sábado, 19 de fevereiro de 2011

«Este pode entrar»

Em 1996 li, no jornal Público, uma entrevista a Rómulo de Carvalho, a propósito das comemorações dos seus 90 anos.

Por me ter impressionado muito, nunca mais me esqueci da passagem em que ele explicava a razão de ter saído do ensino quando fez 68 anos de idade e completou 40 de trabalho: a entrada no seu Liceu dependia da autorização dos jovens alunos, o mesmo acontecendo com todos os outros professores.
"Preferi parar nessa altura, até por causa do 25 de Abril, houve uma grande desordem. Nas escolas a confusão era enorme. Os rapazes não iam às aulas. No Liceu Pedro Nunes, onde estava na altura, deixou de haver empregadas às portas como era costume. Quem estava lá eram os alunos. Havia um que tinha um pauzinho na mão e quando eu chegava à porta - ou outra pessoa qualquer - batia-me com o pauzinho no ombro e dizia: «Este pode entrar». E eu entrava. Não se tirava proveito nenhum do ensino e eu decidi reformar-me".
Nas suas Memórias, saídas recentemente, o professor, contou de modo mais pormenorizado o acontecido:
"Com as perturbações que a vida nacional sofreu após a revolução do 25 de Abril, com apropriação de uma liberdade irresponsável que nunca soubemos nem sabemos, por temperamento, utilizar, imaginarão vocês o que se terá passado nas escolas, e no ensino em geral. O liceu em que eu trabalhava, o Pedro Nunes, serve de exemplo. A partir daquele famoso dia foi abolida, tacitamente, toda a autoridade. Nem professoras nem pessoal auxiliar tinha voz para fosse o que fosse. O acesso ao edifício estava limitado meia porta. Por essa metade aberta só entrava quem os alunos deixassem. Lá estavam uns tantos de guarda fiscalizando as entradas e as saídas sem saberem bem o que estavam a fazer nem com que finalidade. Quando lá quis entrar, após a revolução, os alunos vigilantes olharam-me, e um deles, tinha um pau na mão, tocou-me com a ponta do pau no ombro e disse: «Este pode entrar».

Penso que houve qualquer ordem superior para estabelecer esta regra, pois num dia seguinte em que precisei de ir ao Liceu Filipa de Lencastre lá estavam à porta alguns alunos que me perguntaram o que é que eu queria e, benevolentemente, pois nem sequer me conheciam, me permitiram a entrada depois de eu declarar que o que lá ia fazer e que era o de me encontrar com uma professora da casa com quem preparava então um Compêndio de Física que em breve seria editado."

Referências completas:
- Carvalho, R. (2011). Memórias. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, página 313.
- Salema, I. (1996). Humanidades e ciências é tudo a mesma coisa. Entrevista a Rómulo de Carvalho, Público de 24 de Novembro, página 2.

4 comentários:

António Viriato disse...

Tenho contado este mesmo episódio a muitos colegas e amigos, para ilustrar os perigos da demagogia, que permitiram a degradação da autoridade na Escola, logo iniciada nos dias sequentes ao 25 de Abril de 1974.

Data daí a degradação da imprescindível autoridade, sem a qual não há disciplina, nem o adequado ambiente à aprendizagem das matérias, por mais libertário que se queira o Sistema de Ensino, por mais democrático que ele se proclame.

Até hoje ainda não foi possível restaurar a necessária autoridade do Professor na aula, nem o mais alargado ambiente de disciplina na Escola.

Enquanto perdurar a demagogia da igualdade na relação Professor-Aluno a indisciplina prevalecerá na sala de aula e na Escola e com ela o baixo rendimento, a falta de civismo, o desrespeito das diferentes funções no interior da Comunidade Escolar e no final a impreparação geral das gerações vítimas desta ideologia pseudo-vanguardista, pseudo-libertária, pseudo-democrática.

Quanto terminará este pesadelo, responsável pela impreparação das gerações mais recentes ?

Fartinho da Silva disse...

Assino por baixo o comentário de António Viriato.

DIFERENTES SOMOS TODOS NÓS disse...

Sem ser saudosista, subscrevo o que está dito!

José Batista da Ascenção disse...

E pensar que ainda há poucos (muito poucos) anos "especialistas" em pedagogia e "psiquiatrólogos" defendiam que era necessário distinguir entre indisciplina, que, em suas opiniões, era natural nos jovens, e violência, por não serem a mesma coisa. E, por consequência, era necessário que os professores recebessem "formação adequada" para perceberem a diferença e saberem lidar com uma e com outra.
Ainda hoje desconheço a categoria em que classificariam a situação de um aluno "porteiro" que, com um pauzinho, batesse no ombro dos professores que pudessem entrar na escola...
Se bem que há muitos ex-ministros e ex-secretários de estado que publicam livros e dão entrevistas, assim como os habituais "especialistas" na matéria, para quem estas questões não devem oferecer dificuldades...
E comparo com situações actuais comuns nas entradas e saídas das escolas em que os alunos, isolados ou em grupo, se cruzam com professores. Imagine-se quem é que normalmente espera humildemente pela sua vez de passar...
Admito que tais sumidades considerem isto a vivência real da democracia. Como admito que estarão convencidos de que a educação, cá no rectângulo, vai no bom caminho. E admito também que, se for preciso, se elaborarão umas estatísticas a demonstrar o facto.
Enfim, conduzidos por tais eminências, não temos por que recear nem motivos para consternação...

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