quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ainda a polémica entre António Sérgio e Abel Salazar


Novo post do historiador António Mota de Aguiar:

A contenda que António Sérgio e Abel Salazar tiveram nas páginas de vários jornais e revistas no segundo lustre da década de 1940 foi abordada neste blogue em artigos anteriores. Dei como causa principal para o dito diferendo o descontentamento de Sérgio (já o tinha tido também Casais Monteiro) pela forma como Salazar tratou a metafísica, isto é, pelo anúncio da sua falência. Não tivessem havido as críticas à metafísica e, provavelmente, não teria havido o rastilho para toda a polémica.

Faço a seguinte síntese: Tanto Casais Monteiro como Sérgio sentiram-se melindrados ou mesmo ofendidos nas suas convicções religiosas pela forma, seca e fria, como Salazar tratou esta temática.

Abel Salazar era visto com estima no campo republicano e junto de certas camadas da juventude. Os seus artigos fortificavam a sua posição junto destes grupos, o que certamente Sérgio não via de bons olhos, ele que também procurava simpatias junto dos “jovens leitores” (Ensaios, vol. II, pp. 10 e seguintes). As investidas dele contra a metafísica parecem, porém, desproporcionadas no país religioso de então, feitas como eram através de jornais, muitos da província, de reduzido público. Podemos por isso perguntar se seria rentável um ataque tão directo à religiosidade das pessoas. Daria isso alguns louros políticos ou culturais? Atingiriam esses ataques algum alvo sensível da ditadura? Penso que não. Abel Salazar caiu na armadilha que lhe estendeu a ditadura, uma ditadura que não permitia discussões sobre temas sociais e políticos, mas apenas sobre temas eruditos e speculativos, discussões que a população na sua totalidade (cerca de 75% eram analfabetos) não compreendia. Salazar pensou que aquela era a única via para se exteriorizar contra a ditadura: atacou a metafísica, e, por este meio, a Igreja, um dos pilares da ditadura. Pensou bem, mas fê-lo, a meu ver, mal, de uma forma desajustada, ofendendo os crentes que não apoiavam a ditadura, como era o caso de Casais Monteiro e Sérgio.

Se Abel Salazar tivesse feito uma divulgação da filosofia das ciências da Escola de Viena sem recorrer à falência da metafísica, Sérgio, provavelmente, não teria criticado o modo, mas a filosofia das ciências tout court. Isso sim seria uma “trapalhada” (uma expressão que ele próprio usa) porque não dispunha de bases científicas para fazer incursões nesse domínio. Nas Cartas de Problemática, em particular na C1, Sérgio deixa a ideia de que a filosofia só se pode abordar quando se tem uma sólida formação científica, mas, como veremos à frente, Sérgio não a tem. Por isso, embora possa não se estar de acordo com a forma pouco elegante empregue por Abel Salazar ao “ir divulgar ao público o bluff António Sérgio”, compreende-se a sua irritação ao dar-se conta do fraco saber científico do seu adversário. Discordo dos que dizem que, se Sérgio tivesse nascido num outro país, por exemplo, na Inglaterra ou na Suíça, teria sido um grande homem. Um grande homem em quê? Foi um homem do seu tempo, com uma obra sincrónica. Passadas essas décadas a sua obra não tem mais ressonância.

Voltando de novo ao tema principal, foi em torno da divulgação da ciência que os dois homens elaboraram as suas acusações recíprocas. Resumirei a seguir os pontos em que há, de uma forma geral, concordância de opiniões entre Sérgio e Salazar. Pretendo ver se, do diferendo ocorrido, podemos colher algum enriquecimento para os dias que correm.

Sérgio e Salazar estavam de acordo em perguntar como se devia vulgarizar a cultura de modo a fazer dela uma força de transformação efectiva da realidade, quer individual quer colectiva. Ambos concordavam que a cultura, quando reduzida a uma soma de conhecimentos, representava muito pouco, como acontecia com certa “gente culta”, dizia Abel Salazar, sempre pronta a discorrer sobre tudo, com superficialidade e sobranceria. Como vulgarizar a cultura? O que significa ser culto, perguntavam?

Significava, para Salazar “lograrmos desfazer-nos das limitações de espírito, para alcançarmos a objectividade e o universal”, em última instância, ser culto significa a conquista da liberdade. Sobre este ponto - conquista da liberdade - escreve Bento de Jesus Caraça em Cultura Integral do Indivíduo:

“ (…) A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a «conquista da liberdade».”

Este ideal de cultura, de um homem com sólida formação moral e intelectual, a par de um desenvolvimento sempre crescente de todas as qualidades potenciais, era partilhado por Sérgio e Salazar. Ambos defendiam que o mais importante na formação cultural de um cidadão era a ginástica mental, o espírito crítico e científico. Ser culto era ter um método mais que um ideário, era passar da credulidade ingénua e do dogmatismo espontâneo para o nível mental da disciplina crítica. A verdadeira cultura era um esforço de auto-direcção intelectual, de reflexão e assimilação dos assuntos, de justo equilíbrio de raciocínio, de apreensão clara dos conceitos, dos processos e métodos de pensar. Os conhecimentos eram um meio e não um fim, um meio ao serviço da disciplina e do serviço intelectuais, da autocrítica e da reflexão, de um método de pensar e não de uma doutrina.

Dizia Salazar que a verdadeira cultura atira o indivíduo para um mundo onde tudo flui, para um reino de dúvida e de hipóteses, para a renúncia aos princípios absolutos e definitivos, para uma filosofia relativista e fenomenalista (em contraste com as metafísicas apriorísticas), embora neste último ponto não tivesse a anuência de Sérgio. Sérgio, por seu lado, defendia que na vulgarização cultural se deveria privilegiar a aprendizagem de problemas, de uma maneira de pensar, sendo os conhecimentos um mero pretexto para adestrar ou exercitar essa ginástica mental. Salazar, sem rejeitar esta ideia, defendia, porém, que ela devia ser precedida por um certo grau de informação.

Ambos partilhavam a ideia do papel determinante das ideias, especialmente das ideias científicas e filosóficas, na transformação da realidade político-social, a importância do debate de ideias para dirimir conflitos.

Para Salazar devia-se vulgarizar as conclusões e os resultados das ciências. Dava como exemplo uma obra de arte: não é necessário saber como foi criada mas sim apresentá-la bem de modo que o público se interessasse por ela. A vulgarização científica deveria levar o público a uma maior consciencialização da sua relação com o cosmos, com a vida e com o próprio.

Estes são os temas, grosso modo, em que havia concordância entre os dois; o diferendo estava, portanto, no modo como Salazar efectuava a divulgação cultural. Foi essa a base a toda esta polémica.

Uma nota final para sublinhar que, para Salazar, a vulgarização científica podia muito bem ser efectuada por um não especialista, sem que isso implicasse deformação e simplismo; foi precisamente o que aconteceu com Sérgio que, não sendo cientista, polemizou com Salazar sobre temas científicos.

O histologista Salazar ocupa na história da ciência portuguesa do século XX um lugar incontestável. Foi um investigador com provas dadas em trabalhos sobre a estrutura e evolução do ovário, tendo criado o método de coloração tano-férrico, que tem o seu nome. Para além de médico e investigador, notabilizou-se ainda como artista plástico (desenho, pintura e escultura).

A análise sobre Sérgio é mais complexa. Escreveu ele nas Notas de Esclarecimento:

“as minhas hipóteses não se formaram em mim pela dócil leitura de qualquer autor filosófico (…) desenvolveram-se a partir de uma reflexão pessoal sobre a geometria analítica e sobre a física matemática (…) foram a matemática e a física matemática que impeliram o meu espírito para o Platão da caverna.”

Com certa ironia António da Silveira observa:

“A matemática e a física matemática dos preparatórios de um ano para a Escola Naval? Ah!!... mas Sérgio o diz.. A cada um o seu mistério, a cada um o seu mito, a cada um a sua quimera!” (Recordando António Sérgio, p. 27)

Silveira, referindo-se ainda ao pensamento do seu amigo Sérgio, escreve o seguinte:

“(…) Mas a experiência de laboratório tornou céptico os físicos em face das ideias dos filósofos. Estes não são profissionais da investigação científica, não foram levados às suas teorias por uma actividade própria de cientistas” (idem, pp. 28/29).

Sérgio não é um cientista, não foi levado às suas teorias por uma actividade de cientista, foi um filósofo idealista (António José Saraiva considera-o um «idealista moderno»), comunicando, sobretudo, através de ensaios e polémicas. Em geral, o que mais se conhece de Sérgio é a sua faceta polemista. Mas a sua acção na sociedade portuguesa destas décadas foi bastante maior. Ele teve influência nos intelectuais destas décadas, em particular no grupo da Seara Nova, do qual foi director, além de manter uma certa influência sobre uma parte da juventude desta época, como já escrevi atrás. Sérgio foi também pedagogo, perito em assuntos de educação - foi ministro por três meses - filósofo e um intelectual empenhado na reforma cultural do país, crendo-se com a missão de protagonizar uma alternativa positiva.

A sua personalidade – a sua faceta multicultural - foi a sua principal arma. Homem muito inteligente, de sólida formação moral e de vasta cultura, não pôde todavia aprofundar nenhum tema, como fez Salazar. Talvez seja esta a razão do apagamento da obra de Sérgio nos nossos dias. Contudo, não foi um adversário fácil: o seu vasto saber obrigou os seus adversários a estudarem melhor as suas posições para polemizar com ele, contribuindo para o enriquecimento cultural desta época. A sua presença na cultura portuguesa destas décadas como agente cultural foi notável. Pegou-se com todos, a todos moveu polémicas usando o género epistolar. Para avaliarmos a sua contribuição para as ideias do seu tempo temos que ter em conta o cenário. Quão difícil devia ser a vida que os Portugueses tinham na década de 1930, sobretudo no segundo lustre, com uma ditadura férrea dentro das fronteiras, e, para onde quer que olhassem, ferozes ditaduras em volta, com uma guerra civil calamitosa ao lado, e em vésperas de uma catástrofe mundial. Que fazer numa época destas? As ideias não podiam morrer!

Sérgio com os seus Ensaios, as suas polémicas, as suas Cartas de Problemática, etc., enriqueceu culturalmente a sociedade portuguesa do seu tempo. Contribuiu – «Se não se peca contra a razão, não se chega em geral a nada», escreveu Einstein - para nos manter agitados, críticos, nesses tempos asfixiantes. E fê-lo, porque, como recorda Silveira, “as conversas de Sérgio tinham sempre um efeito, libertador, vivicante, estimulante e tónico”.

António Mota de Aguiar

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