sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Um cê a mais

Texto que circula pelas caixas de correio, assinado por Manuel Halpern, bem a propósito da introdução do Novo Acordo Ortogáfico nas salas de aula.

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo?

Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.

Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

24 comentários:

Luís Ferreira disse...

Quando chegarmos ao ponto dos nossos filhos escreverem "muito provavelmente tu abre teu DevC++ adiciona", como se lê em

http://www.vivaolinux.com.br/dica/Compilando-Allegro-no-Linux

já será tarde para assinarmos as petições que circulam.

http://ilcao.cedilha.net/

Anónimo disse...

Proativo? Eu nem proactivo sei o que é, nem os dicionários registam. Pode explicar-me?

Anónimo disse...

De cada vez que se toca
na maneira de escrever
a nossa língua, à matroca,
menos dá para entender!

JCN

Anónimo disse...

proactivo (àtí)proativo (àtí)
(pro- + activo!ativo)
adj.
adj.
1. Que não se baseia na reacção!reação a algo, mas toma iniciativa de acção!ação.
2. Que age antecipadamente.

Sinónimo Geral: pró-activo


É só consultar aqui:
http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=proactivo

GMaciel disse...

Quando se altera a língua sob o pretexto da sua uniformização - ou pior, como já ouvi, para que não "morra" - abastardando a sua etimologia, perde-se a identidade que fez a História de uma nação, porque as raízes de uma língua lhe pertencem. Em nome do quê, pergunto eu.

Botelho disse...

Gostei do texto. divertido e atual.
Não pertenço à classe de gente que considera a mudança um terrível bicho-papão (será que leva hífen ou não? - Tenho de consultar o dicionário mais uma vez. Segundo o mesmo sim contínua!)
Mas não tenho receio, aversão ou indiferença. Vai passar por mim e vai alterar os meus textos, apresentações e comunicações escritas, mas ando eu na escola (talvez uma vida inteira, por ser professor) a mudar modos de ver, compreender e pensar as coisas para depois, feito resmungão, negar-me à mudança!?
Peço desculpas a quem pensa que a língua é só nossa, a língua é de todos e se estiver parada e não for irrigada constantemente, morre tal como a que temos dentro da nossa cavidade bocal.

Só me preocupa a avaliação do desempenho docente! Será que não terei excelente ou muito bom porque não sou totalmente correto na escrita do português científico!!!

Anónimo disse...

Como paradigma, há que salientar que, não obstante a inevitável evolução fonética da sua oralidade, a língua latina se manteve ortograficamente inalterável durante mais de meio milénio! JCN

Anónimo disse...

Obrigado anónimo das 12:52. Tinha procurado em montes de dicionários e não sabia assim como outras palavras agora muito em voga. E concluo que eu, sem o saber, sou proproativo visto que costumo agir com muita, até demasiada, antecipação, não só com antecipação. Como é bom saber...

Botelho disse...

Curioso! Não sou conhecedor da evolução da língua. A minha área de estudo são as ciências experimentais.
No entanto, tinha um professor na universidade (já jubilado) que dizia "no meu tempo podíamos escrever como quiséssemos, desde que se lê-se de acordo com a fonética da palavra". E antes, há pouco tempo, não se escrevi pharmácia? Exemplo mais comum.

Violet disse...

Sou estudante e confesso que o acordo ortográfico, a nível de ensino básico e secundário, que é aquele com o qual convivo, não é mais do que uma fantochada. A maioria dos alunos não percebe o porquê desta mudança, e utilizam o acordo como artimanha, entenda-se pensarem: "Não sei se é com cê ou sem, portanto mete-se sem, se me corrigirem digo que já estou a escrever segundo o acordo", e aplique-se o mesmo no caso do pê e afins. Como se ensina ou como pode aprender português correcto esta geração? Não sabem o "antigo" quanto mais agora perceberem as mudanças e aplicá-las.

Andreína.

Anónimo disse...

Caro comentariwta das 18:48:

Não vá mais longe, porque esse era o critério do "capitão de abril" Vítor Cespo, agora falecido, o qual, na sua qualidade de ministro da educação, costumava dizer que ortograficamente tudo esta certo... desde que se entenda! Que tempos! JCN

Paulo Rato disse...

O próprio Manuel Halpern desvenda, inadvertidamente, a trapalhada que é o Acordo Ortofágico (á assim que lhe chamo) e a sua aplicação, alvoroçadamente acolhida pelas publicações do grupo editorial em que se integra José Carlos Vascocelos, seu grande entusiasta, em nome de um "brasileirismo" algo bacoco (pese, embora, a simpatia que me merece JCV, já que a consideração intelectual e cívica que a acompanhava sofreu, há uns anos, rude abalo, com a sua participação numa comissão pseudo-independente, inventada pelo governo Barroso para caucionar a sua "política" para a televisão pública e parideira de um "documento" eivado de repolhudos disparates).
Recordo que o uso das grafias "espetáculo" e "espectador" (que eu saiba, o "c" desta última palavra continua a ser pronunciado na norma de Portugal) era um dos exemplos apresentados por Malaca Casteleiro, a propósito das "aparentes" (segundo ele...) contradições contidas no AO... Ora, Halpern já escreve "espetador", que, Casteleiro dixit, é grafia que não existe! De facto, "espetadores" só mesmo na indústria da frangalhada é que devem encontrar-se...
Isto é, os aplicadores do "Ortofágico" já andam a devorar - em pleno "Jornal de Letras" (mas não só, que não é a primeira asneirada que detecto)! - consoantes que ainda persistem, no somatório de alarvidades linguísticas em que o AO conseguiu transformar-se, numa demonstração das dificuldades e perplexidades que o tal acordo dissemina, na sua inevitável (e, desde o início, previsível) balbúrdia. Tal como, futuramente, hão-de devorar a própria pronuncia correcta de muitas palavras, coisa que os perpretadores do AO sempre negaram a pés juntos. Pena tenho eu de alguns amigos que trabalham nessas publicações e são forçados a aturar estas maleitas "fraternais" e os correctores (perdão, "corretores" - que terão ido arregimentar à Bolsa) informáticos que já devem ter sido enfiados nos seus computadores, mas que dificilmente conseguirão superar os escolhos e as contradições (aparentes...) da infecção ortofágica.
Paulo Rato

MJT disse...

O que eu sinto em relação a este espoliar da língua portuguesa é o mesmo que sinto quando a minha dentista me diz que tenho de arrancar um dente.Não tenho medo da dor, não temo a mudança que aquela cavidade a mais vai causar...mas ele é MEU! Faz parte de mim.
A simples ideia de que ela vai arrancar a ferros uma coisa que me pertence faz com que tenha vontade de esganar a senhora!Nenhuma prótese, por mais bonita que seja, pode substituir a qualidade inerente àquele dentinho. Mesmo que ele esteja doente e ela insista que a sua remoção me vai fazer um grande bem. Para mim, é sempre uma perda.
Neste caso particular, estão a arrancar a ferros as minhas letrinhas! Estão a aleijar a minha língua materna. Estão a violentá-la com uma extracção (com um cê a mais, pois!) à força.Porque, por aquilo que eu sei, a língua portuguesa gozava de boa saúde!Pelo menos, até ao momento presente!
Não é a mudança que me faz confusão, porque a língua é mutável, um sistema evolutivo, mas sim a brutalidade de se legislar a evolução.
Como se a evolução de um organismo vivo pudesse ser legislada! Como se a língua necessitasse disso!
A língua fiscaliza-se a si própria. Evolui quando considera que tem de evoluir- umas vezes de uma forma mais lenta, outras vezes de uma forma mais célere. Contudo, evolui sempre e não precisa que lhe dêem empurrões forçados. Tem personalidade definida.
No entanto, é verdade que também se constrói com a influência de outras personalidades. Só que leva o seu tempo para atingir o adequado grau de maturação, o que a torna, em determinado momento que ela própria escolhe, adulta para a mudança. É versátil e toma conta de si. Independente e senhora do seu nariz.
A língua é feminina e não esperou por sufrágios para se emancipar: já o fez há muito tempo.
Este estranho organismo, de evolução às três pancadas, que o acordo está a tentar criar, lembra-me a quimera dos gregos- cabeça deste, corpo daquele, cauda daqueloutro- mas, em termos práticos, o seu objectivo final não passa de imaginação.
A nossa língua muda quando tem de mudar e não precisa de decretos. Identifica um povo e a sua destruição é mais uma pazada para tapar a cova na qual nos querem enterrar, enquanto nação. Com uns bons sete palmos de terra em cima...

Maria João Teles

Luís disse...

A minha maior questão relativamente ao Acordo Ortográfico é: num país em que só uma pequena minoria consegue escrever correctamente (basta abrir um jornal para ver que nem os profissionais da língua o fazem), está-se a fazer com que doravante ninguém o faça. Eu contra mim falo; prefiro continuar a escrever à moda antiga e ser antiquado do que tentar escrever da nova forma com erros, porque dificilmente conseguirei interiorizar regras para mim completamente ilógicas que me obrigam a escrever "fato" em vez de "facto" - quando sempre ouvi pronunciar o "c" da segunda palavra.

Anónimo disse...

Vou deixar de fazer versos
para o "De rerum natura",
pois por motivos diversos,
uns banais, outros perversos,
nunca gostei porventura
de fazer triste figura
em nenhuna conjuntura.

JCN

Joana Torres disse...

Caro Luís,
Em Portugal não se usará a grafia "fato" ao invés de "facto", uma vez que na palavra facto, no português de Portugal, se pronuncia o cê que antecede o tê. Assim, continuaremos a ser capazes de distinguir facto e fato.
No entanto, há uma medida que - essa, sim - me choca. As palavras graves vão perder a sua acentuação. Desta regra, surge este impasse:
Pára, do verbo parar, em concordância com o novo acordo ortográfico, escrever-se-á "para",da mesma forma que o vocábulo "para" (ex. Eu leio para entender.) De forma que, no futuro, a única possível distinção entre pára e para será o contexto. Isto sim, choca-me

José Batista da Ascenção disse...

Caro (colega) Botelho:

Há-de desculpar.
Diz em comentário lá acima que tinha um professor na universidade (já jubilado) que dizia "no meu tempo podíamos escrever como quiséssemos, desde que se lê-se de acordo com a fonética da palavra".
A ser assim esse professor "dizia". Já o colega... escreveu. Influência do dito professor?
Ora, o "desde que se lê-se", assim escrito (e não dito) é... do arco da velha.
O acordo ortográfico também deu cabo do vetusto pretérito imperfeito do conjuntivo?
Já no comentário anterior escrevia "cavidade bocal" referindo-se ao conceito "cavidade bucal". Mas aqui, percebe-se...
Agora o "lê-se" em vez de "lesse"...
E nesse mesmo comentário faz também referência à avaliação do desempenho docente. Sobre isso, gostaria de dizer-lhe que conheço situações similares à da troca do "lesse" por "lê-se", protagonizadas por colegas que foram avaliados com excelente no biénio 2007-2009! Sim senhor. E olhe que não me move qualquer sentimento de inveja relativamente a esses colegas. De resto, nem eles próprios parecem muito entusiasmados com a situação do ensino...
Permita-me mais um acrescento: se a memória não me falha, o colega fazia há dias uma distinção entre os professores menos e mais entusiasmados, sendo que, na sua afirmação, os entusiasmados corresponderiam, aos que mais se empenham na realização de diversas actividades na escola, independentemente do tempo de serviço/idade. Pois eu posso dizer-lhe que conheço imensos professores que sempre se empenharam com entusiasmo em múltiplas tarefas, e que continuam a fazê-lo. Há é uma diferença muito notória entre a alegria com que outrora o faziam e o sentimento de tristeza com que agora não desistem de o continuar a fazer. Mesmo aqueles que estão almejando, em silêncio ou em voz alta, por fugirem de um sistema injusto, frequentemente com (grande) prejuízo...
Não sei se esta circunstância "entusiasma" algum professor contratado. O que (também) seria triste. Vejo porém, e oiço, com carinho e respeito, muitos professores contratados que não conseguem esconder, e assumem, honestamente, a sua falta de entusiasmo.
Quer ver uma coisa que pode abalar o entusiasmo com que um professor se dedica à sua profissão, e com que me confrontei há apenas dois dias? Sabe que se morrer um tio (de sangue) de um professor, a falta, para ir ao funeral, não tem justificação legal? E lá se pode ir a possibilidade de aceder ao "excelente", para aqueles que se disponham a acotovelar-se no "funil das cotas". Que justiça, não acha?
Desejo, porém, sinceramente, que continue entusiasmado. E que esse entusiasmo persista por muitos, longos e bons anos.
Cordialmente.

Anónimo disse...

"!Nenhuma prótese, por mais bonita que seja, pode substituir a qualidade inerente àquele dentinho." Está enganada, os implantes de titânio são muito melhores que os dentes naturais. E as línguas mudam, muda a fala e muda a escrita, não acredita? Incidentalmente, na minha opinião, o acordo ortográfico mudou para pior. Existe mudança mas nem sempre para melhor.

Anónimo disse...

"lê-se" por "lesse": ora aí está uma calinada que mereceria um condescendente e ministerial sorriso do "capitão de abril" Vítor Crespo, o tal que, tendo recebido, do respectivo editor, uma reimpressão de um livro de José Relvas, se apressou a enviar ao autor um cartão de felicitações! No fundo... tudo bate certo! JCN

MJT disse...

Caro anónimo, tenho a impressão de que não entendeu aquilo que eu escrevi.
Em primeiro lugar, mesmo sendo o titânio um metal de surpreendente qualidade, duvido que qualquer pessoa se predisponha a arrancar voluntariamente os seus dentes sãos, para os substituir por uns de titânio. Só o fará se for necessário, isto é, se eles estiverem estragados...e se tiver dinheiro para isso.
Por acaso, o Português estava caduco? Estragado? Doente? A precisar de restauro? Com um abcesso? A necessitar de uma desvitalização? Desvitalizado, vai ficar ele agora.
Em segundo lugar, em que parte do meu comentário é que leu que as línguas não mudam? Leu com atenção? Está lá bem explícito que "...a língua é mutável, um sistema evolutivo(...) Evolui quando considera que tem de evoluir(...)evolui sempre (...) muda quando tem de mudar..." (acho que, como citações, estas chegam e sobram).
Agora, que a língua tenha de evoluir à custa de acordos forjados, sabe-se lá bem para quê e porquê, porque, para mim, as explicações que dão não me satisfazem (como se costuma dizer, eles cantam bem, mas não me alegram), de leis, à força, sem naturalidade, sem existir respeito pelos processos naturais da evolução de uma língua, parece-me a mesma coisa que dizer a uma rã que, de hoje para amanhã, ela deve passar a ter penas e evoluir para canário.Só se as colar com Super Cola 3.
Cumprimentos.
Maria João Teles

José Batista da Ascenção disse...

Ora bolas!, para mim.
Acabei de reler o texto que escrevi anteriormente e lá dei por (pelo menos) uma vírgula desavergonhada que se meteu onde não devia...
E um "fugir" que (me) derivou indevidamente para o plural...
Enfim.
Ainda acabo a reclamar acordos ortográficos à medida de cada um e de cada circunstância. Dessa forma acabaríamos com os erros na expressão escrita.
E antecipadamente declaro que não aceito prémio algum por ideia tão luminosa.

Unknown disse...

Há um exagero no texto. Nem todos o pês e cês caem. "Decepção" continua com o p, e "espectador" com o c. O texto parece estar falando de algum outro acordo ortográfico.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Língua o humor que flui.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Língua é uma coisa. Linguajar, outra.

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