quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O GENOMA PESTILENTO (2) - DESENTERRAR OS GENES...


Crónica publicada no Diário de Coimbra, na sequência de uma outra (aqui)


Já não há peste negra?!

Claro que há!

Ao longo dos últimos 150 anos verificamos avanços significativos das ciências médicas, microbiológicas e imunológicas que permitiram identificar a natureza dos microrganismos que nos causam doenças, compreender o seu modo de propagação, os seus mecanismos patogénicos.

O conhecimento adquirido permitiu implementar atitudes preventivas de saúde pública contra a disseminação dos micróbios, outrora fatais, descobrir e fabricar vacinas e antibióticos. Estas “balas mágicas” permitem que aqueles que a elas têm acesso adquiram, para além da imunidade e protecção, uma ideia de que a guerra está vencida. Nada mais errado.

A Organização Mundial de Saúde tem lançado alertas frequentes, quer para o perigo de ressurgimento dessas tais doenças julgadas “extintas”, pelo mundo “medicamentado”, quer para a continuidade dessas doenças em locais no planeta onde são o presente endémico de seres humanos que não tem manhãs de futuro com saúde.

A peste negra continua a ser endémica em zonas da África, América e Ásia. Em 2003 registaram-se mais de 2000 mil casos mortais só em nove países. A comunidade científica que segue a Yersinia pestis tem emitido sinais de alarme (ver por exemplo, Welch, T.J., PLoS One, Março de 2007) sobre a possibilidade de uma estirpe multi-resistente aos antibióticos que conhecemos poder emergir e reavivar as ilustrações pestilentas de mortandade dos livros de história para as capas dos jornais.

Neste quadro, ainda não negro para o mundo mais preocupado com a dívida pública em crise (Europa, Estados Unidos…), importa utilizar os conhecimentos que as ferramentas de investigação da bioquímica moderna nos permitem obter pelo mapeamento e análise do genoma dos indivíduos.
Conhecendo os genes da livraria genómica de um dado patogénio, podemos entender melhor como ele actua, identificar as proteínas e outras biomoléculas da sua toxicidade, revelar o seu papel no equilíbrio microbiano necessário para a saúde (relembremo-nos que sem bactérias não existiríamos, como tão bem é ilustrado na Banda Desenhada que se segue!).


Os avanços técnicos permitem hoje a recolha, recuperação e sequenciação de ADN (ácido desoxirribonucleico, molécula estrutural e codificante dos genes) proveniente de amostras vestigiais, quantidades cerca de um milhão de vezes inferiores a um grama, incrustadas nos restos mortais inorgânicos (dentes e matriz óssea) de vítimas mortas há muitos séculos. No caso em notícia, possibilitaram aos investigadores desenterrar os genes e a reconstituição de 99,9% do genoma de Yersinia pestis num conjunto de quatro seres humanos que foram enterrados entre 1348 e 1350, em East Smithfield, na Inglaterra.



Os resultados publicados na revista Nature contribuem para a importância dos estudos paleogenéticos. Os investigadores verificaram que o micróbio que exterminou quase um terço da população europeia, na baixa idade média, é geneticamente muito idêntico com os seus parentes actuais. Isto sugere uma mesma patogenicidade entre as variantes medievais e actuais da Yersinia spp. Outros factores, como as condições de vida, higiene pública, entre outros, terão sido determinantes para a calamidade pestilenta medieval.

(continua)

António Piedade

1 comentário:

Gabriel Oliveira disse...

Não sendo eu um conhecedor das matérias aqui tratadas (as minhas ciências estão nos antípodas das que para aqui são chamadas), quero sublinhar a clareza na abordagem ao tema, e a escrita deliciosa do António Piedade. Porque a ciência (até a bioquímica, imagine-se!) é muito interessante, mas quando é narrada com esta jovialidade, torna-se irresistível.
Quanto ao tema... perdoe-se-me a absoluta ignorância, mas ouvi em tempos a possibilidade de a Peste Negra medieval ter sido um surto de cólera. Essa possibilidade está, portanto, inapelavelmente posta de parte?

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