sexta-feira, 25 de novembro de 2011

AO MEU PAI

Pedimos a Cristina Carvalho, filha de Rómulo de Carvalho, um depoimento sobre o seu pai, cujo aniversário de nascimento passou ontem, e ela deu-nos o texto de uma carta que lhe escreveu que foi publicada no Jornal de Letras (JL), no ano em que ele fez 90 anos (em 1996):


I
Conhecemo-nos no dia 10 de Novembro de 1949. Eu, de olhar embaciado e turvo, sinto-o mas não o percebo. Ele, de olhar sábio e transparente, percebe-me mas não me sente. Está proibidode me tocar. O nascimento foi difícil, muito difícil, doloroso, angustiado.

Passaram uns anos atésozinha conseguir alcançar-lhe o colo e chuchar com tanto prazer no colarinhoda sua camisa. Lembro-me perfeitamente desse hábito bom. Eu roçava a cabeça noseu pescoço, cheirava-o, absorvia-o, babava-o, apertava as pontas do colarinhoda sua camisa nos dedos e chuchava até adormecer.

Nessa altura eu via o meupai enorme, alto, lindíssimo, e, no seu rosto, do que melhor me lembro eram osolhos grandes e atentos. Nunca foi preciso falar muito. Ainda hoje não épreciso falar muito. Os seus olhos continuam a brilhar, a aceitar e aperceber o incompreensível.

Sempre o senti fazer tudoo que havia para fazer, sem ruídos, sem sobressaltos, sem respiraçõesexaltadas, sem tosses de irritação. As estantes com gavetas e a secretária doescritório, ainda em Coimbra, foram feitas por ele, ele conserta qualquercoisa, luzes, fios, parafusos, pequeninos objectos inúteis transforma emutilidades, botões descosidos cose, poda roseiras em Janeiro, respira o céuquente das noites de Verão, adora o calor, resigna-se com os frios invernos deCoimbra e vai sempre a pé para o liceu.
Sempre andou a pé.

1957

Viemos viver para Lisboa.Trocámos um jardim tranquilo por uns vasos de sardinheiras pendurados nasjanelas, uma rua sonolenta incomodada de vez em quando pelo guinchar de esforçodos carros eléctricos, por um bairro mais ou menos agitado - Campo D'Ourique -de prédios mais ou menos altos, de figuras mais ou menos conhecidas. Todos osdias, eu e o meu pai, descíamos as escadas do terceiro andar do prédio da ruaSampaio Bruno. De olhos dados, ele levava-me à escola e eu ia, ao longo dopercurso, guardando na minha memória fresca todas as informações econhecimentos que ele me ia apresentando: uma montra de loja tem muito que selhe diga, o virar de uma esquina pode trazer surpresas, uma cara feia, uma carabonita, folhas de árvore caídas no chão, um chão sem folhas caídas das árvores,o princípio do dia e o fim do dia, os passos que damos e os que não damos. Omeu pai explicava-me tudo o que é explicável, com palavras roliças, sonoras,excitantes.

São realmente excitantesas suas palavras que muito mais tarde eu vim a ler escritas no papel. Já nãoescritas à mão com letra desenhada no sossego do seu escritório, no amparo domóvel alto onde escreve, mas impressas nos livros.

Escrevia sempre de pé.Pelo menos é nessa posição que, na minha adolescência, me lembro dele aescrever. No Verão, o meu pai abria a janela desse escritório que dava para osjardins das traseiras dos outros prédios e junto ao peitoril, às escuras, comuma expressão de grande serenidade aspirava o ar quente da noite. E havia amúsica que, baixinho, gotejava da telefonia e acabava por inundar toda adivisão dum som acostumado, antigo, indispensável. Encostado ao seu armário,carregava no botãozinho luminoso do candeeiro de bicha, ajeitava os papéis ecom gestos muito aplicados, desenroscava a tampa da caneta de tinta permanente,ensaiava a pena num papel exclusivamente para esse efeito, pensava um poucoapoiando os punhos na cabeça e, de repente, começava a escrever, a escrever semqualquer interrupção.

Foi por esta altura quetravei conhecimento com António Gedeão, figura até então para mim desconhecida.Percebi que ele habitava lá em casa, que caminhava, que falava, que comia, quedormia, que respirava pelos pulmões de Rómulo de Carvalho. Era, então, a mesmapessoa. Era exactamente a mesma pessoa, com o mesmo tom rigoroso, os mesmoshábitos, a mesma sensibilidade, o mesmo silêncio. Continua a arranjardesarranjos, a coser botões descosidos, a olhar profundamente. Profundamente,António Gedeão, o poeta, faz poesia.

II

Durante todos estes anosda minha vida em que o tenho acompanhado, apercebo-me realmente do sentidoUniversal da sua poesia, daquela que li nos seus livros e que se revela a todoo momento da nossa convivência através das palavras mais simples, dos sinaismais discretos e essa é, de facto, a chave que abre todas as portas: aos meusolhos, o seu recado é duma simplicidade que me confunde e me faz pensar; a suaatitude perante os acontecimentos da vida é incrivelmente modesta, a ironia édeslumbrante e nunca incómoda. O seu pensamento profundamente humanista, apercepção antecipada de certos acontecimentos, a inteligência limpa, livre, oolhar penetrante e atento a tudo e a todos, as lições tão claras que ainda hojeoferece aos netos, revelam-me uma personalidade rara que, felizmente, muitosconhecem.

III

Vejo-me aqui sentada aocomputador escrevendo estas palavras directamente numas teclas um pouco ruidosas.Embora tenha os olhos baixos na direcção do teclado, pressinto a pulsaçãonervosa do cursor no ecrã; volta e meia tenho de carregar numa determinadatecla que me assegura a conservação deste texto; há sinais gráficos portodo o lado e informações escritas numa língua que não é a minha e, apesar detodas estas contrariedades, continuo a escrever este pequeno texto sobre o meupai. Se por um lado não crio calos nos dedos nem os sujo com tinta, se nãotenho o supremo prazer de amarfanhar uma folha de papel porque não gostei doque escrevi, se não tenho a visão caótica de dezenas de bolas de papelamarrotado aos meus pés, tenho o desprazer de ver a minha escrita limpinha, adireito, sem curvas, impecável. Confesso que me empenhei e dediquei todo o meusentimento a esta máquina, mas lá que não é a mesma coisa que uma caneta e umasfolhitas de papel, não é.

Por isso calculo que, seAntónio Gedeão fosse vivo, continuaria a escrever a sua poesia encostado ao talarmário alto, talvez hoje com uma caneta esferográfica, mas sempre numa folhade papel. Rómulo de Carvalho, meu pai, que no próximo dia 24 de Novembrocompleta 90 anos, este sim, este homem continua a viver deslumbrado com aciência e com a técnica que se desenvolveu neste século, sonhando com o quemais para aí virá.

Nota atual, de hoje, 24 de Novembro de 2011 - meu pai morreu no dia 19 de Fevereiro do ano seguinte,1997.

Cristina Carvalho

4 comentários:

José Augusto Macedo do Couto disse...

Muito, muito comovente.
Obrigado, Cristina Carvalho, pela partilha e por ser filha de tão Grande Homem e de tão Grande Poeta.

João Calafate disse...

Bonito de se ler e inspirador!
Tenho um lugar especial reservado a este grande homem, na minha estante.

Anónimo disse...

Texto muito sentido que me comoveu, Cristina Carvalho.

Obrigado e parabéns pela sua prosa e pelo Pai que teve.

Anónimo disse...

Lindíssimo ! A boa escrita corre no sangue da família Carvalho.

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