentro (com intriga ou plot) é que não. Esse seria só para os
incultos, os não sofisticados, os rústicos caídos, desastradamente, no reino
solene da ficção. É uma preferência que
me intriga: como se pode não gostar
de uma boa história empolgante, recheada e bem contada? A Ana Karenina, a Madame Bovary,
o Père Goriot, o Le Rouge et le Noir, o David
Copperfield ou Os Irmãos Karamazov contam-nos impressionantes “histórias”
recheadas de ingredientes narrativos que nos seduzem. Os contos de Maupassant e
de Maugham são histórias apaixonantes cujo encanto narrativo nos cativa. Que
mal haverá nisto? Por que será que a história dentro da ficção aflige tanto o snob provinciano? Afligi-lo-á, de facto,
ou fingirá ele que se aflige?
A “história”
pode até não ser o valor mais precioso do romance, rico, por outro lado, de
personagens complexos e fascinantes que a história propicia, não sendo todavia nela, repito, que reside o valor
essencial do romance ou do conto. A verdade, porém, é que a história tem uma
função importante e não desprezível. Ortega y Gasset, nesse seu ensaio genial, Ideas sobre la Novela, argumentava com
recurso ao colar de pérolas: como todos sabemos, no colar de pérolas, o que é
valioso são as pérolas e não o fio que as suporta, mas, sem o fio, não há
colar, há apenas um conjunto desorganizado de pedras preciosas. Nessa
prodigiosa ficção que é a Ana Karenina,
o importante poderá não ser o fio da história, mas sim a riqueza inquietante de
personagens como a própria Ana ou, por
exemplo, Levine. Mas, sem o fio condutor da narrativa, ficaríamos sem poder
fruir a presença forte daqueles personagens. Sem esse “fio”, diria ainda Ortega
y Gasset, estaríamos na presença de uma ficção “paralítica”.
O uso da
“história” vem de longe: já Aristóteles, que leu, entre outras histórias, a que
conta a Odisseia, observava que o
“plot” “deverá ser construído de forma
que, mesmo sem o auxílio da vista, aquele que ouve a história sinta horror e se
renda à piedade que provoca o que acontece.” O filósofo grego foi portanto sensível à
“história”, isto é, à organização dos elementos narrativos conducente a criar emoção (Aristóteles, Poética, XIV, 1). O Decameron, as Mil e Uma
Noites, as Histórias da Cantuária
vivem todas de divertidas e emocionantes
“histórias” que saborosamente se contam e saboreadamente se escutam.
Scheherazade salvou a cabeça pela sua ininterrupta capacidade de contar
histórias. Voltaire filosofou, contando histórias. Balzac deu-nos um monumental fresco da sociedade do
seu tempo, contando histórias. Mesmo o “romance paralítico” de Proust se farta
de contar histórias. Mesmo as ficções curtas e longas que menos parecem contar
uma história, se bem observarmos, contêm um fio, nem que ténue, de “história”. “Yes – oh dear yes – the novel tells a story”,
dizia, com algum acinte, o romancista inglês E. M. Forster, no seu livro
seminal, Aspects of the Novel. “Nós somos
todos”, observava ainda Forster, “como
o marido de Scheherazade, na medida em que queremos saber o que vai acontecer a
seguir.” Querer saber o que vem a seguir nada tem de fútil ou de infantil:
pode levar-nos ao coração de descobertas fundamentais. O Swan de Proust conduz-nos até ao fim da sua tormentosa saga
amorosa, para nos revelar, no último momento, uma descoberta psicológica de
enorme alcance: amara e atormentara-se durante muito tempo, por uma mulher que
afinal nem era o seu tipo preferido de mulher…
Não era só o
homem primitivo, sentado à beira da fogueira, que ansiava por saber o passo
seguinte da narrativa que lhe fazia o contador de histórias da tribo: o mais
experimentado e sofisticado leitor de um grande romance moderno também não
desdenha de querer saber “o que vem a seguir”. Quando, ainda na minha
adolescência, lia as páginas compactas do ciclo da “Belle Saison”, da saga
romanesca Les Thibault, de Roger
Martin du Gard, eu morria de desejos de saber o segredo que escondia o passado
amoroso de Raquel, amante de Antoine Thibault. A narrativa mantém o suspense e,
por fim, o terrível segredo é revelado, ao mesmo tempo, a nós (leitores)e a
Antoine, ficando nós e ele como se tivéssemos levado uma pancada na cabeça.
Todo esse grande romance está cheio de histórias e de momentos em que nos
perguntamos: “o que vem a seguir?” Este fio de cariz policial nada tem de
indigno até porque se insere em linhagem nobre: o Rei Édipo, de Sófocles, deixa-nos, literalmente, sem fôlego.
De qualquer
modo, Somerset Maugham vai até mais longe, na defesa do romance “com história
dentro”, quando faz, no texto que cito em epígrafe, a apologia do romance de
“puro incidente” ou de escorreita acção: “De
facto”, acrescenta ele, “foram
escritos alguns romances muito bons, dessa espécie, Gil Blas, por exemplo e O
Conde de Monte Cristo.”
Não tenho qualquer espécie de relutância em subscrever estas palavras. Seja como for, o romance com história dentro nada tem de menos nobre ou de menos rico e complexo. Diria mesmo que o romance completamente expurgado de história ou simplesmente não existe ou, a existir, melhor fora que não existisse. Porque, como dizia Forster e folgo em repetir, “Yes – oh dear yes – the novel tells a story.”
Não tenho qualquer espécie de relutância em subscrever estas palavras. Seja como for, o romance com história dentro nada tem de menos nobre ou de menos rico e complexo. Diria mesmo que o romance completamente expurgado de história ou simplesmente não existe ou, a existir, melhor fora que não existisse. Porque, como dizia Forster e folgo em repetir, “Yes – oh dear yes – the novel tells a story.”
2 comentários:
Muito esta gente inventa! É só criatividade...
Cool ar
O importante é o fio do colar?
O fio do colar não é importante?
Não importa a pérola lá estar!
Estar também não é relevante...
Não importa sequer se é colar,
Se o conceito exige qualquer fio,
Se é pérola ou não, a mostrar
Do pescador, pescado, o seu brio.
Não me importa se não me importar
Se é fio, se é pérola, se não é...
Quero lá saber até se é colar,
Não vou fazer da cena um banzé!
De um livre pescoço eu gosto,
Que não se imponha pelo que tem.
Nu, sem trela ou colar posto
Ou de qualquer falsa joia refém.
Concluindo filosoficamente:
Não são os enfeites do pinheiro
Que mudam a forma do ente,
Daquilo que nasceu primeiro!
F.C.
Homenagem aos pescoços livres.
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