domingo, 21 de novembro de 2010

A MEMÓRIA CORROÍDA

Novo texto de Eugénio Lisboa:

Pediu-me António Sopa que aqui trouxesse as minhas recordações da vida cultural na Beira, nos anos que ali vivi: Setembro de 1956 a Fevereiro de 1958.

Fui efectivamente para a Beira, um ano depois do meu regresso a Moçambique, vindo de Lisboa, onde concluíra o meu curso de engenharia electrotécnica. A literatura fora sempre, para mim, não um mero violino de Ingres, mas uma outra vida profunda, mais profunda até do que aquela que me dava o pão: o pão material vinha-me do cargo de engenheiro dos Serviços de Electricidade da Câmara Municipal (da Beira) e o pão espiritual, dos livros (de literatura, de teatro, de filosofia), da música, da pintura, do cinema.

A Beira, tal como me apareceu, nesse ano já remoto, era uma cidade improvável construída pela teimosia humana no mais improvável dos terrenos: os pântanos do Pungué e do Chiveve, exalando pestilência e desaconselhando a vida. Ali fui parar em Setembro de 1956, detestando a ideia de ali viver e suspirando de melancolia pelas areias do Macúti. Ia determinado a não me integrar, a ficar ali o menos tempo que me fosse possível. A Beira, em suma, era para ser de passagem: sete a nove meses de calor e humidade infernais por ano – era demasiado! E, depois, que havia na Beira para entreter o espírito do um luso-moçambicano, nado e criado em Lourenço Marques (capital da memória...) e com 7 anos de vida em Portugal (seis em Lisboa e um em Portalegre)? Como podemos enganar-nos! A Beira ia oferecer-me, contra todas as expectativas, 18 meses de um convívio cultural intenso e fraterno que nunca mais esqueceria. A Beira ia tornar-se, resumindo, uma das minhas cidades, uma das minhas referências afectivas e culturais que nunca mais sairiam do meu horizonte mental.

Saí de lá há 45 anos (completados há oito meses). Quase meio século é muito para que a minha memória possa ser minimamente fiel. Vou esquecer muitos factos e muita gente, sem qualquer intenção de ferir. Dizia Alexander Chase que a memória é aquilo com que nos esquecemos. É verdade: a partir de certa altura da vida – e já há muito passei esse marco – punge-nos a suspeita de que é mais o que esquecemos do que aquilo que lembramos. O que fica é apenas a pífia ponta emersa de um gigantesco iceberg.

Seja como for, aqui vão, quase ao acaso e na desordem que não consigo evitar, alguns factos culturais e algumas pessoas que recordo. Da Beira, recordo, por exemplo – e para começar pelo local onde trabalhei – uma magnífica biblioteca municipal, soberbamente apetrechada, organizada e dirigida por uma senhora polaca (D. Lia Tavares), casada com um português, Tavares da Silva (ele próprio, pessoa extremamente culta). Ali fui muitas vezes buscar leitura, visto que deixara a quase totalidade da minha biblioteca em Lourenço Marques, em casa de meus pais. Foi ainda numa sala da Câmara Municipal que fiz uma conferência sobre arte, a convite do Dr. Arez da Silva, médico e presidente de um centro cultural que então existia. O texto, apesar de fazer uma separação (polémica) entre arte e moral, foi-me pedido para publicação no Diário de Moçambique, propriedade da diocese – submetido à aprovação do bispo, D. Sebastião de Resende, não foi visto inconveniente, apesar daquela notória separação. Já isto diz um pouco da excepcional personalidade do bispo, que não poucas dificuldades viria a ter com o regime.

O café Capri, numa esquina da praça do município, era o local de encontro, à hora do almoço, dos intelectuais da terra: ali convivi com Carlos Barroso (médico dos Caminhos de Ferro e, em tempos da sua juventude, ligado à publicação de antologias do conto moderno, em Coimbra), homem culto, fino e gaguejando quase imperceptivelmente: José Manuel Noronha Marques, grande activista cultural e um dos principais dinamizadores do Cine-Clube que, em 1957, ali se criou (precedendo o de Lourenço Marques); Joaquim Elias, funcionário dos Correios e grande entusiasta de teatro que produziu, ensaiou e representou; Álvaro Simões (que ainda ali reside e mostrava entusiasmo por tudo quanto era cultura: cine-clube, teatro, literatura), Fernando Couto, jornalista e poeta, Ascêncio de Freitas que, ainda na Beira, publicaria um notabilíssimo livro de contos, Cães da mesma ninhada (Editora Notícias da Beira) e, anos mais tarde, já a residir em Portugal, daria à luz um impressionante número de espécies ficcionais, de que destaco o excepcional romance O Canto da Sangardata; Nuno Bermudes, poeta de mérito e jornalista de grande vivacidade, hoje (injustamente) quase esquecido; Garizo do Carmo, artista plástico que mais tarde iria residir para Lourenço Marques e viria a morrer em Cascais; Jorge Vila, médico e poeta de valor, que fazia vida aparte, não se associando a nenhum dos grupos ou lobbies locais; Santos Ferreira, contista dotado e dono de um estilo rico e pessoal; Lobo Fernandes, escultor de mérito, de que guardo uma cabeça de Baudelaire e uma cabeça de menina; o pintor Pádua, de reminiscências neorealistas, etc. etc.

O Cine-clube foi uma aventura e uma lança em África: não era fácil conseguir-se autorização, no contexto vigente, sobretudo quando os seus animadores constituíam todos gente suspeita aos olhos da PIDE – a qual se vingou, lançando na arena, insuspeitado por nós todos, um Dr. Horácio Catarino, pouco antes destacado para o liceu local, que se “ofereceu” para fazer a apresentação do 1º. Filme (de Emílio Fernandez) que o Cine-Clube exibiu. Nunca me esquecerei dessa sessão: Catarino sobe ao palco e, suando profusamente, desanca o filme, mostrando o mais soberano desprezo por tudo aquilo. No fim, quando procurámos por ele, tinha desaparecido. Aproximara-se de nós, inculcando-se da oposição e, num volte-face dramático, revelara as suas cores verdadeiras (a seguir, iria destruir a carreira de professor do reitor do liceu, Armindo de Brito, que acabaria por abandonar o ensino, indo trabalhar para uma companhia de seguros). A despeito deste acidente de arranque, o Cine-Clube continuou a sua actividade cultural, exibindo filmes de grande qualidade, alguns dos quais só seriam autorizados em Portugal, depois do 25 de Abril.

Outro personagem inesquecível daquela feira animada foi o capitão Forte Faria, que congeminou, organizou e publicou a revista Paralelo 20 . Ficámos amigos e nunca deixei de admirar este personagem singular. Como, já capitão, não exibisse qualquer condecoração, interroguei-o discretamente. Respondeu-me com a frontalidade divertida que o caracterizava: “É que um dia, acusei de roubo um major. Como se provou que eu tinha razão, apanhei só 5 dias de prisão...” Identificando e aliciando colaboradores, montando a revista, revendo os textos, Forte Faria, um monstro de energia e de coragem, foi dando à luz, no Paralelo, poemas de Reinaldo Ferreira (num total de sete e todos do melhor que o grande poeta nos legou), textos sobre cinema, de Manuel Pina, colaborações de Fernando Couto, Augusto Casimiro, Mendes Correia, Ilse Losa, Luís Veiga Leitão, Ascêncio de Freitas, Noronha Marques, Eugénio Lisboa, Joaquim Quitério, Forte Faria, João Rosário (também autor de algumas xilogravuras que ilustraram a revista), João Pedro de Andrade, Francisco Porto (pseudónimo de Forte Faria), Varela Ramalhete, Simões Alberto, Costa Ribeiro, etc. etc.

A citação de nomes e de títulos não dão nunca testemunho do essencial: a aquecida atmosfera de convívio entusiástico e fraterno, a circulação empenhada das ideias, o omnipresente receio da censura e da sempre vigilante (embora, para bem de todos, incompetente) PIDE, o genuíno amor aos livros, à cultura, às ideias, às emoções... Quando saí da Beira, em fim de Fevereiro de 1958, embora fosse viver em Lourenço Marques, cidade onde nascera e tinha família e amigos, confesso que parti com alguma tristeza: deixava atrás de mim uma cidade que passaria, para sempre, a ser um dos meus “lugares sagrados”, um mundo de lutas, afectos e realizações que tanto tinha contribuído para a minha formação e para aquilo que até hoje sempre fiz o possível por não deixar de ser. Joaquim Elias (estupidamente morto num acidente de automóvel, nas estrada para a Foz do Arelho), Noronha Marques (já falecido), Fernando Couto, Álvaro Simões, Ascêncio de Freitas, Forte Faria (já falecido), Carlos Barroso, Lia Tavares (se alguns esqueço peço-lhes que mo perdoem) ficaram para sempre a habitar o meu universo de recordações e afectos.

Repito: o meu testemunho vale o que vale porque a minha memória vale o que vale. Dizia Ugo Belfi que “as memórias são como as pedras: o tempo e a distância corroem-nas como ácido.” É pois com a minha memória corroída mas gratamente disponível que aqui deixo o testemunho incompleto de um inesquecível ano e meio que vivi numa Beira que não estava preparado para apreciar mas que abandonei com não pouca nostalgia.

Eugénio Lisboa

3 comentários:

Anónimo disse...

Corroída, mas não corrisiva. JCN

Anónimo disse...

Emendo a gralha "corrisiva" por "corrosiva". JCN

Anónimo disse...

Se lhe chama corroída,
que seria se não fosse:
qualquer memória da vida
estaria em sua posse!

JCN

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