Um dia, o doutor Joaquim de Carvalho, um dos grandes professores da Universidade de Coimbra, no século XX, e um dos grandes investigadores da nossa cultura, interrompeu uma aula e disse: "Meus senhores, peço-vos desculpa mas não me sinto bem, vou ter que terminar aqui a lição". Sabendo-o já muito doente, os alunos saíram com ele da sala e não o deixaram ir sozinho, acompanharam-no até casa, junto à Sé Velha; todos.
Este episódio de carinhoso respeito e admiração pelo mestre, pouco antes da sua morte, em 1958, foi-me contado por um dos que o viveu, o meu amigo José Manuel Mota de Sousa, e veio-me à memória a propósito de uma notícia publicada no diário As Beiras, de uns alunos que, na Faculdade de Letras, esperaram na sala de exame pelo professor, que, por engano (dele ou da Secretaria?) estava à espera deles noutra sala. É uma descoordenação algo caricata, mas que pode acontecer. O facto não valia a notícia, se não fora a delação, e portanto acabou por valer como caso exemplar de uma certa gente.
Uma das coisas que mais entristece é ver como se criou uma espécie de impudor em relação a certas atitudes, e como à custa de uns direitos algo tortos se arvora em justiceiro qualquer Zé-ninguém e todo o bicho-careta vende a alma por dez reis. As televisões estão cheias disto. E no «direito à indignação», de que muitos gostam de abusar, sobretudo se estiver por perto a televisão, há quem não respeite nada e goste de fazer disso espetáculo.
Ora, é importante para todos nós, enquanto pessoas e comunidade, que o que merece respeito seja respeitado. Parece claro que os irrespeitosos não o fazem por mal, mas por estupidez, falta-lhes dimensão, não vêem para lá da própria tacanhez. O que até tira importância à coisa. Mas, mesmo que seja relativa - tem a desimportância de quem não tem importância nenhuma – não deixa de ser um tóxico moral que nos incomoda e desmoraliza.
Ainda seria tolerável se se tratasse de um professor sem nível intelectual ou moral, ou useiro e vezeiro nestas coisas, ou se fosse pessoa prepotente e injusta. Mas não. Na edição “on line” do jornal, um aluno, comentando a notícia, diz que o referido professor é «das pessoas mais cultas e sensíveis com o qual tive o prazer de trabalhar». Outro, afirma: «Foi meu professor e considero-o extremamente humano e culto». E ainda outro: «Grande Professor e Grande Ser Humano. Todas as suas qualidades, morais e profissionais estão acima de qualquer suspeita ou insinuação». E todos criticam os que, por um motivo daqueles, foram denunciar o caso.
Tristes tempos em que um professor, de grande cultura, humanidade e elevado profissionalismo fica sujeito à acusação pública por uma pequena falha de que não se chega a saber se foi culpado. Belos tempos, por outro lado, onde um conjunto de alunos vem defendê-lo em nome de qualidades muito mais importantes, aquelas que de facto interessam num professor: cultura, competência e honestidade. Em todo o caso, e à portuguesa, do que gostamos mesmo e de tapar as qualidades e mostrar os defeitos, como pedintes mostrando as chagas a quem passa.
Valeu-nos neste caso a Santa Internet para fazer justiça.
João Boavida
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
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