segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O ENSINO "PRONTO A VESTIR"


Post convidado da professora Maria do Carmo Vieira, de quem já aqui publicámos um extracto da entrevista que deu à revista "Notícias" do "Diário de Notícias" e do "Jornal de Notícias":

Contagiados pela febre de catalogar e incapazes de pensar pela sua própria cabeça, têm-me descrito, uns, como «lamentavelmente fascista», outros, como «sonsa comunista», outros ainda, como estando «a soldo do PSD para destruir o governo socialista», e há também quem me descreva como «agitadora catastrofista», ignorando, sobretudo, estes últimos, que são eles próprios os agitadores ao pretender limitar a liberdade de pensamento e de expressão, que em boa-hora o 25 de Abril nos trouxe. Esquecem ainda que «as ideias têm asas e ninguém as pode impedir de voar», recuperando as palavras do realizador egípcio, recentemente falecido, Youssef Chahine, no seu inesquecível filme «O Destino».

Por conhecimento de causa, continuarei a afirmar que o nivelamento por baixo, que oficialmente se instituiu no ensino (lembremo-nos das palavras recentes do Dr. Jorge Pedreira a propósito do ensino em Portugal ser demasiado exigente), faz com que os alunos deixem de acreditar nas suas próprias capacidades, perdendo a vontade e a perseverança, que acompanham habitualmente o desenvolvimento de todo o estudo. É uma forma deselegante, no mínimo, mas também muito elitista, de dizer antecipadamente aos alunos, sobretudo aos da Escola Pública, que são uns incapazes. Com perversa doçura, qual droga que vai corroendo, entrega-se como oferta aos alunos «o êxito a que têm direito» (palavras do coordenador do GAVE) que assim se viciam na crença de que tudo se consegue sem trabalho. E, no entanto, inteligentemente reflectiu Albert Einstein: O único sítio onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário.

Inebriados pelo facilitismo e estimulados pelo passa palavra de «em pouco tempo faz-se...» (e completamos a frase, o 2º ou 3º ciclos e o secundário) correm também muitos daqueles que, por motivos vários, interromperam, ou tiveram de interromper, os seus estudos, a inscrever-se nos cursos das novas oportunidades, não compreendendo, muitos, ou sequer admitindo, que os objectivos delineados assentam não na preocupação de formar, mas de atingir metas estatísticas.

É por ter conhecimento de como se processa este ensino «pronto a vestir», desenhado na base de um suposto «quadro de competências», que põe de lado a noção de programa, transformando-o em pózinhos de saber disto e daquilo (as tais aprendizagens ou saberes ) e que rejeita o diploma, agora tornado certificado («validação das aprendizagens»), de coisa nenhuma, que desejo transcrever as directivas comunitárias, as quais calarão quem tem vindo a insultar e a desmentir os que criticamente têm escrito sobre o assunto, nomeadamente o professor Rui Baptista. Com efeito, cedeu-me uma colega do 1º ciclo textos vários, que colegas franceses, por sua vez, lhe enviaram, os quais demonstram que tudo é orquestrado do exterior, de forma a formatar na obediência e na ausência de espírito crítico. Lendo-os, compreendemos o manifesto desprezo pelas disciplinas de Humanidades, o aligeiramento da matéria científica, o facto de a Escola servir quase exclusivamente para responder ao mercado de trabalho, o porquê da conhecida e divulgadíssima expressão «aprender a aprender», a defesa exaustiva da autonomia das escolas, ou ainda o espírito que rege a avaliação de desempenho dos professores, centrado nos bons resultados com os seus alunos, mediante o cumprimento acrítico das ordens impostas, num convite descarado à desresponsabilização do acto de ensinar. Mas debrucemo-nos, então, sobre os cursos ditos de «novas oportunidades», cuja planificação se inscreve no «Programa de trabalho, educação e formação para 2010», ditado pela Comissão Europeia, e que preconiza que «Os Estados membros devem acelerar o ritmo das reformas do seu sistema de educação e de formação (...)», e daí o célebre «Debate Nacional sobre Educação», cujas áreas temáticas se definiram tendo em conta essas mesmas reformas. Em lugar, por exemplo, de programas, privilegiam-se agora «oito competências-chave» que assegurarão a «Educação e a formação ao longo da vida». Eis as suas designações: Comunicação em língua materna; Comunicação em língua estrangeira; Cultura matemática e competências de base em ciências e tecnologia; Cultura numérica; Aprender a aprender; Competências interpessoais, interculturais e Competências sociais e cívicas; Espírito empresarial; Expressão cultural.

De um folheto de uma Escola de Lisboa, divulgando o trabalho de um «Centro de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (CRVCC)» (ou seja, o lugar ao qual se devem dirigir os candidatos às «novas oportunidades»), transcrevo, não só o texto «Objectivos: «O sistema RVCC é uma oferta do Ministério da Educação que lhe dá a possibilidade de reconhecer, validar e certificar os conhecimentos e as competências resultantes da experiência que adquiriu ao longo da vida», mas também a «Validação»: «Realiza-se perante um júri que valida as competências demonstradas por si, no decorrer do processo de Reconhecimento, de acordo com o Referencial de Competências-Chave. Decalcadas das competências-chave, anteriormente enumeradas, surgem as matérias dos referidos cursos das novas oportunidades: «Linguagem e Comunicação; Matemática para a Vida, Tecnologias de Informação e Comunicação e Cidadania e Empregabilidade».

Não virão agora certamente desmentir a existência de um sistema perverso, cozinhado pela Comissão Europeia, que finge formar e educar, num manifesto desrespeito pelo papel da Escola e do professor, pela dignidade dos alunos, seja qual for a sua idade, e do próprio Saber. Cumprem-se ordens. Uma atitude que exige a abdicação de pensar e a anulação da nossa própria consciência e que tem servido de justificação ao longo da História para as maiores aberrações.

Por acaso já leram «Desobediência Civil» do escritor Henri Thoreau?

Maria do Carmo Vieira

6 comentários:

joão boaventura disse...

Não li a "Desobediência Civil", mas tenho lido e relido "Le droit d'ignorer l'État", de Herbert Spencer.

Isto para dizer que Hitler, na hora da derrota que se avizinhava, terá dito que "a culpa era dos alemães", ou seja, por terem sido apáticos, submissos, servis ("La route de la servitude", Hayek, Friedrich A.)("L'homme-machine", La Mettrie, Julian Offray).

Assim percorre, escorre e discorre a educação nacional sob o regime monárquico, autista e centrífugo, sob o ceptro da Rainha Maria III.

A culpa é dos portugueses que se dividiram e multiplicaram em mil sindicatos, puxando cada um para seu lado,e centenas de associações, pensando cada um a sua doutrina, a fazerem de bobos da corte, em vez de falarem a uma só voz, unidos numa só frente.

A República já não é o que era.

Rui Baptista disse...

Estimada Colega: Foi com muito agrado e maior proveito que vi publicado o seu "post" que trouxe a opinião de uma corajosa lutadora sobre factos que se passam na penumbra dos gabinetes do ME, em obediência a directivas da Comunidade Europeia, e que era tempo de serem conhecidos à luz do dia. Eles aí estão, em toda a crueza da verdade.

Apenas um pequeno reparo: só a sua grandeza d'alma justifica a bondade da referência que faz à minha pessoa numa combate estrénuo e desgastante onde sou um simples soldado raso na mesma trincheira da autora do "post" com as estrelas do generalato conquistadas com todo o mérito.

joão boaventura disse...

Para quem quiser ler a “Desobediência Civil” de Henri Thoreau

joão boaventura disse...

Ler
« L’homme machine », de La Mettrie, aqui, e
« The man versus the state», de Herbert Spencer,aqui

Também aconselharia a leitura de
«La tyrannie de la pénitence. Essai sur le masochisme occidental », de
Pascal Brukner, Grasset, 2006
Onde se pergunta : « Et si la contrition était l’autre visage de l’abdication ? »

Armando Quintas disse...

Ora estas politicas da união europeia mais não são que formar mão de obra barata e mal qualificada, e portugal aproveita porque ganha na estatistica e no subsidio.
Não há incentivo ao estudo, abandona-se a escola cedo, depois dá-se aos meninos 1 curso no iefp ou numa escola profissional para terem ou o 9º ano ou o 12 ano, eles saiem mal formados, e aqueles que vão exercer algum oficio com base nessa situação vão estar sempre na base da piramide, mão de obra mal formada e barata, por sua vez, temos muitos outros jovens que vão para a universidade pública, onde o ensino está literalmente 1 porcaria, pagam uma fortuna em propinas, não têm condições materiais para trabalhar e depois saem e não arranjam trabalho, querem ir tirar formação, dificilmente conseguem porque a maioria da formação que há é de nível 3 e 4 para gente que quer fazer o 9º ano e o 12º ano à pressão.
Entretanto as universidades estão-se a elitizar novamente e daqui a uns anitos quem estuda nela voltam a ser apenas os meninos ricos, os pobres escolhem aquilo que pare eles há, os trabalhos mal remunerados e precários.
As culpas são dos governos mas sobretudo dos cidadãos, se houvesse pais como deveria ser e educassem os filhos como deveria ser haveria uma pressão muito maior no estado para as coisas se fazerem como deveriam, mas isso não acontece porque o país se prostituiu à subsidio-dependência!
Quando terminarem os quadros comunitários de apoio, lá pra 2013 como é?

Ana Cristina Leonardo disse...

«É uma forma deselegante, no mínimo, mas também muito elitista, de dizer antecipadamente aos alunos, sobretudo aos da Escola Pública, que são uns incapazes.»

Esta é, verdadeiramente, a parte que mais me angustia. Porque, naturalmente facilistas (o esforço aprende-se) os miúdos não percebem que estão apenas a coarctar-lhes a inteligência, o espírito crítico e, provavelmente, o futuro. Chamar a isto ensino democrático é de uma perversidade criminosa.

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