No dia 21 de Setembro de 1761 foi garrrotado
e queimado no Rossio, em Lisboa, o jesuíta italiano Gabriel Malagrida, a última
vítima da Inquisição no nosso país. O seu “crime” foi afirmar que o terramoto ocorrido
em Lisboa seis anos antes tinha sido, não um fenómeno natural, mas um acto de
Deus para castigar os homens. Voltaire comentou que ao “excesso de ridículo e absurdo
se juntava o excesso de horror”. O responsável último pela acusação de “falso
profeta” e “herege” e pelo simulacro de julgamento foi o Marquês de Pombal, o
primeiro-ministro que tinha colocado o seu irmão à frente da Inquisição. O
poder político queria, para além de se afirmar, tranquilizar as populações
quanto ao risco de novos terramotos. Os homens poderiam viver tranquilos na
cidade reconstruída (pecando como era hábito) que a Terra não voltaria a ser sacudida
pela “ira de Deus”.
No passado dia 22 de Outubro foram
condenados no tribunal de l’Aquila, Itália, a seis anos de prisão seis cientistas
italianos e um dirigente da protecção civil, por não terem prevenido as
autoridades do terramoto que, a 6 de Abril de 2009, destruiu aquela cidade,
causando mais de 300 mortos. Tal como no caso do Padre Malagrida, o julgamento italiano
foi causado por um tremor de terra. A semelhança continua no facto de, em ambos
os casos, terem sido condenadas pessoas inocentes. Pode-se repetir a frase de
Voltaire, embora hoje as condenações não sejam à morte (outros são os tempos no
Ocidente cristão). Ao excesso de ridículo e absurdo – o julgamento dos
cientistas – somou-se o excesso de horror – a sua condenação ao cárcere. Há,
porém, uma diferença óbvia: Se o Marquês mandou o Padre Malagrida para a
fogueira, por ele ter alimentado o pânico, a justiça italiana acusou os
sismologistas por eles não terem alimentado o pânico. Mas logo voltam as semelhanças:
nos dois casos, o poder político queria, ao fim e ao cabo, evitar o medo
popular, que poderia levar ao descontrolo da cidade. Com efeito, a comissão de
cientistas reuniu em l’Aquila em 31 de Março de 2009 a mando da política com o
fim de tranquilizar as populações amedrontadas por uma série de pequenos
abalos.
Acontece que os cientistas não podiam
prever o terramoto maior. Ninguém, no estado actual da ciência geofísica, pode
prever um terramoto. Não quer isto dizer que jamais sejamos capazes de prever
sismos, mas sim que hoje somos incapazes de o fazer. Uma sucessão de pequenos
abalos, como ocorreu em l’Aquila, não prenuncia um grande abalo. Em anos
anteriores tinham aliás ocorrido fenómenos semelhantes sem que nenhum sismo
violento se lhe tivesse seguido. Não se pode pedir da ciência mais do que
aquilo que ela pode dar. Pedir a um sismologista que preveja um sismo, num
certo sítio e num certo dia, equivale a pedir-lhe para ele deixar de ser
cientista e passar a ser impostor. Curiosamente, há um impostor na história de
l’Aquila. Trata-se de um pretenso “investigador” que tinha previsto um sismo
para a cidade de Sulmona, perto de l’Aquila. Essa profecia veio naturalmente a
revelar-se errada (repito para o caso de algum juiz me estar a ler: não se
podem prever sismos!). As autoridades, ao convocarem a comissão de peritos,
esperavam ver contrariadas as profecias do impostor. E assim foi. Contudo, os cientistas
cometeram um erro, um erro que está longe de corresponder à pesada pena que
lhes foi aplicada: permaneceram calados na conferência de imprensa no final da
reunião, onde só falou o responsável, ou melhor o irresponsável, pela protecção
civil. A mensagem de absoluta tranquilidade (“podem beber um copo”) que ele
transmitiu ao público bem podia ter sido contraditada. Assim como não se pode
prever terramotos, também não se pode prever não-terramotos.
Encontrados bodes expiatórios, o poder
político saiu incólume tanto no século XVIII como no século XXI. Estarão os
políticos mais protegidos da justiça do que os outros cidadãos? Parece que sim,
até porque são eles que aprovam as leis. Todos sabemos que, nos terramotos
económicos a que temos assistido em Portugal e em Itália, os responsáveis
políticos não têm sido acusados de qualquer crime, por acção ou inacção.
Deveriam ser? Temos nesta matéria de ser cautelosos, pois isso poderia conduzir
ao abandono da política. E precisamos da política.
Ao ser criminalizada, a ciência acaba por
ser uma das vítimas maiores do terramoto de l’Aquila. A partir de agora os
cientistas estarão relutantes a aparecer em público. Se permanecerem calados,
poderão ser condenados. E, se falarem, também. A sociedade moderna precisa da
ciência, pois é a ciência, por mais limitada que seja, que permite chegar às
melhores soluções de muitos problemas. Einstein disse que a ciência é “a coisa
mais preciosa que temos”. Mas, ai de nós, a ciência vai passar a andar
escondida.
7 comentários:
Os cientistas que no seu trabalho lidam e comunicam directamente com o público (escolar, geral, media) apercebem-se muitas vezes das dificuldades de comunicação (de parte a parte). É muito fácil esquecer que a linguagem científica (o jargão) é quase como uma língua estrageira e aquilo que parece óbvio para uns nem sempre é óbvio para outros. “Não há perigo nenhum” pode ser interpretado literalmente ou assumir que não há perigo acrescido o que não implica a ocorrência ou não ocorrência de um sismo.
Estou um pouco chocada com o que está a ocorrer em Itália, quer pelo julgamento em si, quer pelas reacções e comentários que tenho visto nos media. É muito fácil julgar à posteriori. Se não tivesse ocorrido um sismo de grande intensidade toda a situação teria sido esquecida. Não acho sequer justo que se critique o grupo de cientistas pela sua não intervenção. Aliás os media não se poderiam ter dirigido a eles? Porquê se restringir a um porta-voz que não é especialista na matéria? Não me lembro de ver críticas relativamente a isso.
É preciso de populações com melhores índices de literacia científica para que este tipo de situações não ocorra. Deveria haver a preocupação de educar e preparar as populações que residem em áreas propensas a determinado tipo de desastre naturais. Talvez assim não se culpasse Deus, Nem o Diabo nem uns coitados de uns bodes expiatórios. Talvez a lição para a comunidade científica é que temos de facto de ser mais interventivos e não deixarmos outros falar por nós…ainda assim há sempre a possibilidade de sermos mal interpretados…
Cara Anónima
Quando diz, e muito bem, que "É preciso de populações com melhores índices de literacia científica para que este tipo de situações não ocorra."
Desculpe mas há aqui um erro de paralaxe porque o correcto seria:
"É preciso de JUÍZES com melhores índices de literacia científica para que este tipo de situações não ocorra."
O maior erro não foi o engano dos cientistas, foi a manifesta ignorância dos juízes.
Cordialmente
Ainda de sentido, lidar com limite e adversidade, representaria ser consciente e adequar-se por aprender quão formal o acolher do científico, por balizar da natureza humana.
Creio que o erro maior dos cientistas, que o houve, foi a ingenuidade e a imprudência de se prestarem a fazer a moldura para a comunicação irresponsável do representante de um governo. Caladinhos. Ou comunicavam eles próprios o que a ciência permitia ou não permitiam que alguém se servisse deles, abusivamente, como fundo de garantia.
Erro que pagaram caro. E injustamente.
Outro (imperdoável) erro (e um grande abuso, digo eu) é o que muito bem refere João Boaventura.
As pessoas pedem muitas vezes à ciência o que ela não pode dar. Assim como num saco de nozes a oca é a que faz mais barulho, muitas vezes aquele que mais grita e se indigna é o mais ignorante o mais atrevido. Esta história é de facto comparável às condenações da Inquisição. E isto no nosso tempo! Mas, infelizmente, em muitos outras áreas científicas, para além da dificuldade própria do domínio que se investiga, ainda temos, muitas vezes, os falsos cientistas e os que acham que com a sua ignorância podem avaliar todos os outros e até imaginar autos de fé para acabar com os que se atrevem a tentar obter um conhecimento que vá para além das ideias feitas e das certezas primárias.
Há mais Torquemadas do que a gente julga.
SEM DUVIDA:
Encontrados bodes expiatórios, o poder político saiu incólume tanto no século XVIII como no século XXI. Estarão os políticos mais protegidos da justiça do que os outros cidadãos? Parece que sim, até porque são eles que aprovam as leis. Todos sabemos que, nos terramotos económicos a que temos assistido em Portugal e em Itália, os responsáveis políticos não têm sido acusados de qualquer crime, por acção ou inacção. Deveriam ser? Temos nesta matéria de ser cautelosos, pois isso poderia conduzir ao abandono da política. E precisamos da política.
Mais um oportuno texto de Carlos Fiolhais.
Abraço
A Küttner
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