Andam demasiadas contas no
ar, há demasiado tempo, no ensino secundário.
À simplicidade desarmante de
há meio século atrás—tem mais de 10 valores, passou; tem menos, «chumbou»—substituíram-se
cálculos com feitio de sofisma, empenhados, complexos, apuradíssimos e considerados
justos, que ficaram lindos no retrato por tentarem fazer várias coisas em
simultâneo:
—anular os efeitos perversos do «tem menos de 10, chumbou», fonte de
variadas injustiças, em particular quando os resultados da frequência eram
tangenciais, mas insuficientes;
—anular, em geral, os efeitos de um sistema quantitativo totalmente cego
a circunstâncias;
—anular a predominância de um processo de avaliação externa sobre as
práticas de avaliação interna;
—anular a própria importância de qualquer processo de avaliação externa.
Bom, resultou em toda a
linha:
—ter menos de 10 pôde dar acesso, e ainda pode, a muito ensino
universitário; significou, até há muito pouco tempo atrás, uma progressão pouco
controlada por uns vagos níveis de 3, no ensino básico—com pouca ideia da
distinção entre o que era tangencial, o que era secante, e o que passava de
largo;
—as circunstâncias, dificilmente quantificáveis por natureza,
justificaram que as quantificações mais delirantes fossem aplicadas à
ponderação de resultados de 0 a 20;
—o processo de avaliação interna, particularizado até ao desnorte,
resultou nas mais gritantes injustiças: que professor fazia o quê, em que
estabelecimento de ensino, que era conveniente para os objetivos dos nossos
meninos, resumindo-se numa boa relação entre os 30% do exame e os 70% da
frequência?
—os exames—a avaliação externa—ficaram meticulosamente desacreditados.
Das contas que andam no ar,
podemos exemplificar algumas práticas correntes:
Sara S., regularmente boa aluna, teve a vida seguinte:
10.º ano: média de 14; 11.º ano, média de 16;
exame nacional, 19,7. Nota final, 16,4.
Ana S., igualmente estudiosa, fez o que se segue:
10.º ano: média de 15; 11.º ano, média de 16;
exame nacional, 19,1. Nota final, 16,9.
João T., aluno xpto, foi assim:
10.º ano: média de 16; 11.º ano, média de 17;
exame nacional, 19,2. Nota final, 17,6.
João L., emérita criatura, fez isto:
10.º ano: média de 15; 11.º ano, média de 18;
exame nacional, 18,5. Nota final, 17,4.
Muito bem:
chega.
Agora, o contraste:
Ricardo
M., rapaz inteligente, foi subindo ao longo dos dois
anos:
10.º ano: média de 11; 11.º ano, à beira do 16, anulou
a matrícula: o 11 era letal; exame nacional, 19,9. Nota final, 19,9.
Vera R., menina não menos inteligente, era irregular nos estudos; então:
10.º ano: média de 11; 11.º ano, por volta do
14, anulou a matrícula: o 11 era letal; exame nacional, 20. Nota final, 20.
Sara C., inteligente mas um bocado cábula, posa para a fotografia:
10.º ano: média de 11; 11.º ano, aí pelos 13,
anulou a matrícula: o 11 era letal; exame nacional, 17,1. Nota final, 17,1.
Dir-me-ão:
está bem—anularam a matrícula, puseram-se a estudar por si, aprenderam, tiveram
boas notas no exame.
Direi eu: nã senhora, a
anulação foi no 3.º período do 11.º ano, estratégica. Continuaram a frequentar
as aulas, a fazer os testes, a preparar-se tal e qual como os colegas. A ida a
exame foi de balde e esponja na mão, para apagar o passado. Sabiam-se
preparados, estudaram como nunca antes, jogaram tudo naquela nota. Ganharam!
Para o professor, como é
evidente, nem se colocou recusar-se a acompanhá-los até ao último dia de aulas.
São excelentes pessoas, e estão a fazer pela vida. Mas o professor tem, por
dever de ofício, um ângulo de abordagem mais abrangente e constrangedor que o
exame: as médias são as médias; a lei é a lei.
Então, vamos sintetizar:
Sara S.,
regularmente boa aluna:
10.º ano:
média de 14; 11.º ano, média de 16; exame nacional, 19,7. Nota final, 16,4.
Sara C.,
regularmente cábula:
10.º ano:
média de 11; 11.º ano, anulou a matrícula; exame nacional, 17,1. Nota final,
17,1.
A Sara C. mereceu? Claro que sim!
Mas não vai sendo altura de
repensar a legislação?
Não será mais justo que—para
começo de conversa—a nota de exame, a ser superior, deva substituir a nota da
frequência? Já que universidades e institutos não têm nenhum trabalho a
analisar candidatos?
Claro que as duas notas poderiam
emparelhar de outra forma: a escola produziria a dita classificação interna de
frequência; os exames uma classificação própria. Ambas, separadamente, seriam a
informação final dos estudos secundários. O prosseguimento de estudos
far-se-ia por candidatura independente ao local do crime: seria a instituição
seguinte a exigir as entrevistas, as provas, os filtros que entendesse.
Ou audaces fortuna juvat, e estamos conversados?
…
Há dias em que os Romanos me
enfastiam…
António Mouzinho
P.S.: Mesmo a propósito, a Fundação Francisco
Manuel dos Santos, que tem a rolar novo ciclo de conferências sobre o tema da
educação, recebeu, a 11 de outubro, três oradores na Torre do Tombo, após a
usual apresentação de Carlos Fiolhais: Jeffrey Karpicke (U. Purdue), Hélder de
Sousa (GAVE) e Leandro Almeida (Inst. Educ. U. Minho). O tema foi «A avaliação
dos alunos»; falarei disto noutra ocasião.
Interessa-nos aqui, por agora, uma exclamação
de Hélder de Sousa: os exames só valem 30%, felizmente (como quem diz: estão
muito bem assim…).
Acrescentou uma professora, no período de
debate, tentando provar a iniquidade desta média: não se entende como é que uma
média de frequência (CIF) faz parelha com uma nota de exame (CE) para, mediante
umas ginásticas de percentagens, produzirem uma nota final (CFD). Na
classificação interna estão em jogo muitas coisas, e é como somar laranjas com
bananas.
Julgo que a colega pretendia desvalorizar o
contributo da nota de exame…
… mas a afirmação também serve para fazer o
contrário: se tudo fosse semelhante, poderia defender-se que estava bem assim.
Acontece que muitos professores se gabam de ponderar, nessas classificações
internas, resultados não quantificáveis.
Ponderam, como? Os métodos variam, mas é com
algum à-vontade que envolvem, na nota, uns coisos a que chamam atitudes, e
coisas a que chamam transversalidades, e loisas a que chamam outras
competências. Hop, presto, já está!: a
avaliação sumativa (é verdadeira lixa linguística, este termo!) tem destes
passes de mágica, e faz média com o exame.
P.P.S.: Ao chegar a casa relatei à minha mulher a
perplexidade da colega que não via como fazer contas com CIF e CE, acrescentando
que era como somar laranjas e bananas. A minha mulher explicou-me que dava uma
papa ótima, a que também se poderia juntar uma bolachinha. Ora aqui está!
AM
2 comentários:
E os meninos dos contigentes, de cursos técnicos e afins? Não acha mais injusto? No entanto, também não é justo o aluno X ou Y serem proibidos de chegar ao ensino superior devido aos seus caminhos. Embora toda a gente saiba que há caminhos e caminhos. Agora voltando ao que se referiu no seu post, acha justo que um aluno que tenha uma doença que lhe impeça de ser melhor aluno, não mereça uma segunda oportunidade? Há também como sabe alunos que tentam isto que se referiu e não conseguem, consequentemente chumbam à disciplina (o mais provável). O problema principal nem é essa artimanha, essa até acho justo em caso de doença ou de várias paragens por causa de uma carreira desportiva (ou o que seja que leve o jovem a não ir às aulas justificadamente). No meu ponto de vista, é mesmo a desigualdade de critérios/qualidade dos professores, alunos e escolas. Aí está a raiz do problema. Em conclusão, para mim os exames nacionais deviam ter mais peso, é o que uniformiza o sistema. Quanto ao artigo, já que se deu ao trabalho de conhecer essas histórias, podia dar-se ao trabalho de conhecer realidade escolar; especialmente dos alunos do básico, onde as carências são tantas que a probabilidade deles acabarem qualquer percurso estudantil são muito baixas
A avaliação dos alunos em contexto de aula é um enorme desafio. Os bons professores estudam e aplicam a regra básica de que a avaliação é contínua e que são vários os aspetos a avaliar. Assim sendo, em contexto de frequência escolar, os jovens vão, teoricamente, desenvolvendo uma série de competências, das quais não é menos importante a capacidade de se envolver diariamente com os assuntos disciplinares, de sala de aula, ou seja, de construir uma rotina. Pressupõe-se que, uma vez estabelecido um certo sentido de ser, de estar e de fazer, o estudante possa modificar o seu comportamento de base e desenvolver outras competências além das que, para aquele professor, aquela disciplina e aquele contexto, são interessantes para a sua evolução cognitiva. Essa liberdade, que é de esperar de um estudante médio, é muito desperdiçada; ou seja, são muito raros os jovens que integram na sua rotina algo de pessoal, algo de construído por si, com mais ou menos apoio do professor. E, assim desperdiçada a oportunidade, não saímos da cepa torta, nós, os professores, os alunos, a Escola, o sistema educativo, Portugal.
Fazer o apanágio do menino e da menina que se arrastou pelo secundário fora, se preparou e tirou vintes nos exames é de tal mediocridade que lamento o que acabei de ler. Penso que o Dr é nome grado na nossa praça; eu, não sou ninguém. No entanto, dou-me ao luxo de o chamar à atenção e até de lhe perguntar: não estará a referir-se a primos, sobrinhos ou filhos de amigos? Não lhe ocorrerá, nem por um momento, que esses meninos só sabem decorar, que exploraram os seus professores ao máximo fingindo não lhes dar crédito? Saber é tão complexo e é tão dinâmico que ouvir falar de aluninhos de 11 ou 14 tiraram 20 nos exames me deixa profundamente deprimida. Também eu lhe podia dar exemplos do contrário, de alunos muito bons, durante o seu curso de secundário, alguns com esforço, que tiraram vintes nos exames. Quanta diferença não haverá entre estes jovens e os seu génios de exame.
Se o entendi mal, deve-se à minha pequenez e não à sua grandeza. Se o entendi mal, peço desculpa. Contudo, penso que o entendi bem demais.
Tenha uma vida feliz.
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