Por José Barata-Moura
Intervenção efectuada na Reitoria da Universidade de Lisboa,
em 25 de Setembro de 2014
§ 1. IntróitoAgradeço ao António Marcos a generosa lembrança de me ter convidado para falar no lançamento deste seu livro. Penso que a invitação foi feita tão-só em nome de uma amizade antiga. Porque, no que toca a credenciais de competência, o meu balanço costumado poderá ser atrevido, mas apresenta-se como irremediavelmente deficitário na conta. No exercício orçamental da faladura de hoje, terei certamente de viver acima das minhas possibilidades. (O desconto na folha de pagamentos já está a ser processado).
Saúdo o Professor Galopim de Carvalho por mais esta notanda produção, que lhe acrescenta exemplificado cadastro a um itinerário de vida - cheio, exemplar, e notável. Trata-se de um testemunho – robusto, sentido, e pensado – de como ao cientista cumpre uma responsabilidade cívica na vitalização social da sua ciência; de como o saber que respira não é para estacionar aferrolhado na frasqueira dos sabentes, mas para ser posto à disposição dos que dele se pretendam nutrir; de como, havendo um tempo de jubilação para tudo, melhor é que jubilosamente tudo seja entregue a tempo.
E, em cumprimento desta entrega, salta-nos agora do prelo – para o prazer na leitura, e o proveito no estudo – esta estupenda Evolução do pensamento geológico nos contextos filosófico, religioso, social e político da Europa [1]. Um monumento (a diversos títulos, geológico) que, no prolongado da admiração, obriga a surpreender, a recompor, e a sondar, na unidade dialéctica de uma história material, instâncias da realidade que, habitualmente, não são feitas convergir: Natureza, acontecer humano, e cultura.
§ 2. A coisa
Como adverti no início, a minha qualificação, para o exame consistente que este objecto merece, manifestamente escasseia. Mas os méritos patentes da obra não faltam. Nem à entrada, nem no miolo, nem à despedida.
Contrariamente a infelizes amostras avulsas com curso fiduciário aceite na praça de diferentes áreas disciplinares (cá dentro, e lá fora), este artigo bibliográfico não vale apenas pela inscrição constante do rótulo. Na realidade, e com verdade, o título enuncia, e anuncia, a matéria efectivamente esquadrinhada. Não se acena, no cardápio, com uma promessa de lebre carnuda, para servir, no empratamento, uns pedacitos de bichano mal-amanhados.
O conteúdo é amplo, no vector do tempo que explora; volumoso, nas referências com a-propósito aduzidas; equilibradamente denso, na explanação das sustâncias do conduto. Mas não vem à matroca ensopado no caldeiro, nem arremeda uma massa de entulho despejada num montão. Organiza-se numa arquitectura dinâmica - sábia, e inteligente. Temas - quase uma vintena - que ocupam a interrogação geológica vão-nos sendo desdobrados. Na génese, que carregam escondida no bojo. Nas vicissitudes conflituais, que lhes parametrizam e abastecem o desenvolvimento. Sobremaneira, no enganchado de relacionalidades que lhes acompanha e perspectiva, ao longo das várias estações, a forma determinada que assumem. E é neste marco que a inteligibilidade se perfila, cresce, e ganha corpo, pela articulação estabelecida com concepções filosóficas e posicionamentos religiosos, com controvérsias oriundas do próprio campo científico, com o pulsar efervescente da moldura sócio-política do viver.
Num apanhado final - conciso e útil -, recordam-se os obreiros principais, e as instituições marcantes, das viandâncias do saber mineralógico e geológico em Portugal. Ao jeito de um como guia mapeado para outras excursões pormenorizadas vindouras, que se suscitam.
A escrita é fluente no curso, e devém instrumento de clarificação. A tecnicidade dos termos – em cada sítio, com oportunidade, convocados –, que não se evita, aparece no entanto decifrada, mesmo para um leigo como eu. Contribui para trazer rigor a uma linguagem enriquecida, em que nos passaremos a entender. Promove um alargamento certeiro do vocabulário, que não é pirotecnia de erudições deslocadas para embasbacar o transeunte. Propicia prestimosos avanços na discriminação de planos, de texturas, e de interagências, que conferem espessura e dinamismo ao desvendamento da complexidade do real. A retomada sucessiva, num compasso espiralado, de algumas das articulações nevrálgicas conjuga para o leitor menos preparado, e recorda aos entendidos, momentos fundamentais que convém não perder das vistas na conjuntação do todo.
Em suma, o livro lê-se bem. E, por aquilo que revolve, para do seu interior nos devolver, merece ser bem lido.
§ 3. Uma dimensão esquecida
Deveria quedar-me por aqui.
Há uns retoques adjuntivos na pintura que acabam por esborratar o quadro. Mas o troca-tintas convencido deixa-se sempre vencer pelo abuso das artes do pincel. Sem se aperceber de que, na exorbitância do gesto excedentário, acaba por ficar à brocha.
Adiante. À boleia do ensejo em que me são escancarados os portais da filosofice, atrevo-me a esboçar uma pequena reflexão exdrúxula - ou talvez, chãmente, apenas descabida - de presumido, e presunçoso, alcance mais alargado.
Num certo sentido – metodologicamente, ainda hoje bastante frequentado -, nós podemos observar, descrever, medir, tomando a imediatez determinada do presente, num seu isolamento discreto (atómico), como exclusivo tabuleiro de referência para a consideração do objecto de estudo que em cada caso se apresenta.
Algum «cientismo» positivante com banca assente no mercado – propenso aos enfunamentos da «análise» (em abstracto magnificada) – entroniza com fervor de credo esta postura. Do mesmo passo que, na passada, distribui reticências múltiplas, e troveja interditos liminares, quanto ao inadmissível abandono da «segurança» controlável que este quadro rigidificado (des-dialectizado) aparenta proporcionar.
No entanto, mal as interrogações se afinam -- e assim que descem de patamar --, logo outros questionamentos começam a surgir.
Verdadeiramente, pode a inteligibilidade que se demanda para o alcançar de uma qualquer compreensão efectiva prescindir das dimensões reais concretas que in-sistem, e que pulsam, no relacionamento, na dinâmica, no processo?
A resposta usitada, para fincar o pé, lança mão dos estafados antinomismos da chaveta. Que, em regra, prometendo agasalho, arrumam mais do que esclarecem.
Uma coisa seria o mundo (amolecido, e gentil) do «Espírito», da «Sociedade», dos «costumes». Moldado em plasticina complacente. Sujeito ao destrambelho incerto da variância e das avarias.
Coisa muito outra, porém, é o domínio (duro, e austero) da «Natureza». Em que a aparente «variação» eternamente se dá dentro dos férreos parâmetros intranscendíveis do «mesmo». Motivo bastante para que a historicidade (decretada inessencial) possa, de alguma maneira, ser mansamente removida dos cenários, e até, no limite, e sem prejuízo nenhum, ver-se descartada para o cesto.
Quando muito, condescende-se em conservar à «História» algum estatuto arquivístico de prateleira para «curiosidades» e «prodígios» marginais: relativamente ao «infantilismo», aos errores, ao disparate, e às atribulações, que, em procissão, no passado foram perpassando o corpo enfermiço das «ideias» que infectaram obscuros tempos revolutos.
Ora, precisamente, é, nos trânsitos deste transe, que esta obra de Galopim de Carvalho nos traz substancial, e consubstanciado, pasto à reflexão.
Quando olhamos (com olhos de pensar) para uma pedra, para um fóssil; quando interrogamos (na busca de entender) um vulcão, uma paisagem; quando perscrutamos (para descobrir) os equilíbrios (e desequilíbrios) climatéricos ou ambientais: é possível abstrairmos em absoluto da dialéctica de uma historicidade inscrita, não apenas nas fenomenalizações da vida, e nos intentos (subjectivos) de descortinar um saber, mas na deveniência polimórfica material do próprio ser?
Em rigor, nem sempre observado, não quadra bem aos enquadramentos de uma qualquer ciência despedir sumariamente o vector da história. Além dos patrimónios de cultura para que remete (e que relembra), ela embebe (e empapa) as próprias realidades a cujo deciframento se entregam as tarefas da pesquisa.
§ 4. Um pensar que nos irmana
Nas minhas «conversas» com os geólogos - com o Galopim de Carvalho, o Matos Alves, o António Ribeiro -, escuto-os dissertar sobre aspectos da especialidade deles.
E, mau grado a minha impreparação, vou aprendendo muito.
Eles não recorrem à muleta do abstruso instrumentário das categorias filosóficas. Eles não falam, de todo, da materialidade concreta do real no devir dialéctico da sua historicidade. Mostram-na, no concreto - vivo, e vivenciado - das suas investigações. Trazem – elaborado na tecnicidade determinada do saber determinado que cultivam, e que fazem progredir – um material riquíssimo para o estabelecimento alargado, e com suporte, daquela pergunta que, desde a longínqua Grécia antiga, rompendo a carapaça endurecida das «evidências» do existente imediato, comanda a pesquisa dita ontológica: que é «aquilo que é?»
Espero que não fiquem ofendidos, nem se escandalizem, pela estranha lição que - respirada embora noutros horizontes problemáticos - do magistério deles eu retiro. Afectando uma aparente modéstia que mal esconde o desaforo.
Em todas as suas formas e modalidades, a demanda de um saber fundamentado (mais do que, na origem, «fundacional») implica – não, como derivado à saída, mas como inerência no teor – um criterioso exercício do pensar. Montado sobre um viver historicamente situado, entretecido (objectiva e subjectivamente) de relacionalidade na convivência, ele aponta a uma busca de compreensão efectiva do real. Na totalidade – múltipla e em devir – das suas determinações.
O desígnio comungado da racionalidade - na panóplia diversificada dos saberes científicos particulares vertido, e declinado - organiza o empreendimento nas andanças, e confere um escopo aos trabalhos: a infatigável, e inconclusa, procura multifacética de um dar razão.
Na diferença - das porções do ser interrogadas, dos questionários formulados, do ângulo em que se procede ao enfoque, da ferramenta instrumental empregue para o caminho, dos propósitos determinados que se visa atingir – há, de facto e na verdade, toda uma funda experiência desenvolvida do pensar que nos irmana.
Na partilha de um chão comum.
No indispensar da crítica.
Na sondagem do alicerce.
No cuidado que se presta ao estabelecimento correcto dos problemas.
Na exploração do leque de possíveis que cada existência adiante de si projecta.
A unidade do saber não é uma dádiva. Nem um mecânico efeito garantido. Não encontra, em cada estádio da viagem, uma tradução coordenada. Os desencontros (nem sempre, infecundos) são muitos, e flagrantes. Todavia, na base da unidade material do ser em deveniência, irão sendo -- com trabalho, e lucidez - resolúveis. É o desafio que, em aberto, ao aberto nos concita.
§ 5. Remate
Finda a digressão festiva, é altura do remate sério.
Produto sedimentar de uma cultura amadurecidamente trabalhada pelo Autor, a obra que no acto cultural deste fim de tarde nos reúne constitui uma valiosa aportação histórico-epistemológica para o esmiuçamento – documentado, e penetrante – de muitas destas inquietações. Que em nada relevam do passatempo para o vagar das horas, nem da borboletância em vagueio por vielas escusas, nem de uma retrovidente predilecção pelas finas delicadezas do antiquariato inútil.
Contando o aventuroso das descobertas que foram conferindo expressão visível ao património cognitivo das Ciências da Terra, o livro incita à aventura de se deixar ele próprio descobrir.
Através de uma leitura reflectida. Que ele proporciona, sugere, e induz.
Razões em abundância, e mais do que justificadas, para que fique agora expressa ao Professor António Marcos Galopim de Carvalho a nossa funda gratidão, por este novo dom, que impresso nos atira. Com profundeza no saber, e graça no narrar. Para nosso gratificante saboreio.
Na Arte, na Ciência – em qualquer relacionamento humano com espessura -, a gratulação mais grata que a outrem se dirige é aquela que assenta numa congratulação sentida. O objecto não apenas safisfez a precisão do sujeito, mas mexeu com ele.
E vale a pena, que não dá, remexer neste escrito.
Muito obrigado, António, pela fruição que o teu fruto nos estende, e em nós desperta.
Lisboa, Setembro de 2014.
Nota: Cf. António Marcos GALOPIM DE CARVALHO, Evolução do pensamento geológico nos contextos filosófico, religioso, social e político da Europa, Lisboa, Âncora Editora, 2014, 280 pp.
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