sábado, 15 de junho de 2013

A DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA



Têm-me feito várias perguntas sobre a teoria quântica, em particular a experiência de duas fendas (em cima feita com electrões) e a dualidade onda-partícula . Esta foi realizada inicialmente com luz no início do século XIX pelo inglês  Young (imagem de baixo): mostrou que o comportamento da luz é ondulatório e não corpuscular, como Newton supunha. Hoje sabemos que a luz é uma onda electromagnética, a oscilação de campos eléctrico e magnético que se propaga num meio, ainda que não material.

 O triunfo da teoria ondulatória da luz foi-se acentuando ao longo do século XIX. No entanto, no início do século XX. verificou-se noutro tipo de experiências que a luz era emitida e absorvida em pequenas quantidades (quanta, plural de quantum), nas experiências do corpo negro, e que essas pequenas quantidades se portavam como partículas em colisões com electrões, na experiência do efeito fotoeléctrico. Foram, respectivamente, Planck e Einstein que, ao introduzir a teoria quântica,  ressuscitaram a teoria corpuscular da luz.

Chamou-se fotão à “partícula” de luz, mas a palavra está entre aspas pois não é uma partículas como as de matéria: é antes uma quantidade ou pacote mínimo de energia da luz ou energia electromagnética. Normalmente, fala-se de fotões apenas quando queremos descrever experiências em que a luz se manifesta como partícula. Se não for necessária a noção de “quantum” de luz para descrever uma dada experiência, não se deve falar de fotões, para não criar confusões.

 Passou-se então a falar de dualidade onda-corpúsculo para a luz. Em certas experiências a luz comportava-se como onda e noutras como uma partícula. Claro que existe aqui um problema conceptual pois uma onda clássica se estende no espaço e uma partícula clássica está concentrada num sítio. De facto, a luz não é uma onda nem uma partícula, é onda em certas experiências e partícula noutras. Em geral, encontra-se a luz como uma onda e noutras vezes encontra-se como partícula. Os dois aspectos não aparecem na mesma experiência: aparece um ou outro, conforme as condições da experiência. Bohr chamou "complementaridade" a este comportamento da Natureza.

Percebeu-se também a certa altura que as partículas elementares de electricidade, os electrões, que tinham sido identificados como semelhantes a partículas clássicas, se portavam em certas experiências como ondas. Por exemplo, eram difractadas num cristal de um modo semelhante ao dos raios X, que são uma forma de luz. Este fenómeno tem aplicações: num microscópio electrónico os electrões são usados como ondas. Os electrões podem, portanto, ser usados em vez de luz para se realizar uma experiência de duas fendas. Recentemente foi feita com orifícios de dimensões atómicas uma experiência que tinha sido descrita conceptualmente por Feynman e os resultados são exactamente os previstos pela teoria quântica (ver filme acima). A dualidade partícula-onda passou naturalmente a usar-se também para o electrão (e já agora para qualquer partícula, seja esta elementar ou não). Usa-se a mesma palavra electrão quando se fala de partícula ou de onda, mas um electrão não é uma partícula nem uma onda, é partícula ou onda conforme a experiência. Pode parecer confuso, mas a Natureza é assim: estamos a descrever resultados experimentais. É mais comum encontrar luz como onda, mas pode-se encontrar também como partícula. È mais comum encontrar um electrão como uma partícula, mas pode-se também encontrá-lo como onda.

 Assim fenómenos luminosos e eléctricos mostram a dualidade onda-partícula. Há, porém, uma importante diferença entre as “partículas” (com aspas!) de luz – os fotões – e as partículas de electricidade (deixei de usar as aspas) – os electrões. As primeiras são partículas de energia e as segundas são partículas de matéria. Os fotões não têm massa e os electrões têm. É por isso que nos é mais fácil identificar os electrões com partículas clássicas, como pequenas bolas de bilhar, apesar de o não serem. Claro que a matéria se pode converter em energia e vice-versa, mas matéria e energia são coisas diferentes. Um fotão tem energia e quantidade de movimento (as duas estão aliás relacionadas de muito perto) ao passo que um electrão tem massa e quantidade de movimento (pelo que tem energia). Além disso, um fotão não tem carga e um electrão tem carga. Isso significa que os fotões não interagem entre si, mas os electrões interagem: repelem-se. Os fotões e electrões relacionam-se de perto entre si: de facto a repulsão entre electrões deve-se a “troca” de fotões.

 Agora a descrição da experiência das duas fendas, com luz ou electrões, tanto faz. O aspecto mais importante da experiência é que ela revela um comportamento ondulatório em ambos os casos, devido à interferência de ondas provenientes das duas fendas. Se mudarmos a experiência ao procurar detectar a passagem de luz ou electrões numa das fendas, obtemos um comportamento de tipo partícula, pois deixa de haver interferência. É o dualismo onda-partícula a funcionar. Não é o efeito de um observador humano, pois podemos fazer a experiência com registos automáticos, sem ninguém a ver. Os dois comportamentos - ondulatório e corpuscular - parecem incompatíveis, mas não o são por aparecerem em experiências diversas.

 Mas como poderemos compreeender melhor o dualismo onda-partícula? Podemos ver a onda à chegada como formado por um conjunto de partículas. A mecânica quântica descreve a situação através da função de onda, uma entidade matemática central nessa teoria. Olhemos para o caso dos electrões, pois o caso da luz é algo mais complicado (para descrever a luz correctamente precisamos de juntar a teoria quântica com a relatividade, formando a electrodinâmica quântica, a mais precisa de todas as teorias físicas dado o seu acordo extraordinário com a experiência). O electrão é descrito por uma função de onda: em cada ponto do espaço é definida uma função complexa (isto é, uma função com dois valores reais). As funções de onda são soluções da equação de Schroedinger. Há muitas soluções: a soma de uma função de onda com outra é ainda uma função de onda, o que significa que a soma de uma solução com outra é ainda uma solução (este é o importante princípio da sobreposição, que vem do facto de a equação de Schroedinger ser uma equação de onda e de as ondas se poderem somar: a soma de duas ondas é ainda uma onda). Mas a função de onda não é algo completamente abstracto, apenas matemático: tem um significado físico pois o quadrado do seu módulo ou valor absoluto num ponto fornece a probabilidade de encontrarmos o electrão nesse ponto. A função de onda embora não seja matemática, tem implicações muito importantes na física, ao permitir prever resultados experimentais com precisão, designadamente a posição dos electrões. De facto, até hoje todas as previsões da teoria quântica baseadas na função de onda têm-se revelado precisas. Além da função de onda a equação de Schroedinger dá energias possíveis do sistema, que também têm concordado com as experiência. Todas as energias calculadas têm estado de acordo com a experiência. É por isso que os físicos depositam uma grande confiança na teoria quântica. Ele até agora não revelou uma única falha, mesmo em circunstâncias menos usuais.

 Com a função de onda podemos, portanto, prever o padrão de interferência dos electrões num ecrã (o ecrã tem de ser especial para detectar electrões) ou a falta de interferência se o detector estiver apontado especificamente para uma fenda. Podemos colocar o ecrã onde quisermos, o que mostra que a função de onda está bem definida em todos os lados. O electrão não aparece por artes mágicas num ponto do ecrã, pois está lá em qualquer sítio em que queiramos recolher registos. Aliás tem de lá estar - está sempre – pois o electrão tem massa e carga e estas grandezas conservam-se (as leis de conservação são das afirmações mais fortes da física, estando muito bem alicerçadas tanto teórica como experimentalmente).

É algo estranho para o senso comum mas não é estranho para alguém que tenha interiorizado a teoria quântica que, se tivermos um só electrão na experiência das duas fendas, ele se porte ainda como uma onda. Afinal esse electrão é descrito por uma função de onda! Pode-se fazer a experiência de duas ondas disparando os electrões um a um, obtendo-se ao fim de algum tempo um padrão de onda no ecrã: Um só electrão bate num só sítio evidentemente, onde é recolhido, mas outro electrão bate noutro sítio e outro electrão bate ainda noutro sítio, etc.. O conjunto de sítios forma um padrão de interferência típico de uma onda. O padrão total diz respeito não a um só electrão, mas a muitos electrões. Não podemos prever em que sítio vai incidir um dado electrão individual: isso é totalmente aleatório. Este é um dos mistérios da teoria quântica: tem de se aceitar que o comportamento individual dos electrões é imprevisível (Einstein  dizia "Deus não joga aos dados", mas de facto joga!). Podemos, contudo, prever o padrão de interferência, isto é, quais serão as zonas com mais e menos impactos electrónicos. Podemos dizer que os electrões passam pelos dois orifícios se pensarmos nos electrões como ondas  (uma onda está, por definição, espalhada pelo espaço!), mas não podemos dizer que uma partícula electrónica passa pelos dois orifícios ao mesmo .tempo até porque, se a formos ver, num orifício, a onda desaparece.

A função de onda de um só electrão descreve estatisticamente um conjunto de electrões idênticos,  cada um deles com um comportamento aleatório.  O conjunto estatístico (também se diz "ensemble") descrito por uma função de onda pode ser visto como uma replicação de um conjunto de numerosas experiências, havendo em cada uma delas um só electrão. Na prática, não se realizam evidentemente várias experiências com um só electrão, mas disparam-se muitos electrões na mesma experiência, obtendo-se no ecrã um padrão de interferência típico de uma onda, correspondente à soma dos resultados das muitas experiências. Há filmes no Youtube como o de cima  – não são simulações – que mostram com clareza o comportamento estatístico dos electrões.

 Com os fotões é bastante parecido, pois para eles também existe, como foi dito, a dualidade onda-partícula. Mas falar de função de onda neste caso é mais complicado e deve ser evitado. É delicado emitir um fotão de cada vez, mas modernamente consegue-se fazer isso. Não é um laser vulgar, que emite um feixe intenso de fotões, mas há equipamentos recentes que fazem isso. O ecrã neste caso tem de ser feito de fotomultiplicadores, com capacidade para registar um só fotão. O conjunto dos fotões são emitidos um a um, mas formam à chegada um padrão de onda no ecrã. Com os fotões acontece basicamente o mesmo que com os electrões.

6 comentários:

jmdamas disse...

Caro Carlos,
Obrigado por esta palestra. Uma pequena questão: uma função complexa não é uma função com um valor real e outro imaginário? Aquele parentesis confundiu-me.
Cumps,
João

Unknown disse...

Não percebo o que é uma onda a propagar-se num meio não material, como afirma no final do #1. Não há aqui um dualismo implícito?

LRC

Carlos Fiolhais disse...

Caro JMDamas:

Um número complexo é um par ordenado de números reais, que se operam de acordo com certas regras. Uma maneira cómoda, mas não obrigatória, de o escrever para efectuar operações consiste em somar as chamadas parte real e imaginária. A parte imaginária também é um número real.
Cordialmente
Carlos Fiolhais

Pedro disse...

É simples, a onda é meramente "matemática" e como tal não existe dualismo algum ou ondículas ou um meio material de propagação. Tal como não existem experiências que mostrem ora o carácter ondulatório, ora o carácter corpuscular. A descrição das experiências, numa parte é ondulatória, noutra corpuscular. Isso do dualismo onda-partícula e outros disparates afins é simplesmente vulgata sobre o assunto. Felizmente, poderá encontrar na net bons textos sobre este tema. Não é o caso dos textos do Fiolhais.

Unknown disse...

Muito obrigado pelo seu comentário. Mas a minha dúvida coloca-se em contexto puramente clássico, ou seja pré-quântico, mas após o abandonado do conceito de éter como meio material para suporte da onda electromagnética.
Fui pouco feliz ao utilizar o termo dualismo que associou ao dualismo onda corpúsculo. Aliás com legitimidade, pois esse era o contexto do artigo do Carlos Fiolhais. Ora eu queria referir-me ao dualismo matéria e outra coisa que não matéria.

Cumprimentos cordiais

LRC

jmdamas disse...

Correctíssimo.
Cumps,
João

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