segunda-feira, 9 de maio de 2011

Boas histórias para aprender a pensar

O De Rerum Natura tem acompanhado o projecto Classica Digitalia desde o seu nascimento, no Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, faz agora dois anos.

Chegado ao Brasil permitiu concretizar, até ao momento, a edição de dez livros em formato digital e em papel: é o Classica Digitalia Brasil, cuja apresentação formal tem lugar a 9 e a 13 de Maio, respectivamente, na Universidade de Coimbra e no XI Simpósio da Sociedade Brasileira de Platonistas, em Recife, Pernambuco.

A este propósito, falámos com Gabriele Cornelli, um dos primeiros autores brasileiros publicados nesta colecção, pelo facto de se encontrar em Portugal para tal apresentação.

Gabriele Cornelli é professor de Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília é também membro do Conselho Editorial da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e da International Association for Presocratic Studies, director de uma colecção – a Coleção Archai – presidente da Sociedade Brasileira de Platonistas e membro do Executive Committee da International Plato Society. A sua visão da cultura clássica é, pois, de ter em conta na contemporaneidade. Começámos a nossa conversa por aí, pondo a tónica no lugar que essa cultura ocupa na educação escolar…

DRN - Em Portugal, o grande entusiasmo e a vasta produção do projecto Classica Digitalia parece não se coadunar com as opções que são tomadas no nosso sistema educativo para o ensino básico e secundário, de onde a cultura e as línguas clássicas praticamente desapareceram. Passa-se o mesmo no Brasil?
GC - O projeto editoria Clássica Digitalia parece-me, de fato, na atual conjuntura do financiamento à pesquisa em estudos clássicos, não somente em Portugal, mas em todo o Velho Continente, uma obra de resistência, cultural e acadêmica, de grande força. As tradições greco-latinas que a CD quer apresentar constituem, de fato, um tesouro de sugestões, ensinamentos, maneiras de olhar para o mundo e si mesmos (por vezes trágicas, por vezes cômicas, por outras lúcidas ou apaixonadas) que nenhuma cultura ou nação deveria se dar ao luxo de perder.
Minha esperança é que este momento de grande dificuldade e agrura que os estudos clássicos estão sofrendo na Europa possa acabar em breve. Não é a primeira vez que a história deste nosso continente vê momentos de crise para com seu passado, de renegação de suas origens greco-romanas. E, todavia, ainda estamos a falar de Heródoto, Platão, Luciano, não é? Por vezes, a resistência é o que pode-se fazer e, ao que me parece, é o que o CECH e CD fazem muito bem em Coimbra.

DRN – E no Brasil, que lugar tem o ensino da cultura e das línguas clássicas nos diversos patamares do sistema educativo?
GC - No Brasil a história é outra, bem diferente. O ensino das línguas antigas não faz parte estavelmente do currículo do ensino médio (liceu). Portanto, somente na etapa universitária é que os jovens brasileiros podem ter a chance de aproximar-se com qualidade às linguas, literaturas e pensamento do mundo antigo. Se isso é de fato problemático, por outro lado nos últimos anos viu-se um crescente interesse nas áreas disciplinares que reunimos abaixo do guarda-chuva dos Estudos Clássicos. Veja-se, por exemplo, o aumento de cátedras de filosofia, história e letras antigas nas universidades brasileiras, assim como a multiplicação de seminários e publicações nesta área.

DRN - Entende que tem sentido ensinar a cultura e línguas clássicas no presente, quando as opções internacionais para a educação vão no sentido de reforçar as aprendizagens práticas, com carácter utilitário imediato, emergentes da vivência quotidiana dos alunos e dirigidas para essa mesma vivência?
GC - Creio pessoalmente que a opção que se pretenderia fazer entre disciplinas práticas e uteis e disciplinas de "cultura geral" como alguns podem considerar as nossas, é em realidade uma falsa opção: o que há de mais útil do que compreender os caminhos tortuosos da definição o consenso político na jovem democracia de Atenas? Ou de mais prático do que compreender as nuances das dolorosas tomadas de decisão (éticas) das grandes heroínas das tragédias gregas, ou de mais importante do que apreender a cultivar a frágil planta da amizade com os grandes pensadores gregos e romanos? Realmente, não consigo imaginar nada de mais útil do que espelhar nossa vida cotidiana na grande tradição clássica.

DRN - A partir de que patamar de escolaridade considera relevante ensinar cultura e línguas clássicas?
GC - Creio que cada patamar tenha suas necessidades e oportunidades para esse ensino. Lembro-me, por exemplo, de contar histórias homéricas para meus filhos quando crianças, para durmir. E de ministrar há alguns anos um inteiro curso (muito concorrido) sobre as Éticas aristotélicas num Master de Business School para empresários. Enfim, haverá um dia, por acaso, em que não precisaremos mais de boas histórias e de aprender a pensar?

DRN - Sendo especialista nos Pré-socráticos, diga-nos que ensinamentos nos poderiam dar esses filósofos para a educação no presente e no futuro?
GC - Os filósofos assim-chamados pré-socráticos, que inauguraram a filosofia, e Platão são minhas grandes paixões, em âmbito teórico. Em ambos encontra-se, antes de mais nada, aquilo que o grande filósofo idealista italiano, Giovanni Gentile, o "tormento do pensar", isto é aquela inquietação profunda para com os problemas (teórico e prático) da vida que faz uma pessoa perder tempo buscando no diálogo com sua tradição e com as outras ciências contemporâneas, respostas ao grandes (e pequenos) problemas da vida. É isso que sempre me conquistou nos primeiros filósofos: este gesto inaugural, este chute inicial, para utilizar um jargão esportivo, e seus primeiros movimentos, entusiásticos e inquietos ao mesmo tempo.

DRN - Vem a Coimbra apresentar um livro que coordenou e que se intitula Representações da Cidade Antiga: categorias históricas e discursos filosóficos. Poderá dar-nos uma ideia do seu conteúdo?
GC - O livro foi por mim organizado a partir de um Seminário Internacional da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental, da qual sou Diretor, em 2008. A idéia era aquela de pensar a cidade antiga estando, em Brasilia, na cidade mais nova possível, a cidade modernista, a tentativa de realizar uma utopia de cimento no meio do semi-árido brasileiro. As contribuições do livro, todas de colegas arqueólogos, historiadores, filólogos e filósofos brasileiros, creio que tenham todos o pano de fundo deste desafio de pensar o passado no presente. É isso que o Archai quer fazer, reescrever continuamente a história de nossas origens a partir de como nos compreendemos hoje. Para que o passado possa ser não um espelho, e sim, continuamente, um interlocutor do presente. Como um velho amigo ou um pai já falecido, mas com o qual ainda nos surpreendemos conversando em nosso coração, nos momentos mais difíceis ou mais alegres, a recebermos conselhos francos, por vezes algumas broncas. Mas sempre com uma mão firme posta em cima de nossos ombros, a nos abraçar.

DRN - Muito obrigada.

7 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Enquanto possa ser vergonhoso dizer que o Estudo dos Clássicos no Brasil, fora limitado, até porque seria imprudente negar esta realidade, visível pela inconsistência que define o resultado de uma lacuna, como sendo, das falhas na educação brasileira. Inclusive, ao que tange enquanto princípio, ser recente esta valorização pelo número de ensaístas emergindo revistas de Filosofia, que se desdobram para suprir, tal prejuízo. Embora por triste a condição, é notável o aumento na difusão por ter um grande público em resposta à fome de saber, quando a América é carente de uma produção de nível aos moldes desta envergadura.

“Parabéns pelo grande momento de expansão da Filosofia Portuguesa”

Então, sem dúvidas que é oportuna e importante a ênfase deste espaço lusófono.

Anónimo disse...

Os clássicos são tão importantes para a civilização -se esta se pretende como uma civilização de bem-, como as árvores e os rios límpidos para a saúde do planeta. Os "monstros" são uma pré-condição do homem, tal como os "anjos". Não se trata de os eliminar, trata-se de os expurgar pelo poderoso processo da catárse. Conhecem alguma terapia de massas mais inteligente e eficaz? Eu não. E note-se: inteligente, porque o oposto é a terapia do "panem et circenses", a manipulação mais peçonhenta de massas que conheço e que por aí anda alegremente no futebol e afins.

E o efeito conciliador com a natureza e com a essência do melhor que em nós há obtido pelas estórias antigas, ao mesmo tempo que nos abrem os poros todos para a beleza pela inclusão do sentido do maravilhoso contado através da excelência poética?

Como a História nos mostra que muitos processos acontecem em espiral, em pequenos avanços sacudidos pelo retomar daquilo que entretanto se deixou, pode ser que os clássicos ainda voltem numa breve geração, como uma inevitabilidade porque a sua ausência mostra precisamente a sua necessidade.

Frequentemente, devido a este blogue, sinto profundos ímpetos de me mudar para Coimbra, onde parece que tudo está a acontecer.

Quem sabe se um dia ainda parto para Coimbra na minha demanda do Santo Graal?
HR

Anónimo disse...

Se acaso vossemecê
em Coimbra juga estar
o Santo Graal à mercê
da sua mão, se calhar,
deve estar a delirar!

JCN

Cláudia disse...

Sempre descobrem-nos passagens para outras paragens,
Quiçá, viajantes entre realidades distantes
Boreal circundante, acalentando este vagar.
Em olhos que refinados encantos;
Pulsando almas, desmedido pranto e saudades,
De ser, um estar.
Afinal. Onde quero ser a vaga do vagar, aqui ou, lá?
Então, queremos a cor do céu,
cetim do véu, estrelando a mãe terra.
Queremos no marejar envolvente, ofegante entre cheias e minguantes.
Na ordem do bem, decolores ou dolores,
Aos desconhecidos; preto, branco, amarelo.
Sabemos, sabores.
Do outro lado, onde breus da noite vela vosso penar,
o mesmo breu pousa no embalo, vosso sonhar!
E, neste imenso labirinto, engenhos, instintos dos montes,
corredeiras, desertos ou geleiras e fontes,
mar de gentes, emolduradas criaturas,
são sementes são figuras, são conte,
que vivem à sagrar despedidas e a misericórdia dos encontros.
Na mesma inocência dos dias, em que vagas, vagam.
Como não sentir, o que se sente?
Se esta viagem reluzente,
trás no espírito o plangente em acordes, milenar.
Ora, achamo-nos, onde podemos estar. Por quando, galopar...
Eu, vós e todos nós, lá ou cá, em cada instante do pensar.
Seria “pensar” um, delirar?

Anónimo disse...

Quem sabe?!... JCN

Anónimo disse...

O cálice sagrado que serviu
para aparar o sangue de Jesus
em parte alguma está, porque sumiu
quando o evento o mito produziu,
passando a fazer parte da ilusão
que reina em cada humano coração!

JCN

Anónimo disse...

Com os clássicos no bolso do colete e neles me inspirando, sou de parecer que a Poesia se quer harmoniosa, curta e densa! JCN

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