Este foi o título de uma comunicação que apresentei no Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto em Fevereiro de 2007 (obrigado pelo convite!). Mais tarde, a comunicação foi publicada na Revista Eletrônica Informação e Cognição. Está aqui e poderá ser do interesse dos leitores deste blog. (Nota posterior: apesar de a conferência ter sido proferida antes da publicação do artigo, este saíu com data anterior, presumivelmente porque a revista tinha números em atraso, o que acontece por vezes nas revistas académicas. Obrigado ao Parente por me chamar a atenção para este aspecto.)
Imagem: Ciência é Medição, de Henry Marks
13 comentários:
Desiderio, gostei de ler a tua comunicacao - e' muito interessante. Curiosamente, ha' uma passagem com que nao concordo: quando escreves que, perante um problema de etica, o cientista deve consultar o filosofo especializado em etica. Nao concordo e o meu argumento e' essencialmente de natureza filosofica: so' se justifica que o cientista contacte o filosofo da etica se assumirmos 'a partida que as questoes eticas sao objectivas; ora, como muito bem apontas no texto, essa e' uma questao filosofica em aberto sobre a qual diferentes filosofos, alem dos nao-filosofos, teem opinioes diferentes. Pelo meu lado, eu julgo que as questoes eticas sao subjectivas (com algumas qualificacoes que aponta a seguir), embora sejam problemas genuinos e importantes, mas sao antes problemas de natureza convencional a esclarecer e a estabelecer pela sociedade em geral. E' claro que, a priori, se tudo o resto for igual, o peso que alguem dara' a uma opiniao sobre a materia deve depender de quao bem informada e'. Mas dificilmente se podera' argumentar que, 'a partida e independentemente de tudo o resto, uma opiniao especializada tem mais valor do que as outras na ausencia de metodos objectivos para a avaliar de forma independente. Dai', insisto eu, a natureza unica das ciencias empiricas duras (chamemos-lhes assim para evitar ambiguidades). Pode muito bem ser que as bases da etica estejam, em algum sentido, contidos no nosso patrimonio genetico (ja' que nao e' comum ver pessoas cometer barbaridades sem procurar uma justificacao 'moral' ou 'etica' mesmo para elas proprias). Como espero que se conclua do meu comentario, eu respeito e interesso-me muito por filosofia.
qunado escrevi 'bases da etica' queria dizer as bases do nosso sentido etico ....
Viva Desidério!
obrigado pelo excelente artigo. Já tinha lido um texto de Eistein sobre o assunto, mas só tinha uma idéia meio vaga sobre a questão - você conseguiu defender a importância da filosofia para a ciência com argumentos claros e simples. Muito bom.
Miguel, mesmo admitindo que as proposições éticas não são objectivas, daí não se segue que toda e qualquer opinião subjectiva tem o mesmo grau de plausibilidade, sofisticação e conhecimento das coisas. Por isso o teu argumento não funciona.
Outro argumento por ti aludido que também não funciona é o seguinte: se a ética for só uma questão de convenções, não pode haver especialistas nisso e a opinião de qualquer jumento é tão boa quanto a de qualquer outro. Isto é claramente falso. O traçado das ruas, os sentidos proibidos, onde pomos semáforos, etc., é tudo questão de convenção; podemos inverter o sentido de circulação das ruas, etc. Também o modo como construímos prédios é convencional: tanto podemos fazer prédios mais altos como mais baixos, tanto podemos fazer com varandas ou sem elas, arredondados ou não. Outro exemplo é a música. A música é claramente convencional, tanto na sua sintaxe, como no que decidimos fazer: uma sinfonia ou uma sonata, Rap ou rock. Em nenhum destes casos, apesar de serem áreas em que convencionamos coisas, a opinião de qualquer jumento é tão boa quanto a de qualquer outro. Logo, também no caso da ética isso não acontece.
Por outro lado, estás a presumir desde o início que os juízos éticos não podem ser objectivos, coisa que no meu entender é falsa. E apesar de haver alguns filósofos que concordam contigo, 1) são relativamente poucos, pois a maior parte hoje pensa que os juízos éticos podem ser objectivos, 2) mesmo os que concordam que a ética não pode ser objectiva não defenderiam que a opinião de qualquer um é tão boa quanto a de qualquer outro.
E o que te faz pensar que a ética não é objectiva? Não o disseste, mas eu já sei porque sou um jumento particularmente esperto: cientismo. Do ponto de vista do cientismo o que dá objectividade a qualquer juízo é a experiência empírica. Isto é falso, até porque se fosse verdade significaria que este mesmo juízo não teria qualquer objectividade, dado que não pode ser confirmado pela experiência.
Partilho da ideia que a filosofia é valiosa para a ciência mais por razões teóricas do que por razões metodológicas. Em todo o caso penso que não há consenso entre os filósofos quanto à natureza da filosofia, quanto à delimitação dos domínios filosófico e científico e quanto ao estatuto da lógica formal e da matemática.
© Desidério Murcho – “Filosofia não trata de problemas empíricos nem formais… trata de problemas que não podem ser resolvidos cientificamente ou matematicamente… as matemáticas lidam com problemas lógicos e formais… Filosofia não é uma ciência empírica e não é uma ciência formal (matemática e lógica). Filosofia lida com dois tipos de problemas: problemas acerca da realidade e problemas acerca do conhecimento. Assim, a metafísica e a epistemologia são os dois núcleos centrais da filosofia. Mas são também problemas nucleares da filosofia, problemas lógicos e problemas acerca dos valores (ética). Muitos problemas filosóficos são problemas lógicos, embora não problemas de lógica.”
Desiderio, eu nao disse que a opiniao de qualquer jumento e' tao boa como a de outro qualquer. Uns jumentos reflectem mais do que outros, abordam as questoes de uma forma mais proveitosa do que outros, etc etc.
A objectividade da etica:
0) se eu admito a objectividade de uma proposicao matematica, entao nao posso estar no estadio terminal dessa terrivel praga cientista ...
1) como e' que a etica poderia ser objectiva? se eu conseguir descobrir criterios (presumivelmente teoricos, mas tambem poderiam ser empiricos) para classificar ou deduzir as proposicoes eticas.
2) eu nao conheco esses criterios
3) se, porventura, fosse capaz de 'descobrir' ou 'criar' um conjunto de criterios que me permitissem 1), ficaria perante um novo problema: como justificar 'objectivamente' esses criterios? Isto e', como demonstrar que esses criterios -- por muito valiosos que fossem -- nao sao meras escolhas contingentes? Isto e', como dizer que sao validos no mundo real; por oposicao 'a validade num mundo puramente formal como e' o caso da matematica. Ou seja, por que razao eu nao poderia construir varios sistemas eticos objectivos no sentido formal (ou matematico) do termo? Diferentes axiomas, diferentes resultados geometricos. Nao e' disto que se trata quando nos questionamos se a etica e' objectiva. Pressupoe-se essa pergunta sempre num sentido que nao o da objectividade da matematica, mas de uma correspondencia entre os principios eticos e a realidade do mundo exterior independente da nossa vontade.
4) na verdade, julgo que apenas se podera' progredir por tentativa e erro na elucidacao das questoes eticas, com diferentes criterios 'ad-hoc' (nao sao menos uteis ou importantes por isso).
5) desconfio que as respostas 'as questoes eticas teem uma grande dependencia daquilo que nos pensamos ser a natureza humana e o que e' uma vida plena; e' obvio que isto varia muitissimo de cultura para cultura, e em epocas diferentes; e' tambem possivel que existam tracos comuns a todas as culturas e a todas as epocas, e que seja sobre isso que se podera' desenhar uma etica; mesmo assim, nao vejo como se possa proceder senao baseando-nos nessas concepcoes do que e' um ser humano (ok, a etica e' mais vasta: o vegetarianismo, a ecologia, etc etc ... mas simplifiquemos um pouco)
6) resta ainda a hipotese de que existe algo mais na questao do que e' a objectividade do que aquilo que eu consigo ver.
Apesar de os filósofos não serem claros quanto ao estatuto da lógica formal e da matemática, a maior parte dos filósofos analíticos ou da linguagem fazem-me crer que as duas áreas são indissociáveis, e como falar da natureza da filosofia é falar da natureza da linguagem, que esconde uma estrutura lógica profunda, os problemas da filosofia são também problemas formais e de justificação. A filosofia ocupa-se de questões do pensamento em geral e do raciocínio.
Seguindo Ryle e Wittgenstein, por exemplo, os problemas de lógica são do domínio da filosofia e não do domínio da ciência. A filosofia é sui generis e na realidade muito diferente da ciência.
Mas seguindo Quine, depreende-se que há uma continuidade entre filosofia e ciência. Para ele a lógica é uma ciência.
Daniel Dennett, apesar de se dizer wittgensteiniano, e ter sido aluno de Ryle e Quine, pensa que a filosofia está unida às ciências físicas e que são continuação uma da outra. E espera aperfeiçoar muitos pensamentos filosóficos à custa das experiências científicas. Portanto segue as ideias do seu professor Quine.
Eu penso que a física (seja o ramo puramente teórico, seja o ramo empírico) não só não conseguirá ajudar os matemáticos a resolverem qualquer teorema matemático, como também não conseguirá ajudar os filósofos a resolver os seus problemas conceptuais. Mas o contrário parece-me plausível.
A ciência é demasiado imprtante para prescindir da filosofia
Miguel, sobre a objectividade na ética podes ler a excelente introdução à ética de James Rachels, Elementos de Filosofia Moral (Gradiva). No livro A Última Palavra, de Thomas Nagel (Gradiva), todo ele dedicado ao problema da objectividade, tens um capítulo sobre a ética também.
Ambos estes filósofos, como muitos outros, defendem a objectividade da ética com base na qualidade da justificação. Um juízo ético é objectivamente verdadeiro se, e só se, estiver adequadamente justificado. E como se faz isso? Lê os livros que te indiquei. É demasiado complexo para estar aqui a explicar.
F. Dias: os positivistas viam a filosofia como mera análise de conceitos ou da linguagem.
Este idealismo da representação é hoje posto em causa pelo Novo Realismo de filósofos como Kripke, Kit Fine, Williamson, Lowe, e muitos, muitos outros.
O realismo é perfeitamente compatível com a ideia de que a filosofia e as ciências empíricas não se distinguem absolutamente, havendo antes uma continuidade natural entre elas. Esta era aliás a perspectiva de Russell, que era um realista e não um idealista da representação linguística como Wittgenstein parece por vezes ser, e parece-me mais difícil conciliar a ideia de continuidade com as ciências quando aceitamos qualquer versão de idealismo ou representacionalismo. A continuidade da filosofia com as ciências é mais plausível se a filosofia for acerca da realidade, e não acerca de estruturas linguísticas que pairam fantasmagoricamente sobre a linguagem como uma névoa mística. Russell defendia que as verdades lógicas eram verdadeiras por causa do mundo, mas que sabemos que são verdadeiras pelo pensamento apenas -- o que é incompatível com a dogma empirista de que todo o conhecimento substancial resulta dos sentidos apenas.
Henrique, eu acrescento: e é uma ilusão e das grandes pensar que se pode fazer ciência sem pressupostos filosóficos. O que se pode é fazer ciência sem saber que temos pressupostos filosóficos. Mas do mesmo modo que podemos beber água sem saber que é H2O e isso em nada muda a composição da água, também o facto de se fazer ciência sem se estar ciente dos pressupostos filosóficos que temos em nada muda a existência desses pressupostos. Não há ciência sem pressupostos filosóficos. O que não significa que os cientistas tenham todos de desatar a estudar filosofia.
Desiderio:
Se a minha opinião servir para alguma coisa, gostei de ler o artigo (não me atrevo a classifica-lo mas se o fizesse diria que é um excelente trabalho de divulgação) e penso que devia mesmo haver uma cadeira que incluisse filosofia da ciencia e metodologia em todas as faculdades de ciencia e em que este texto podia ser a introdução.
Eu posso mostrar ainda mais argumentos que o Desidério para explicar porque a falta da compreensão da ciencia por quem a practica, é um problema serio, mas isso fica para uma conversa mais seria.
Acho tambem que se os cientistas andam a fazer a sua propria filosofia, e paralela à vossa, são os filosofos que se tem de impor. Mas não pela força.
Não o quero maçar mais. Obrigado por ter aqui colocado este artigo.
Será que pode por aqui mais na mesma tematica? Que avancem mais uns passos?
Sugiro que sempre que seja confrontado com questões irritantes (para si), sugira a leitura deste texto ao candidato a "jumento" antes de iniciar uma discussão.
Isto não quer dizer que eu não mantenha algumas questoes, mas não são realmente importantes. (como o Desiderio deve calcular não deixei de ser empirista de um dia para o outro, mas isso não é contra a Filosofia!!!)
Quando o bárbaro entra em contacto com a civilização, a primeira coisa em que repara, e a que mais facilmente aprende, é a sua tecnologia. Muitas vezes fica-se por aqui; mas às vezes acaba por se aperceber que a tecnologia não existiria se não houvesse ciência aplicada. É o estádio de desenvolvimento em que estão muitos dos nossos governantes e empresários.
Mais raramente, apercebe-se que não haveria ciência aplicada se não houvesse ciência pura. Se for governante ou empresário, e como a ciência pura é cara, procurará que outros a paguem, aproveitando ele depois os benefícios da ciência aplicada e da tecnologia.
O que o nosso bárbaro raramente aprende é que para a ciência pura poder existir tem que partir de certos pressupostos filosóficos, nomeadamente sobre a possibilidade e a natureza do conhecimento. Se este bárbaro for Ministro da Educação (como tantas vezes acontece) eliminará a Filosofia dos currículos e tenderá a falar muito mais de "qualificação" do que de "aprendizagem".
Enviar um comentário