Uma das recordações mais antigas que tenho de miúdo é o refrão “Angola é nossa” que, nos idos de 60, passava na Emissora Nacional, acompanhado de uns rufos crescentes de tambor. A letra, cantada pelo coro da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, tinha trechos tão ridiculamente épicos como este: “Angola é nossa gritarei / É carne, é sangue da nossa grei / Sem hesitar, p'ra defender / É pelejar até vencer”.
Apesar da insistência da canção, a verdade é que nunca senti que Angola fosse minha. Estava pronto a dar a minha parte, a parte de Angola a que alegadamente teria direito, a quem fosse o seu legítimo proprietário. Devo ao 25 de Abril de 1974 o facto de, na juventude, me ter conseguido manter longe de Angola e, mais em geral, de todas as outras ex-colónias de África. Quando, aos 18 anos, ainda a Revolução estava em fraldas, tive de me apresentar em roupa interior nas inspecções militares, já não eram precisas tropas nem para Angola nem para os outros sítios africanos que antes eram “nossos” não só nas canções como nos compêndios de geografia (foi por estes que soube dos afluentes do rio Cunene e das estações da linha de caminho de ferro de Benguela). Tivesse o 25 de Abril surgido um pouco atrasado e lá teria tido a possibilidade de conhecer as enormes terras que, sobrepostas no mapa da Europa num conhecido cartaz do Estado Novo, faziam Portugal chegar até aos Urais. De nada me teria valido invocar o facto de, daltónico, não conseguir distinguir a cor vermelha do inimigo no meio do verde da paisagem...
Hoje, os tempos são outros. As ex-colónias são, felizmente, países independentes e, embora muito mais no papel do que na realidade, existe uma comunidade de países de língua portuguesa. As trocas comerciais são cada vez maiores. Vários empresários portugueses investem em Angola. E os empresários angolanos investem em Portugal. Leio nos jornais que Angola, principalmente pela pessoa de Isabel dos Santos (na foto), filha do seu Presidente, tem vindo a ganhar um protagonismo cada vez maior na nossa economia. A jovem empresária está na banca, está nas petrolíferas e, desde há pouco tempo, está também na televisão por cabo. Cada dia que passa sai a notícia de que comprou uma outra coisa qualquer. Bem sei que a economia passou a ser global e que, extinto o “socialismo real”, o capitalismo está em “big bang” em Angola, um dos países com maiores taxas de crescimento em todo o mundo. E sei ainda que o investimento estrangeiro, qualquer que ele seja, é, entre nós, muito cobiçado. Mas não deixarei de estranhar se um dia, a continuar ao mesmo ritmo o investimento entre nós da primogénita do Presidente angolano, se possa vir a dizer que “Portugal é dela”...
O capitalismo lá fará, por si próprio, o seu caminho. Julgo que pouco há a fazer a não ser a tão falada regulação. Mas talvez fosse uma ideia que a cultura também avançasse a par da economia, com a ajuda que fosse possível dar-lhe, uma vez que ela tem mais dificuldade em caminhar sozinha. Isto é, que Portugal e Angola pudessem cada vez mais ser um do outro no domínio da cultura, que tanto pode beneficiar do facto de haver uma língua comum. Apesar de todo a história e de todas as presentes transacções comerciais, os dois países permanecem em grande parte desconhecidos um do outro. Eu, por exemplo, quase só conheço Angola dos meus antigos manuais escolares, pois continuo sem lá ir. E como eu julgo que muitos portugueses. O correspondente se passará com muitos angolanos, que não conhecem Portugal. Não poderiam os grandes investidores, em particular Isabel dos Santos, colocar nas relações culturais e no conhecimento recíproco que elas sempre proporcionam uma fracção, ainda que pequena, do seu investimento? Não poderíamos todos nós investir aí?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
26 comentários:
Eu estava lá em 74. Do lado de Angola. Obrigado Carlos Fiolhais.
"o capitalismo está em “big bang” em Angola"
Admiro bastante o Dr Carlos Fiolhais, mas nesta matéria, ele é refém de conceitos errados que fazem o seu natural caminho,mesmo nas mentes superiores, como é o caso.
Chamar "capitalismo" ao que se passa em Angola, é considerar que "capitalismo" é sinónimo de "aura sacra fames".
Não é.
O que se passa em Angola é a natural e humana avidez, que existiu sempre, na China, como no Benim.
Capitalismo é outra coisa. É um estilo de vida norteado por normas que surgem no quadro de uma ética. E por isso é que o capitalismo progrediu e fez progredir países com determinadas características e não encontra lugar para se fundar, nas profundezas do Zimbabwe.
Não sei Dr Carlos Fiolhais, talvez (re) ler Max Weber e a sua "Ética protestante e o espírito do capitalismo".
Para não assumir tão facilmente a língua de pau de uma certa esquerda bem sucedida a manipular o significado das palavras e dos conceitos
Orwell falou da novilíngua...
Eu que o diga! JCN
Ah, já agora, esta notícia saída hoje num jornal moçambicano:
"José Eduardo dos Santos reconhece a existência de herança social pesada do colonialismo
Em cada 100 angolanos, cerca de 60 são muito pobres, não conseguem comer normalmente todos os dias, não sabem ler nem escrever, não têm acesso fácil à água potável e aos cuidados primários de saúde. O presidente de Angola e do MPLA, partido no poder, José Eduardo dos Santos, reconheceu ontem, na abertura do VI congresso do MPLA que decorre em Luanda, que existe uma herança social pesada do colonialismo, que foi agravada pelo longo período de guerra que aquele país viveu. Em cada 100 angolanos, cerca de 60 são muito pobres, não conseguem comer normalmente todos os dias, não sabem ler nem escrever, não têm acesso fácil à água potável e aos cuidados primários de saúde, nem casa normal para se abrigar. O desemprego, o analfabetismo e a pobreza são três problemas muito graves, difíceis de resolver e que atingem principalmente as mulheres e a vida das famílias e das crianças em particular. Segundo José Eduardo dos Santos, quando terminou a guerra, o Partido orientou o governo a priorizar a resolução dos problemas das pessoas deslocadas, a reinserção social dos ex-militares e a reabilitação das vias de comunicação e pontes para chegarmos a todos os pontos do país. O povo colaborou. “Agora os esforços do Partido e de toda a sociedade e uma grande parte dos recursos do país devem ser canalizados para a eliminação progressiva da pobreza, da fome, do analfabetismo e do desemprego”, referiu. Ainda de acordo com o presidente angolano, a criança deve ser a primeira a beneficiar deste empenho. Um bom investimento na formação e bem-estar da criança é a garantia de um futuro melhor para Angola."
Como se vê, quase 40 anos depois, a culpa é do "colonialismo".
Mas a fome parece não afectar todos. Voltamos a Orwell...todos iguais, todos afectados pelo "colonialismo", mas uns mais que outros...
"nunca senti que Angola fosse minha"
Eu senti.
Vivia lá.
Era tão minha como Portugal é dos descendentes de imigrados que cá vivem.
Era tão minha como é meu o sítio onde vivo, mas onde não nasci.
Era tão minha como as terras do sul são de um quimbundo ou de um bakongo, tão minha como as terras do norte são de um bailundo que lá viva.
O Caro Amigo é mesmo o Lidador? E já leu o Weber e o Orwell? Em Latim, ou em Romance?
Será muito difícil de perceber que um jovem que tinha dezanove anos em 1974 nunca tivesse sentido que Angola era sua? Eu não tenho dificuldade alguma em comprrender que o Caro Amigo a tivesse sentido como sua também. Também...
Não querendo disputar consigo acerca da caracterização do capitalismo, o que me confunde, com toda a franqueza, é não compreender se a desfocagem temática que opera deve ser tida como adesão ao incontrolável itinerário de enriquecimento da oligarquia angolana.
Seja, Angola é dela, Portugal caminha para lá, está o Caro Amigo em risco de perder duas pátrias. Mas continuará vituperar em defesa do capitalismo, sem saber, em minha opinião, bem o que é.
Está bem... Até há pouco o argumento da sua bancada fundava-se na alegação de que a China nunca deixara de ser uma economia capitalista. Eram também as metáforas de Orwell.
Devia reler.
OBSERVAÇÃO: O meu "Eu que o diga!" refere-se ao primeiro comentário de "ArtemInvenite" e não... a qualquer outro. JCN
"Mas continuará vituperar em defesa do capitalismo, sem saber, em minha opinião, bem o que é."
Provavelmente sobrestima a sua opinião.
"adesão ao incontrolável itinerário de enriquecimento da oligarquia angolana."
Entendeu isso? Espantoso!
E acha mesmo que "capitalismo" é isso?
Bem, algures tb chamavam Republica Democrática Alemã, justamente à parte da Alemanha que não o era. Como aliás se passa com a Republica Democrática da Coreia do Norte.
A apropriação das palavras...
Independentemente de o seu território haver sido nosso ou não, o certo é que Angola pode e deve considerar-se uma "criação" nossa, na medida em que fomos nós, os portugueses, que de uma amálgama de povos e culturas diferentes e, por vezes, antagónicos fizemos uma grande nação coesa, una e indivisível. Inquestionavelmente! JCN
Não Caro Amigo, não acho que capitalismo seja isso, é também isso. O capitalismo, bem como o totlitarismo ou a democracia virtual tendem para se omitir por detrás das denominações. Weber.
É o caro amigo quem se apropria das palavras e dos nomes. Quando discorro sobre capitalismo, ou democracia, interessa-me mais a substância.
E é por isso que encerro aqui os comentários sobre capitalismo. Porque não há espaço, como o Caro Amigo bem saberia.
Depois queixa-se por poder ser interpretado como aderindo a ... oligaquia angolana. Mas foi o Caro Amigo quem escolheu os tópicos das suas intervenções.
E tenho a certeza de que acabaria concordando comigo. Porque não adere ao incontrolável itinerário de enriquecimento da oligarquia angolana. Era o tema que ordenava a intervenção de Carlos Fiolhais.
Meu caro senhor "O-Lidador": reveja o seu latim! JCN
"não acho que capitalismo seja isso, é também isso"
Ah, é metaestável, é e não é, sempre em pé, sempre certo, diga A ou B.
Não é, mas é.
O Sokal deu um piparote intelectual nesse tipo de conversa fiada. Chamou-lhe "impostura".
Mas olhe, engana-se. Aquilo que faz a cleptocracia angolana é intemporal, já se faz há milénios. O capitalismo não tem milénios, é uma outra coisa do que a coisa que o meu amigo acredita que é. É um tipo ideal, sim, mas tb é uma prática que gira à volta da formulação teórica.
Quanto ao corrector de latinismos, reverei de bom grado o meu latim, meu caro, se me explicar porque o devo fazer.
Latim: aura sacra fames? Já lhe tinha sugerido que talvez tivesse lido Orwell em Latim, não compreendeu, consulte a gramática também. Quem não sabe Latim, pode falar Inglês, também se percebe.
E agora pode debitar aqui um tratado sobre o capitalismo. Quando terminar, avise. Eu compilo.
Senhor "O-Lidador": Longe de me arvorar em corrector de coisa nenhuma, apenas o aconselhei a rever o seu latim e, já agora, a consultar alguém que saiba da poda. JCN
" Quem não sabe Latim"
Não se lamente, meu caro. Se não sabe o significado de aura sacra fames, pode facilmente aprender. Não é preciso ser latinista. Há milhentas expressões latinas que fazem parte da paisagem cultural, mesmo para quem não sabe latim.
"pode debitar aqui um tratado sobre o capitalismo"
Aplaudo a sua sede de saber e recomendo-lhe para começar, o tal livrinho de Weber, de que falei lá atrás, para entender a diferença entre "capitalismo" e ganância.
"apenas o aconselhei a rever o seu latim "
Obrigado pelo conselho. Retribuo-o, aconselhando-o a rever o seu egípcio, e pelas mesmas razões.
Ah, se bem entendi, o seu problema é o aura.
Talvez tenha razão, mas já li a expressão ora com auri, ora com aura.
Mas perder-se nesse tipo de argumentos é como comentar a unha de quem lhe está a apontar a lua.
P.S: Já agora, que falamos de unhas, reveja aí também a "oligaquia".
Está bem, Caro Amigo, fazemos as pazes, tem razão, é tão cretino estar a ocupar aqui espaço a discutir Latim, quanto capitalismo.
Podemos ir discutindo uma coisa e outra noutro lugar. Se entrar no meu perfil, acede ao meu mail.
Ao fim e ao cabo só temos razões para entrar em conjunção, uma vez que também repudia o obsceno itinerário de enriquecimento da oligarquia angolana. Seja capitalismo, ou mera ganância.
Um aperto de mão e passemos a frente. Este tópico já leva quase duas dezenas de comentários, estando todos, no essencial, de acordo.
Afinal vossemecê... sempre está a rever o seu lati!... Só lhe faz bem. Considere também a hipótese de "aurea". De resto, é culturalmente salutar o emprego de expressões latinas... desde que se entenda o seu significado. Caso contrário, não passa de descabido ou pretencioso exibicionismo, como quem, não sabendo ler, lê o jornal de pernas para o ar... para se dar ares.
Sabe uma coisa?... Vossemecê, com esse pruridos dos conselhos, corre o risco de ser promovido... a conselheiro. Ponha-se a pau!
JCN
Caro Manuel Castro, o meu comentário sobre o capitalismo, deve-se à forma como o Carlos Fiolhais usou o termo. Quanto ao poste em si, estou de acordo, conheço bem a cleptocracia angolana e andei por lá ainda eles estavam a construir o socialismo, fazendo basicamente o mesmo que fazem agora.
Caro JCN, costuma-se dizer que quem tem telhados de vidro não deve atirar pedras.
Reveja o seu português...é caso contrário passa por "pretencioso" exibicionismo.
Ou em como se vai buscar lá e se sai tosquiado...
Caro Amigo. JCN é meu Pai. Não costumamos meter-nos nos assuntos um do outro. Por coincidência reparámos como andava a divagar, cada um por si. Não interviemos coordenados.
Ideologicamente estamos porventura em divergência, eu e meu Pai. Mas estamos sem dúvida em convergência no apreço pela cultura. E isso é o mais importante. Quanto ao resto, preside o respeito, que é também o mais importante, porque é cultura.
Se quiser ter a gentileza de passar para o meu mail, de certo que o debate será interessante. Perdoe-me, mas não consigo localizar o seu.
arteminvenite@gmail.com
Senhor "O-Lidador": onde é que fica o "lá"?!...
JCN
Vossa Excelência, senhor "O-Lidador", acaba mesmo em conselheiro! JCN
JCN, não se debata mais. Aprenda com os erros e siga em frente.
Vamos todos em frente... para a revisão!
JCN
Eu uma pessoa ignorrante acho que se os Angolanos,a comçar pelo seu Presidente dividisse o que tem a mais,para dar o exemplo.E todos os outrosque estão na mesma situação,o mundoestaria bem melhor, isto serve ,para todos os paises.
E pena paises com tanta riquesa e haver fome, onde está o SOCIALISMO,EGUALDADE.!!!!!!!!!!!!!
Enviar um comentário