terça-feira, 13 de outubro de 2009

O OBSERVATÓRIO REAL DA MARINHA

Entre os livros mais bonitos publicados este ano – e que poderão constituir óptimas prendas para o Natal que se avizinha – escolho divulgar um: “Observatório Real da Marinha”, de António Estácio dos Reis, publicado recentemente pelos CTT- Correios de Portugal.

Estácio dos Reis é um Comandante da Marinha Portuguesa que, de há largos anos a esta parte, se tem dedicado à história da nossa ciência e tecnologia, uma história que passa pelas navegações que os portugueses empreenderam. Depois de ter ingressado na Escola Naval em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, o autor percorreu os sete mares, a bordo de vários tipos de embarcações, para se vir a reformar em 1980 como capitão-de-mar-e-guerra, tendo então passado a exercer funções primeiro no Museu da Marinha e depois na Biblioteca Central da Marinha, anexa a ele, nos Jerónimos, em Lisboa. De espírito muito vivo e com a curiosidade de sempre, ele continua hoje a investigar instrumentos náuticos, aprofundando a história da respectiva construção. No seu notável palmarés de historiador da ciência e tecnologia destaca-se a descoberta do único instrumento, usando o nónio de Pedro Nunes, que foi fabricado no século em que aquele sábio viveu: foi desencantá-lo, por um “acaso feliz”, no Museu de História de Ciência de Florença. Assinou outros belos livros: um, bilingue, sobre instrumentos de navegação intitulado “Medir Estrelas”, saído também do prelo dos CTT em 1997, outro com estampas náuticas, “Os Navios do Ocidente”, publicado pela Gradiva em 2001, e outro ainda sobre “Astrolábios Náuticos”, publicado pela INAPA em 2002. Para já não falar de um outro livro menos luxuoso, mas que se lê com prazer: “Gaspar José Marques e a Máquina a Vapor. Sua Introdução em Portugal e Brasil” (Edições Culturais da Marinha, 2006), que conta a história das duas primeiras máquinas a vapor entre nós, ambas mal sucedidas: uma chegou, em 1804, a Buarcos, Figueira da Foz, às minas de carvão mas nunca chegou a ser montada, e a outra, de 1811, para imprimir moeda, era destinada ao Brasil, mas naufragou no caminho...

O seu último livro, o qual, tal como “Medir as estrelas”, é acompanhado por uma série filatélica (os mais novos já não se vão lembrar do tempo em que havia cartas com selos!), conta a história atribulada de uma instituição científico-técnica que só durou três quartos de século: o Observatório Real da Marinha (1798-1874). O livro poder-se-ia chamar “Nascimento, vida e morte de um dos mais antigos observatórios astronómicos portugueses”. Serve, para além de nos regalar a vista com as magníficas fotografias e ilustrações, para ficarmos a saber como, num país de marinheiros, foi difícil a progressão de uma instituição que era essencial para a aprender a navegar. Que diferença para o Observatório Real de Greenwich, fundado pelo rei Charles II (o consorte da nossa D. Catarina de Bragança) em 1675, nos arredores de Londres, onde, a partir de 1884, ficou marcado o meridiano de referência mundial!

O Observatório da Marinha foi criado em 1798, sob proposta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, na altura secretário de Estado de Negócios da Marinha. O seu primeiro director foi Manuel do Espírito Santo Limpo, capitão-de-fragata e lente de Matemática e Navegação da Real Academia da Marinha, que, em jovem, quando era cabo-de-esquadra no Regimento de Artilharia do Porto, foi preso pela Inquisição e levado em auto-de-fé, com o conhecido matemático e poeta Anastácio da Cunha (“O Lente Penitenciado” de Aquilino Ribeiro). O fim do Observatório era a instrução prática dos cadetes de Marinha, pelo que não admira que se situasse no Arsenal da Marinha, na zona da Ribeira das Naus, perto do Terreiro do Paço, em Lisboa (onde hoje está em curso um projecto de reabilitação urbanística que prevê uma mini-praia fluvial). Infelizmente, esse sítio não era o ideal, não só por não haver aí espaço suficiente, mas também por não haver aí as melhores condições parta observações tranquilas. A ideia bem podia ser aparentada à de Greenwich, mas as instalações eram uma pálida sombra do seu congénere britânico...

As peripécias do Observatório começaram logo à nascença. Em 1809, pouco depois de a Família Real fugir para o Brasil, acossada pelas tropas de Junot, muito do material de observação foi mandado encaixotar e enviado por uma nau para o Brasil. Estácio dos Reis diz-nos que, apesar de todos os seus esforços, se perdeu o rasto do que aconteceu do outro lado do Atlântico a esses valiosos instrumentos. Aventa a hipótese de terem sido derretidos no tempo da Segunda Guerra...

Em 1822, por motivo de obras, os novos instrumentos que entretanto se tinham reunido no Observatório foram deslocados para o Colégio dos Nobres, onde hoje é o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, na Rua da Escola Politécnica. Aí também eram precisas obras para instalação, que foram sendo dificultadas, por via até de entaipamento de janelas por ordem sabe-se lá de quem. Em 1829 entra em cena um dos principais personagens do Observatório, Filipe Folque, doutor pela Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra, que nessa data pede para lá entrar como ajudante. O director prefere empregar o seu próprio filho, mostrando que a tradição da “cunha familiar” é bem antiga. Entretanto, em 1843 um incêndio lavrava no Colégio dos Nobres, salvando-se os instrumentos astronómicos (não seria o último grande incêndio nesse sítio, como se sabe). Folque, que foi lente da Academia da Marinha e mestre de Matemática dos filhos de D. Maria II, haveria finalmente de conseguir entrar no Observatório (entretanto regressado ao Arsenal), em 1856, tornando-se um dos seus grandes impulsionadores. Foi também ele que impulsionou a construção do Observatório Astronómico de Lisboa, na Tapada da Ajuda, cujas primeiras observações datam de 1867 e que hoje está integrado na Universidade de Lisboa (a nova instituição, apesar de ter sido dirigida por oficiais da Marinha até 1930, era “civil”). Dificuldades orçamentais impediam a coexistência dos dois observatórios, pelo que o Real da Marinha foi o sacrificado. O seu edifício tinha ficado seriamente abalado por um terramoto em 1858. No meio de várias atribulações, a instituição teve uma morte inglória em 1874. Uma morte tanto mais inglória quanto alguns dos instrumentos que albervava ficaram na Escola Naval para se perderem num grande incêndio em 1916. Folque morria escassos meses depois de ver o Observatório morrer.

Estácio dos Reis deixa uma interessante proposta para recordar o Observatório. Como, nos seus últimos tempos, o edifício tinha um mastro com um balão, cuja queda marcava o meio-dia exacto, o autor propõe a construção de uma réplica desse balão na moderna Agência de Segurança Marítima Europeia, construída quase no mesmo lugar. É uma ideia curiosa, que bem podia encontrar eco...

2 comentários:

Anónimo disse...

Observação:

"(...) as minas de carvão (...)" - refere-se ao centro mineiro do Cabo Modego, para quem desconheça (hoje, desactivadas).

João Moreira

Rubem Amaral Jr., Brasília, DF, Brasil disse...

Nos trabalhos de Estácio dos Reis evidenciam-se a aguda curiosidade, a honestidade intelectual, a notável erudição, o gosto pela pesquisa profunda e incansável, o amor pelas glórias de sua pátria, o bom gosto na escolha das abundantes ilustrações e a graça e leveza do estilo. Este novo livro seu é bem uma reunião de todas essas virtudes. Felicito os CTT por haver-lhe dado novamente a oportunidade de demonstrá-las, revestindo-as da reconhecidamente ótima qualidade de suas edições.

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