segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A democratização dos textos primeiros da cultura portuguesa: O acontecimento editorial do ano

Com a devida vénia transcrevo o artigo de Beja Santos que saiu no programa "Vida Alternativa" da Rádio Zero:

Esperei até meados de Dezembro para avaliar a importância dos projetos editoriais mais relevantes. De tudo quanto apareceu no mercado livreiro nada se aproxima das “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, com direção de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, edição do Círculo de Leitores, início em 2017, projeto de fôlego, constituído por 80 obras em 30 volumes. O que aqui se dá à estampa são textos e documentos que revelam o pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e noutros domínios do conhecimento. Falamos do mesmo Círculo de Leitores que anos atrás publicou pela primeira vez em Portugal todas as obras do padre António Vieira, empreendimento grandioso que estranhamente nem uma menção ou prémio recebeu. Este projeto envolveu um grande exército, 174 elementos entre investigadores, coordenadores dos volumes, consultores nacionais e internacionais, envolveu universidades nacionais e internacionais, centros de investigação e academias. Um labor sem precedentes e com resultados surpreendentes: os textos de todas as obras foram transcritos, fixados e criteriosamente atualizados a partir das suas versões primeiras.
Trinta volumes com uma seleção dos primeiros textos em português, de história, heráldica edificação moral e crónica biográfica, viagens e descobrimento, ética social e política, geografia e ecologia, e muitíssimo mais. É um registo admirável de 800 anos de história comum, estão aqui os fundamentos que podem permitir uma maior amplitude para o conhecimento da cultura portuguesa, ao alcance do chamado leitor médio., que em circunstância alguma teria acesso a estes textos primigénios. A propósito deste projeto, Carlos Fiolhais esclareceu numa entrevista o que há de transcendente nesta articulação entre a produção cultural e a ciência na história de Portugal: “Os Descobrimentos Portugueses dos séculos XV e XVI constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que se deu no século XVII, com Galileu, Newton e outros grandes nomes. No empreendimento marítimo dos portugueses, que pode ser considerado uma primeira globalização, estavam já presentes a observação e a experiência, fundadas na curiosidade, que haveriam de presidir à Revolução Científica. Os portugueses encontraram novas terras, novas espécies minerais, zoológicas e botânicas e novas gentes, com culturas assaz distintas, e souberam reportar o que viram e o que viveram. Alguns instrumentos científicos introduzidos por cientistas seiscentistas, como o telescópio e o relógio mecânico, foram introduzidos na Índia, na China e no Japão pelos navegadores lusos. O mesmo se passou com os conhecimentos matemáticos, astronómicos e físicos do Ocidente, que foram nalguns casos traduzidos para línguas orientais. Mais tardem, no Iluminismo, ocorreu em Portugal uma ressuscitação da Ciência. E foi nessa altura que foram escritos em português os primeiros tratados de anatomia, de física, de química e de engenharia, que não estavam muito desfasados de obras similares que então surgiram noutras línguas nacionais”. O meso investigador dirá mais adiante que “a nossa preocupação foi mesmo oferecer os originais, pedindo a especialistas uma introdução integradora e as notas explicativas necessárias. Cada época histórica tem direito a uma leitura renovada dos textos fundadores da sua cultura e estava na hora de dar aos portugueses e a outros interessados um acesso fácil a esses textos, de modo a que pudessem fazer um juízo atualizado”.
No prefácio ao primeiro livro destas obras pioneiras, e dedicado a cantigas trovadorescas, prosa literária e documentação instrumental, os coordenadores lembram a dificuldade que existe em encontrar nas livrarias edições contemporâneas das obras dos sábios do Renascimento português, que se traduzia numa perda de autoestima cultural, classificado por muitos como o “atraso português”. E esclarece a organização dos 30 volumes, para aguçar o apetite aos leitores. E não se esquecem de anunciar a contingência deste projeto, a seleção não é definitiva nem completa, nele não entraram mais obras das disciplinas aqui representadas, e deixam uma mensagem para um projeto futuro: “Seria interessante fazer uma outra série com obras pioneiras de boa parte dos séculos XIX e XX, de modo a abarcar as áreas do saber que emergiram nessa época, nomeadamente as ciências naturais, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciências políticas, entre outras”.
Falando dos primeiros textos em português, constata-se a preocupação em enquadrar o leitor quanto à seleção dos textos, situando a lírica, as suas origens, os poetas, as cantigas de diferentes tipos e temas, a prosa literária e os testemunhos escritos que têm a ver com compras-vendas, permutas, doações, testamentos, arrendamentos, e algo mais. O leitor será surpreendido pela beleza das cantigas profanas, pelas cantigas de Santa Maria, pela prosa literária e por um conjunto de documentos que registam a matriz da língua. Lê-se com emoção a cantiga de amigo “Eu, velida, não dormia” onde aparece uma expressão de todo enigmática “Edoi lelia doura”, que Herberto Helder escolheu para título de uma antologia de poesia portuguesa por ele organizada, entende-se que essa expressão era proveniente do árabe e significaria “hoje é a minha vez”. E é bem português o testamento de D. Afonso II, com data de 1214, que assim começa: “Eno nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temente o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Urraca, e de meus filios, e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia manda per que, depois mia morte, mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todas aquelas cosas que Deus me deu en poder sten en paz e en folgancia”.
Há muitas décadas atrás, havia um recurso para suprir, com seríssimas lacunas, estas obras pioneiras, líamos alguns dos Clássicos da Sá da Costa, de saudosa memória. Este projeto é do maior alento, é um ambicioso grande arco sobre a nossa língua e a vastidão dos nossos conhecimentos.
Para um acontecimento editorial desta grandeza, o nosso agradecimento é coisa menor, um importante é chegar à biblioteca de todos nós.

Beja Santos


~




December 15th, 2017

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...