domingo, 7 de novembro de 2010

É para isto que eu sirvo?...

A indisciplina dos alunos que parece (re)instalar-se no ensino superior, afirmando-se de modo mais notório em cada novo ano lectivo, e ao qual João Boavida se referiu em texto aqui publicado, está longe se ser um fenómeno dos tempos presentes, sendo recorrente em certos momentos e escolas.

Não serve esta nota de teor histórico para menosprezar esse fenómeno mas para chamar a atenção para os ambientes académicos - onde interferem variáveis cognitivas, de domínio de conhecimentos, de relação interpessoal, de valores fundamentais, de simples princípios de urbanidade, etc. - que o potenciam ou inibem. Não é, pois, uma nota assente na lógica sempre equívoca e imobilista de que "sempre foi assim", logo, "é assim", não se justificando qualquer acção.

Efectivamente, se estamos perante um problema, devemos encará-lo como tal, sob pena de as suas consequências comprometerem ainda mais o já tão débil ensino superior universitário português (falo em geral e não em núcleos de excelência que sei que existem).

Vejamos, então, dois exemplos que se reportam ao fenómeno no passado em universidades prestigiadas.

Edward Everett, Reitor da Universidade de Harvard, escrevia nas suas Memórias (1846-1849) o seguinte[1]:

“Tarefas detestáveis de manhã: interrogar três alunos que fizeram sinais a mulheres da rua nos terrenos da Universidade numa tarde de domingo; outros dois que assobiaram no corredor, outro que fumou nos terrenos da Universidade. É para isto que eu sirvo?... A vida que agora levo tem de acabar, ou então será ela que acabará comigo (...). O meu tempo completamente tomado durante todo o dia com os mais repugnantes detalhes de disciplina, capazes de pôr qualquer coração doente: fraude, dissimulação, falsidade, comportamento grosseiro, pais e amigos a aborrecer-me o tempo todo e acreditando estupidamente nas mentiras que os seus filhos lhe contam.”
A história da Universidade de Coimbra está também repleta de situações problemáticas de disciplina dos seus estudantes [2], que aconteciam sobretudo nos meses de Abril, Maio e Junho, altura de festividades académicas e da cidade. Lembremos que esta escola tinha uma cadeia e dispunha dum corpo policial próprio — a Polícia Académica com os seus Archeiros — cujo objectivo era manter a ordem. No regulamento desse corpo policial que esteve em vigor até ao século XIX pode ler-se o seguinte[3]:

“(…) a disciplina escholar dos estabelecimentos litherários [e punir disciplinarmente] os actos de insubordinação. [Essas punições constavam na] reprehensão dada na presença do secretário da Universidade e notada por elle no livro competente com os motivos que deram logar á demonstração; a participação das faltas literárias e moraies aos paies, tutores ou pessoas em quem possa tocar; a preterição na ordem ou procedência dos actos; a detenção em custódia por tempo de um a oito dias; a sahida da cidade por tempo de seiz mezes a um anno; a exclusão perpetua da Universidade.”

NOTAS:
[1] Citado em Harvard Alumni Bulletin, de 1 de Maio de 1965, 583. In Sprinthall & Sprinthall (1994). Psicologia Educacional: uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, McGraw-Hill, página 528.
[2] Sobre esta questão pode consultar-se a obra Universidade(s): História, Memórias, Perspectivas - Actas do Congresso «História da Universidade» (No 7.º Centenário da sua Fundação), 1991, vol. 3, páginas 216-361.
[3] Citação de M. R. Coimbra (1991, 330) In José Ramos Bandeira (1947). Universidade de Coimbra, Coimbra, Casa do Castelo, 2.º vol., página 140.

7 comentários:

siceramente disse...

Mas a indisciplina que agora se está a generalizar é fruto de Bolonha, em que existem faltas. Até há bem pouco tempo, só ia às aulas quem realmente queria aprender :) Básico, sou um génio!

joão boaventura disse...

A indisciplina pode ser uma derivação ou sequela não só do Processo Bolonha mas também da criação das Novas Oportunidades conjugada com a reformulação musculada do Ministério da Educação.

Já aqui formulei as consequências de acabar com os liceus e as escolas técnicas, e juntar ambas instituições em escolas secundárias, isto é, englobar no mesmo espaço duas sociedades diferentes (económica e socialmente positiva uma, e negativa, a outra) na convicção de que se acabava com a discriminação entre pobres e ricos.

Não é necessário trazer à colação o erro, mas fomos assistindo ao descalabro disciplinar nas escolas, com agressões entre alunos, de alunos e encarregados de educação agredirem os professores.

Apesar de decorridos 37 anos de democracia participativa, os erros consagrados em todas as revoluções resultam de emendar ou corrigir as instituições e os receituários do regime derrubado, destemperadamente, regulada a revolução pela celeridade da mudança, e pela necessidade de firmar e afirmar o novo regime na sociedade... e só tardiamente se verifica em que pontos o passo foi mal corrigido, e de como reconhecê-lo seria dar a face.

Relembre-se que o 25 de Abril descurou completamente o sistema educativo que andou ao Deus dará, e se não piorou aos professores dedicados e atentos - autênticos missionários em tempo conturbado - se deveu a manutenção da ordem, contrariamente aos partidos, em guerras partidárias para a conquista do poder (a educação que espere), às lutas sindicais, como se a democracia fosse a exteriorização de forças agressivas e musculadas.

A retoma do sistema educativo pelo Estado, e tardio, passou a ficar sujeito às diatribes entre os partidos, qual deles o mais sabedor, discutindo sobre o joelho as medidas mais adequadas para atalhar de vez com a indisciplina escolar e acusar os professores de incapazes, eles que assistiam à indisciplina da sociedade que exigia passagem para os filhos, com impropérios e agressões.

O aparecimento do Processo de Bolonha compaginado com a pressa de se fazerem licenciados e mestres das malas artes, no horizonte tumultuário universitário e politécnico, os cursos dos mais variados matizes e valores, emergiram e multiplicaram-se, na mira do lucro e na pressa das formaturas. Portugal povoou-se, de repente, de gente capaz, onde a seriedade imperava, e de gente que não servia. Para dizer que as escolas também acabaram por ser invadidas por professores feitos à pressa, o que levou os bons professores a pedirem a reforma. As escolas passaram a ficar mal servidas.

(continua)

Unknown disse...

Não estou nada de acordo! Bolonha não tem nada a ver com falta de civismo.
Além disso Bolonha não se aplica no ensino básico e secundário e exactamente porque não há faltas nem civismo, é que existe indisciplina neste nível de ensino. Como os alunos progridem naturalmente para o ensino superior, levam com eles a dita indisciplina...

Ana disse...

Também não acho q a indisciplina seja propriamente fruto de Bolonha... mas é somente isso, a minha opinião. Não assisti a indisciplina no ensino superior.

Mas tb me questiono, e ultimamente mais que nunca, "é para isto q eu sirvo?"...

joão boaventura disse...

(coninuação)

Como esta norma se autonomizava, a Ministra Maria de Lurdes Rodrigues, resolveu sanar o mau ambiente escolar apontando o dedo a quem não o merecia, aos bons professores, que no rescaldo da revolução conseguiram que as escolas funcionassem, como se o ambiente exterior fosse o mais recomendável para produzir trabalho.

Como a boa ética e a boa política não consiste no confronto aberto e descarado para o Ministério vir à rua dizer "os professores são os culpados pela indisciplina e pelos maus resultados", teve a subtileza de o demonstrar de outra maneira: validar ou invalidar o trabalho, dar-lhes trabalho burocrático, criar ordens, regulamentos, leis e decretos-leis, portarias e despachos... de repente, os professores transformaram-se em funcionários do Ministério, interiorizando que o seu magistério passava a ser um hobby (uma actividade que se faz em tempo de lazer).

Com estas acções em modo acelerado, de querer tudo fazer num dia o que não se conseguiu em 37 anos, o governo criava uma cortina de fumo, não para resolver problemas, mas para esconder os erros do passado que redundaram no abandono escolar e na falta de mão de obra. Como era de esperar, entre 2006 e 2008, as soluções acabaram por criar novos problemas. E houve necessidade de voltar à estaca zero.

A criação das Novas Oportunidades que foi objecto de um “study case” elaborado pelo Instituto Alemão para a Educação dos Adultos (IAEA), em resposta à recomendação da Direcção-Geral para a Educação e Cultura, da EU, no sentido de os países comunitários se pronunciarem sobre como “enabling the low skilled to take one step up”, ou como implementar um plano de acção para o ensino dos adultos, cujo desenvolvimento pode ser consultado no post Uma Nota, da Professora Helena Damião.

Pelo “study case”, o relator, face aos elementos de consulta que lhe foram cedidos, pôs algumas reticências aos resultados bem como dúvidas sobre a sua continuidade, o que pode ser consultado no Final Report Case Study Reports, apresentado pelo Dipartimento di Scienze dell’Educazione e del Processi Culturali e Formativi, da Università degli Study di Firenze. O “Centre for New Opportunities”, ínsito a páginas 148-159.

Todo o processo acelerado e atabalhoado com que o governo vem enfrentando, para tapar erros passados, tem sido pautado por um excessivo normativismo, mal pensado e mal aplicado, fazendo do governo um corpo logorreico, sem futuro, criando um ambiente de ambiguidade e irresponsabilidade com repercussões negativas na sociedade que não consegue encontrar um ponto de apoio onde possa credibilizar as acções e omissões do Estado. Num ambiente deletério sem normas racionais, em permanentes e erráticas tentativas, sem soluções, a que acresce o corte orçamental para a educação, a instabilidade instala-se e gera-se indisciplina, indisciplina que ecoa como um apelo à estabilidade, à descoberta do caminho certo por onde se possa caminhar, para produzir e singrar.

(continua)

siceramente disse...

Mas como é que se justifica a alteração do comportamento nos mais recentes anos? Antes também existia indisciplina no ensino básico e secundário mas não no superior.
A única justificação da indisciplina no ensino superior é a obrigatoriedade de ir às aulas, o que leva muitos alunos sem a mínima vontade de aprender a ter de permanecer nas aulas.
Não vale a pena justificar com mais.
Continuo a frequentar o ensino superior, agora com o modelo de Bolonha, mas entrei em pré-bolonha, e constato que as aulas têm muito mais pessoas e o comportamento piorou.
Por muito que se tentem arranjar outras justificações, esta alteração em tão pouco tempo não tem fundamento com outras medidas tomadas.

joão boaventura disse...

(continuação)

Independentemente do salto brusco da ditadura para a democracia, ou seja, do que era claro e preciso num ambiente patriarcal e espartano, para o terreno desconhecido dos cidadãos, a liberdade, confere com a passagem abrupta que vai do adolescente para o adulto. Tomou-se a liberdade por liberdade na verdadeira acepção da palavra, por certa franja da população, mas a outra, menos esclarecida entendeu que liberdade significava libertinagem ou liberalidade desregulada, ou regulada ao sabor arbitrário e das circunstâncias. Se a primeira franja manteve o norte, a segunda perdeu-lhe o sentido.

De certa forma, e insisto no tema, a marginalização do sistema educativa no pós-25 de Abril, preocupados os poderosos em arranjos de lugares, posições e orientações da casa, a juventude foi fazendo o seu caminho de liberdade, sem arranjos, nem posições, nem orientações, onde cada um fez o seu jogo, limpo uns, sujo outros, e as suas regras, éticas uns, oportunas outros. Como o caminho se faz caminhando, cada um construiu o seu à sua feição e modo de andar.

Posto isto encontramos na estrutura da sociedade, quer se queira quer não, como esclarece Wittgenstein, dois falares diferentes, onde, cada grupo social joga o seu jogo, porque exige que os jogadores, envolvidos nos respectivos grupos sociais, aceitem as regras do jogo., considerando que a linguagem de cada grupo social não é apenas um cálculo lógico, mas uma prática social. Há uma dissemia que, cultural e politicamente, torna a sociedade vulnerável pela desregulação, ou melhor, pelas diferenças de nível entre os dois grupos. Não que um seja melhor que o outro, mas porque o “habitus” de cada tem a sua identidade, pautada pelos comportamentos e atitudes sociais visíveis, em que assentam a sua vivência e a sua prática social.

Ora isso não se pode esconder, e as manifestações de indisciplina, ou na escola, ou na universidade, radicam-se nos termos regulados não apenas nas famílias, mas também de acordo com o retrato que a sociedade nos fornece no seu conjunto, quer no Parlamento onde a loquacidade se perde sem um alvo, quer na justiça onde as alcavalas políticas desenham iniquidades e injustiças, quer na educação perdida num dédalo sem saída, quer na economia desregulada pautando uma crise esperada. Se o quadro encontra uma linguagem crítica esclarecida num grupo, face ao retrato que a sociedade faz de si, e a incompreensão, intolerância e indisciplina, no outro grupo, ficam configurados os grupos pelos efeitos diferentes perante uma causa comum, causa que a todos afecta..

(continua)

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...