quarta-feira, 23 de novembro de 2011
O Prof. Rómulo e o seu amigo poeta com quem nunca era visto
Amanhã é o Dia Nacional da Cultura Científica, em Homenagem a Rómulo de Carvalho. Publico um texto do meu recente livro, saído na Gradiva, em co-autoria com David Marçal, "Darwin aos Tiros" e outras histórias de ciência":
"Rómulo de Carvalho (1906-1997), o professor de Ciências Físico-Químicas que leccionou muitos anos no Liceu Pedro Nunes em Lisboa, literariamente conhecido pelo heterónimo António Gedeão, é uma figura inigualável da cultura portuguesa no século XX. Além de professor de ciências e de poeta, juntando duas sensibilidades que para muitos estão nos antípodas uma da outra, foi ainda um notável historiador da ciência, que privilegiou na sua investigação o século das Luzes, e um esclarecido teórico da pedagogia.
Apesar de ter escrito alguns poemas na infância, o poeta António Gedeão só surgiu quando Rómulo de Carvalho tinha 50 anos. Com efeito, a sua primeira edição poética (Movimento Perpétuo, que inclui o conhecidíssimo poema «Pedra Filosofal», mais tarde musicado por Manuel Freire) saiu no ano de 1956, quando Rómulo vivia no bairro de Celas, em Coimbra, e ensinava no Liceu de D. João III (hoje Escola Secundária José Falcão). O primeiro verso que tanto demorou a sair foi:
"Inútil definir este animal aflito."
Poucos anos antes, em 1954, Rómulo candidatara-se, com o seu verdadeiro nome, a um prémio de poesia do Ateneu Comercial do Porto. Não ganhou o prémio, mas pouco terá faltado. O vencedor foi o escritor na altura já consagrado Miguel Torga, que, porém, abdicou do prémio em favor da divulgação de jovens poetas.
Apesar de Rómulo ter 50 anos, o crítico literário João Gaspar Simões não hesitou em incluí-lo numa antologia de «jovens poetas» saída em 1957, publicada a partir do concurso, com o dinheiro do prémio. O terceiro lugar tinha sido obtido por Gedeão (entretanto o autor trocou o seu verdadeiro nome pelo pseudónimo, cujo último nome tinha sido retirado do apelido de um aluno). Não obstante esse relativo êxito, Rómulo manteve secreta a sua poesia até da própria mulher, a escritora Natália Nunes, que recebeu o livrinho Movimento Perpétuo (publicado pela Atlântida) pelo correio sem fazer ideia nenhuma de quem era o autor. O marido ter-lhe-á perguntado se ela tinha gostado. Parece que respondeu sim. E parece também que nela nasceram logo as suspeitas de que o cônjuge era o autor, o que poderá ter sido confirmado por uma visita ao editor...
Rómulo em prosa e Gedeão em poesia escreviam num português de lei, um português clássico ao alcance de poucos. Clássico é também o nome Rómulo, o fundador da cidade de Roma que Plutarco (46-126) biografou. Curiosamente, assim como Rómulo matou o seu irmão gémeo Remo, também Rómulo decidiu a certa altura «matar» Gedeão, só assim se explicando a publicação de Poemas Póstumos (onde se encontra o verso «Que a terra me seja leve») e de Novos Poemas Póstumos (contendo os versos «E é tudo/Não há nada a acrescentar»), em 1983 e 1990 respectivamente. Clássica era também a figura de Rómulo, um mestre austero, sábio e exigente. Como bem mostra o matemático Nuno Crato numa antologia de textos pedagógicos de Rómulo (Ser Professor, Gradiva, 2006), o professor Rómulo de Carvalho não falava «eduquês», o dialecto estranhíssimo que nos últimos tempos tomou conta, com consequências devastadoras, da educação nacional.
Pelo contrário, dizia o que tinha a dizer, sem papas na língua. A um aluno que lhe disse ter «estudado um bocado», retorquiu com fino humor:
"Bocado? Bocado é o que se apanha com a boca, mas, já que o dizes, vamos lá a ver o que engoliste."
Conta-se que o aluno ficou engasgado..."
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