sexta-feira, 26 de outubro de 2012

PORTUGAL, ACADEMIA DE ALCOCHETE DA CIÊNCIA?


A Cabra publicou esta semana um bom trabalho jornalístico, que faz um retrato interessante e realista da situação dos bolseiros de investigação. As últimas alterações ao Estatuto do Bolseiro de Investigação foram desastrosas. Por exemplo, impedem os bolseiros de doutoramento de darem aulas no ensino superior. E os posdocs podem apenas dar aulas em doutoramentos. Compreendo que, face ao modelo de financiamento da generalidade dos doutoramentos em Portugal (que tem vantagens e problemas) se pretenda preservar a disponibilidade do bolseiro para a actividade para a qual é financiado (o projecto de investigação de doutoramento). Por isso é natural que haja restrições ao número de aulas que um bolseiro pode leccionar, tal como tem havido até ao corrente ano. Mais impedir os bolseiros pura e simplesmente de darem aulas parece-me um absurdo que limita o seu desenvolvimento profissional. Até porque, a exclusividade da dedicação do bolseiro à execução do seu plano de trabalhos, não fica assegurada com esta medida. Muitos bolseiros colaboram em actividades do grupo de investigação ou instituição em que se encontram, que nada têm a ver com o seu projecto de doutoramento. E isto, até certo ponto, é aceitável (claro que é inaceitável ter bolseiros a fazerem trabalho administrativo ou de motorista, como é sabido que acontece ou pelo menos aconteceu em certos casos, em clara violação do Estatuto do Bolseiro).

É certo que há problemas neste domínio, por exemplo de casos de bolseiros obrigados a dar aulas de graça, ou seja a quem poderia ser atribuído serviço docente sem qualquer remuneração. Mas como resposta a este problema, as alterações efectuadas são inadequadas. Porque uma coisa é os bolseiros serem obrigados a dar aulas de graça. Outra, é serem impedidos de darem aulas (até um certo limite de horas) sendo remunerados por isso (podendo haver uma redução do valor da bolsa nesse caso, o que também é discutível).

Se as aulas e a investigação são tão incompatíveis, se calhar deveríamos rever a profissão de professor universitário. Porque não impedir os professores universitários de darem aulas, já que também se espera que façam investigação?

Esta semana, o Público noticiou que o pagamento das bolsas de investigação estão em risco na Faculdade de Ciências por “atrasos sistemáticos” da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Mais uma notícia que mostra como os bolseiros são o elo mais fraco nas Universidades: contratos renovados a cada três meses? Por estas e por outras é que Portugal se arrisca a ser cada vez mais a ser Academia de Alcochete da ciência: forma talentos muito bons que vão a "custo zero" para o estrangeiro, onde atingem o auge da produtividade científica. Depois talvez voltem, por sentimentalismo, para acabarem a carreira.

É certo que se antevêem problemas em toda a Europa, com a redução do financiamento da ciência em nome da austeridade e da crise. Também esta semana tivemos a notícia de que 42 prémios Nobel alertaram a Europa para perigo dos cortes na ciência. Parece que a Europa se está a esquecer que desde o século XV, com os descobrimentos dos países ibéricos, que a base da hegemonia das nações assenta no conhecimento, na ciência e na técnica, que se refletem no poder militar, económico e cultural. Os países não têm ciência porque são desenvolvidos. São desenvolvidos porque têm ciência. A ciência não é uma despesa em que se têm que cortar para sair da crise, é um investimento que se tem que fazer para superar a crise.

O mercado dos cérebros, como mostra uma inquérito recente publicado na Nature é global e muito competitivo. Os cientistas tendem a seguir o dinheiro da investigação, apesar de factores culturais também contarem. A Índia é o maior exportador de cérebros mundial, com cerca de 40% dos seus cientistas a trabalharem em países estrangeiros. O Estados Unidos são, actualmente o maior destino de emigração dos cientistas. Mas pensa-se que em 2020 a China, a Índia e o Brazil sejam destinos muito importantes de acolhimento dos cientistas.

A concorrência é grande e há quem ponha muito dinheiro na ciência. A Arábia Saudita, que está por cima das maiores reservas mundiais de petróleo, fundou em 2009 uma universidade dedicada exclusivamente à investigação científica (apenas confere graus mestrados e doutoramentos) chamada King Abdullah University of Science and Technology (KAUST) que tem um orçamento superior ao do MIT. Com linhas de investigação fundamental e aplicadas, em disciplinas directamente relacionadas com factores de desenvolvimento locais, como por exemplo a resistência de cereais à água salgada. Se despejar dinheiro e contratar investigadores de topo pelo mundo inteiro numa espécie de Oasis intelectual resulta ou não, o tempo dirá. 

Mas, mesmo sem o dinheiro do petróleo, países como o Brazil, Índia e China estão a apostar forte na ciência. Prevê-se que a produção científica da China ultrapasse a dos Estados Unidos, dentro de um ano.


E nós, como ficamos? A Europa tem que ter uma estratégia e uma aposta clara na ciência, se não quiser ser remetida para a irrelevância e o subdesenvolvimento. E Portugal, tem que ter igualmente uma estratégia e uma aposta clara nesse sentido. Sabendo que não podemos ser o Manchester United ou o Real Madrid, temos que ter equipa (cientistas) para passar a fase de grupos na liga dos campeões. Portugal tem que conseguir atrair e fixar bons cientistas. E criar carreiras atractivas, que não podem ser exageradamente baseadas em bolsas, com as condições actuais das bolsas. Afinal, no inquérito publicado pela Nature, a principal razão apontada pelos cientistas para emigrar é assegurar uma posição mais sénior.

2 comentários:

Ricardo Lima disse...

A KAUST resulta!!
Mas devemos ter em consideração o seguinte:
1 - A KAUST tem uma dimensão reduzida quando comparada, por exemplo com a Universidade de Lisboa. A KAUST tem ~130 professores. Logo em rankings em que a produção ou impacto não é per capita, a KAUST fica a perder. Por exemplo, no ranking the Xanghai os indicadores são absolutos, excepto um.
2 - A KAUST não tem undergraduates, logo não surge no Times Higher Education World University Rankings.

Mas aqui ficam algumas notícias:
https://www.timeshighereducation.com/news/asia-universities-summit-kaust-head-heralds-amazing-progress

Nature Index 2016: the 100 most-improved universities based on research quality

http://www.hok.com/design/type/science-technology/king-abdullah-university-of-science-and-technology/

Podem descobrir mais em:
https://www.youtube.com/watch?v=ULn-6gx1VSg
https://www.youtube.com/watch?v=Q8wK8UX02mE

Ricardo Lima disse...

No seguimento do que já tinha escrito, transcrevo as palavras do Jean-Lou Chameau, KAUST President:
"In the 2016/2017 QS World University Rankings released earlier this week, KAUST ranks #1 in Citations per Faculty. Other peer institutions in the top 10 include Princeton, UC Santa Barbara and MIT. In the 2016/2017 QS World University Rankings released earlier this week, KAUST ranks #1 in Citations per Faculty. Other peer institutions in the top 10 include Princeton, UC Santa Barbara and MIT."

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