Na dúvida de um presságio venturoso para a aldeia global em que o nosso mundo se tornou que nos fique, ao menos, a alvorada de iniciarmos o Novo Ano de 2012 com um texto crítico de Eugénio Lisboa, um humanista multifacetado do nosso tempo, engenheiro, ensaísta, poeta, crítico literário, etc., para nos alegrar o espírito por parte de quem, como escreveu Guilherme d’ Oliveira Martins, “é um justo que procura dizer o que pensa e o que sente, mesmo que não seja compreendido no curto prazo ou surpreenda pela rispidez da crítica” (“Eugénio Lisboa: Vário, Intrépido e Fecundo”, Opera Omnia, 2011, p.152). Um vez mais, Eugénio Lisboa honra o De Rerum Natura com o polémico texto por si enviado (saído por estes dias no Jornal de Letras) e que abaixo se reproduz com o prazer e o proveito que sempre em nós desperta:
"Eça de Queirós alude, algures, ao vezo muito meridional da afirmação forte, recortada e muito sensacional – aquilo a que chamava a “coragem de afirmar”. Os corajosos desta espécie não buscam a verdade: procuram o efeito. Afirmações simplistas, gostosas, apocalípticas, tranchantes – eis o pelouro favorecido por estes teólogos do apocalipse mundano. Quase todos, profetas do “gloom” e da “redução”.
Chegou-me agora às mãos, com algum atraso, um exemplo, de antologia, desta muito lusitana coragem de afirmar. Numa crónica de tonalidades proféticas, António Lobo Antunes, escritor nunca assaz laureado (continua a faltar-lhe o Nobel, hélas!), lamenta-se das erosões que a posteridade poderá infligir-lhe à obra, hoje tão aplaudida, comemorada, premiada e dicionarizada. Dele, António, e dela, a obra, “ficará uma casa de palavras, sem a minha cara dentro”, observa, como quem chora no nosso ombro. “A gente pensa que escreve para a eternidade mas pouquíssimas obras sobrevivem aos seus supostos autores”, acrescenta ele, como quem busca consolo à sua, na efemeridade dos outros. Eu não percebo muito bem aquela dos “supostos”, mas, sendo Lobo Antunes um ourives da palavra, aquilo deve querer dizer qualquer coisa. Adiante.
Para mostrar como a posteridade pode ser adversa à glória de tanto autor acarinhado em vida, Lobo Antunes passa aos exemplos “sensacionais”. E, neste ponto, não está com meias medidas – trata-se de atordoar, com pancada vigorosa, o lepidóptero lisboeta & outros. “Por exemplo”, diz ele, “dos milhares de escritores franceses do século XX quantos resistem ainda? Dois: Céline e Proust. Tudo o mais desapareceu ou está desaparecendo inelutavelmente”, diz, melancolicamente, o autor de "Os Cus de Judas". Fica-se de olho enviesado e espírito idem, perante tal furor profético – a quente! É nestas coisas que se vê o metal de que o homem (António) é feito: não ter medo de afirmar! Comprometer-se, irremediavelmente, com a imprevisível e gozona posteridade! É d’homem! Mais cauteloso, mais cobarde, eu, gaguejando, agarro-me antes, pifiamente, à magra sabedoria do Ionesco, que acautelava: ”Só conseguimos prever coisas depois de elas terem acontecido.” Espírito muito diferente do autor da "Cantora Careca", Winston Churchill navegava, contudo, nas mesmas águas, quando avisava: “Eu evitei sempre profetizar com antecipação, porque é de muito melhor políticaprofetizar depois de o acontecimento já ter tido lugar.” Gente sensata, sem dúvida, mas não destemida, como o António dos Cus (de Judas). Este profetiza que se salvarão não quatro, ou mesmo três escritores franceses do século XX, mas apenas, avaramente, forretamente, uns escanzelados dois – e, mesmo esses... (ele não explicita a dúvida, mas ela está lá, no cariz apocalíptico do seu discurso).
A história literária mostra que autores que parecem morrer,literariamente, nos anos que se sucedem à sua morte física, ressuscitam (literariamente), alguns anos mais tarde. E com redobrado vigor. Um exemplo: Stefan Zweig foi muito popular em vida (embora os “high-brows” lhe fizessem boquinhas). Depois de morto, fez a normal travessia do deserto, mas, mais recentemente, ressuscitou (e com que força), para o povo e para os “high-brows”. Profetizar o aniquilamento definitivo de alguém é, pois, aventura escorregadia. Mas o António não se deixa amedrontar: gigantes como Valéry, Claudel, Gide, Colette, Montherlant, Giono, Camus, Aragon, Mauriac, Cocteau, René Char, acha ele que se vão extinguir para todo o sempre? Acha! Re-acha! E, então, que há-de ser dos tão amados Pagnol, Larbaud, Giraudoux, sempre reeditados, lidos, relidos, reencenados (os do teatro)? Tudo para a fossa! Bastaria a Lobo Antunes andar pelas cidades, pelas livrarias, pelos catálogos, pela Internet, pelos teatros, pelas revistas de literatura, pelo mundo, para verificar que eles não estão mortos nem esquecidos. Se andar pela Provence (mas também por Paris), verá reedições aos baldes dos livros encantadores, brilhantes e profundos, de Pagnol e Giono. Martin du Gard? As reedições sucedem-se e a Gallimard dá-se ao luxo de publicar, nos Cahiers de la NRF, volumes sucessivos de inéditos do grande escritor, além de lhe editar a volumosa correspondência, em grosso volume, após grosso volume – talvez a mais interessante, estimulante e importante correspondência literária, desde Flaubert! Lobo Antunes acha mesmo que Le Petit Prince vai desaparecer? Olhe que tem a posteridade tão garantida como o Candide de Voltaire... Ou o admirável Topaze, de Pagnol? Ou as peças brilhantes de Anouilh? Ai de nós, ele acha!
Quanto ao teatro, António é ainda mais severo – não restringe o apocalipse ao século XX francês, pergunta, destrutivo: “após a morte de Shakespeare, quantos dramaturgos continuam a ser representados?” E responde: “Ibsen, Strindberg, Checov e é quase tudo.” Fica-se aterrado! Que ceifa! Na América, safa-se apenas Tennessee Williamse vivó velho! O’Neill, Miller, Wilder, Hellman, Albee, Saroyan, vai tudo para a fossa. E, no entanto, bastaria a Lobo Antunes passear-se por Londres, Paris, Nova Iorque, Madrid, Lisboa (que diabo, Lisboa!), para ver que O’Neill (de quem "Long Day’s Journey into Night", constantemente reencenada, é, talvez, a maior peça do teatro americano doséculo XX, e "Strange Interlude", "Emperor Jones", "Mourning Becomes Electra" são monumentos imperecíveis do teatro de sempre), George Bernard Shaw, Oscar Wilde, Noel Coward, Pirandello são todos autores de repertório permanente em teatros de Londres e outras grandes cidades do teatro (e são todos francamente posteriores ao Cisne de Strafford). E também Miller,Wilder, Hellman (adaptada ao cinema e com DVDs à venda pelas FNACs de Lisboa) e Albee não cessam de ser reencenados (de Albee, ainda recentemente, pudemos ver duas soberbas produções em Lisboa: "Marriage Play", no Trindade, e, de novo, essa prodigiosa peça que é "Who’s Afraid of Virginia Woolf", de que vimos reencenações em Londres, assim como de "A Delicate Balance", com bela interpretação de Paul Scofield). De Miller, são reencenadas com frequência, "Death of a Salesman", "All My Sons", "A View from theBridge" e "The Crucible" (todas adaptadas ao cinema e algumas mais do que uma vez...).
Lobo Antunes fala, em suma, do que não conhece – e fala com força. Não voltarei a isto. O sage Samuel Johnson avisava: “Eu não conversaria nunca com um homem que escreveu mais do que leu.” Os escritores, mesmo os bons e até os inteligentes, costumam ser implacáveis uns para com os outros. Voltaire falava de Shakespeare, dizendo: “esta enorme porcaria”. Antunes diz: “estes pobres futuros esquecidos”. Quis despejar todo o século XX (e não só), aos baldes. Profetizou a terra queimada. Como, de caminho, se mete com Chesterton, devolvo-lhe Chesterton, em boa e maldosa medida: ”O profeta e o charlatão”, dizia o criador do Padre Brown, “são igualmente admirados, durante uma geração, e admirados pelas más razões.” Pode ser que as sombrias profecias de Antunes achem razões para ser acolhidas, por algum tempo: pouco tempo e más razões."
Eugénio Lisboa
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1 comentário:
A coragem justifica a força interior
O poder da coragem está no coração
Com dominio se controla o coração para a coragem
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