sábado, 12 de dezembro de 2009

A teia teológica

Novo texto de João Boavida na sequência de outros aqui publicados:

A partir do momento em que os homens inventaram deus, criaram um problema de que não mais se libertaram. Muitos se devem ter indignar com esta afirmação. Os ateus, por se julgarem libertos do problema; os crentes, por sentirem que isso não é problema. Para os primeiros, deus não existe, foram os homens que o inventaram, logo, estão fora do assunto, já saltaram dele. Os crentes, por seu lado, nem sequer entram no problema assim formulado. Se não foram os homens que inventaram Deus, mas Deus que criou os homens e tudo o resto, Deus não é problema mas aquilo que, no fundo, resolve todos os problemas.

Mas, embora por razões diferentes, é uma situação em aberto para todos nós. Porque se Deus me é transcendente, a sua compreensão ultrapassa-me. Só a fé me pode convencer dessa realidade que, justamente porque me transcende e ultrapassa, não posso alcançar por outro processo. Quando a fé falha, o problema surge ou agudiza-se. Se estou dependente de Deus pela fé, estou dependente de forças imanentes, que eu próprio crio e alimento ou enfraqueço. E que são valiosas para mim, mas que não consigo transmitir aos outros. Sendo vivências pessoais, só eu as posso sentir e reconhecer como verdade, só eu posso captá-las na sua essência. Há certamente comunidades de crentes, mas resultam de processos inter-subjectivos, que não vão ao essencial. Estando portanto assente na fé de cada um, Deus é sempre um problema pessoal em aberto. Como todos sabem, a fé não liberta ninguém dos problemas que a existência de Deus coloca, de vez em quando, mas dá-lhe uma saída na esperança. Veja-se Santo Agostinho, para não irmos mais longe.

Mas os ateus também não têm o problema resolvido. Desde o momento que a humanidade chegou à ideia de Deus (ou criou Deus na sua cabeça) nunca mais se libertou disso, porque, para lá dos factores psico-afectivas e morais, ou seja, pessoais e sociais, mais fortes do que se julga, fica a necessidade de destruir uma ideia que nós próprios criamos. (Nós no sentido de humanidade, claro). E como é da experiência corrente, não há tarefa mais difícil que querer varrer do espírito uma convicção criada por nós. Quanto mais nos esforçamos para apagar uma ideia, mais ela nos persegue.

A negação de Deus está prisioneira da ideia de Deus, e a ideia é o resultado de uma evolução de que já não podemos regressar. A ideia, pela sua natureza, ultrapassa-nos sempre. É claro que há os dados da ciência e as suas explicações cada vez mais credíveis sobre a origem da matéria e as teorias evolucionistas e o racionalismo, reduzindo as religiões a formulações míticas. Foi a evolução da ciência e do racionalismo modernos que foram reduzindo e enfraquecendo o campo da religião.

Mas se, por um lado, a evolução da ciência clarifica mistérios e destrói mitos, por outro, na medida em que aprofunda, reproblematiza, isto é, abre novas fronteiras para a ideia de tudo o que nos ultrapassa. O problema não está, pois, na coerência e nas explicações dos livros sagrados (Bíblia, Corão, etc.) nem na bondade ou maldade dos deuses, mas na própria problemática da infinidade, que num dia já remoto a Humanidade conseguiu intuir, por incompreensível que seja. A vitalidade da luta entre o espírito religioso e o que se lhe opõe, isto é, o eterno problema para crentes e para ateus está na incompreensão simultânea do finito e do infinito, na dificuldade psico-afectiva de aceitar a finitude e na impossibilidade racional da ideia de infinitude.

João Boavida
Imagem: Thor, um dos deus da mitologia nórdica.

5 comentários:

rt disse...

"A negação de Deus está prisioneira da ideia de Deus": isso só é verdade num sentido muito trivial e intelectualmente desinteressante. Nesse sentido, também se pode dizer: "A negação das sereias e dos fantasmas está prisioneira das ideias de sereia e de fantasma". Claro: temos de identificar aquilo que recusamos, aquilo que dizemos não existir. Mas isso é o mesmo que dizer: aquela gaveta está vazia. A ideia de deus é como uma gaveta vazia.

Anónimo disse...

Eu julgo, por outro lado, que as guerras que travamos na nossa vida as travamos exactamente no terreno que escolhemos. Confesso que fiquei um pouco surpreendido com o corolário da argumentação deste texto. Foi escrito para (ou por causa de) Saramago? Daquilo que conheço do homem e da sua obra, que admiro, fico com a sensação que ele assinaria por baixo o texto.E que, evidentemente, tem consciência que a tal guerra é muito mais complexa que as suas argumentações em debates televisivos com representantes do clero. Saramago interveio recentemente no assunto como ficcionista, não fez com o seu livro nenhuma tese. E com uma prosa que por sinal achei assaz divertida contou uma história que evidentemente reflecte as suas convicções ateístas, nada mais.
E o que mais polémica suscitou nem foi o livro, mas as declarações no seu lançamento acerca do Antigo Testamento. Não é a guerrra, são batalhas que ele trava ao nível que a ficção permite. Não lhe faria a maldade, como me parece que aqui foi feita, de o achar menos dotado para um nível de abstracção superior.

Anónimo disse...

A frase final do texto foi retirada, e só ela justificava o meu comentário. Parece-me melhor então retirar também o comentário

Anónimo disse...

Sobre a nova deusa - pagã,

O ciberpunk simboliza o “underground” da informática cujas palavras -chave são
o imaginário, a cibercultura e as novas tecnologias. O imaginário ciberpunk vai associar tecnologias digitais, psicadelismo, tecnomarginalidade, ciberespaço, cyborgs e poderes mediáticos, política, economia das grandes empresas multinacionais. Os cyber punks reais do “underground da informática” são os phreakers, os hackers, os crackers, os ravers, os zippies, os cypherpunks e otakus da emergente com amor através das tecnologias de ponta. Ravers e Zippies são tecno -pagãos da
cibercultura, que misturam esoterismo e novas tecnologias: espiritualidade, teosofi a, hermetismo,filosofia astral da era de aquário.
A cibercultura é pagã, monista, como crença de explicação da realidade, cuja criação
esteve a cargo da fi gura da deusa -mãe, como entidade cósmica primordial.

Cumpts,
Madalena

Vasco disse...

Eu diria mesmo mais: se deus, perdão, Deus viesse à terra e se revelasse a todos sem excepcão, o que é possível de acordo com os poderes/capacidades que se lhe atribuem, então o problema estava resolvido. Quer para uns quer para outros. Porque é que uma entidade provida de consciência conscientemente não resolve o problema da maneira mais simples? Não, estamos condenados a acreditar nele, perdão, Nele mas ao mesmo tempo a enfiar num manicómio os que dizem com ele falar ou ele o ter visto, perdão Ele e Ele... tenham paciência. Um pouco de lógica era bem vinda e não há mal nenhum em viver com perguntas sem reposta. O absoluto não existe não é verdade? Logo...

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