quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Empurrar o mundo


Quais são as fronteiras entre o activismo e o trabalho académico? Eu, os meus companheiros de blog e muitas outras pessoas queremos empurrar o mundo numa dada direcção: mais ciência, mais conhecimento, melhor ensino, mais cultura. Em grande parte porque acreditamos no valor intrínseco destas coisas, mas também porque tendemos a crer que os piores disparates da humanidade resultam de obscurantismo, irracionalidade, prepotência, falta de conhecimentos sólidos.

Mas é perigoso transformar o trabalho académico — que inclui, ou pode incluir, o trabalho de ensinar e divulgar a área da nossa especialidade — em activismo. Todo o activismo tende para a simplificação grosseira, a mentira e a prepotência: trata-se de empurrar o mundo numa dada direcção, procurando eliminar, ainda que não fisicamente, quem quer empurrar o mundo noutra direcção. Isto implica quase invariavelmente a traição do princípio fundamental que tem de orientar todo o trabalho académico de excelência: o amor pela verdade, rigor, precisão, atenção aos pormenores, abertura à crítica, consideração cuidadosa de ideias opostas. Tudo isto exige uma serenidade que não se adequa à luta política que é oportunista, suja, rápida, feita de golpes de bastidores e que conta com a imensa maioria que não pode realmente saber se estamos a dizer a mentira ou a verdade, porque ninguém pode ir estudar tudo e mais alguma coisa em profundidade para o saber. Isto levanta um problema simultaneamente epistemológico e político.

Temos de confiar uns nos outros — confiamos quando nos dizem que realmente houve Segunda Guerra Mundial, que o mundo já existia antes de nascermos, que Neil Armstrong foi à Lua com Buzz Aldrin. Não há maneira de cada um de nós testar tudo. Para isto ser possível, contudo, o número de pessoas cognitivamente confiáveis tem de ser superior, muito superior, ao número de pessoas inconfiáveis. Tal e qual como na vida diária: se a generalidade das pessoas não fosse razoavelmente honesta, não seria possível pôr um polícia atrás de cada pessoa (e o que iríamos pôr atrás de cada polícia?). Se a generalidade dos académicos contaminar o seu trabalho ideologicamente, por querer empurrar o mundo numa dada direcção, ficamos todos sem poder confiar no que lemos, nas aulas a que assistimos, nos artigos que lemos. Formam-se então grupos académicos de pressão, e quem empurra o mundo para um lado faz as suas revistas académicas e funda o seu conjunto de pares, e quem empurra o mundo para o outro lado faz o mesmo.

O que acontece depois? É um mundo académico hobbesiano e impossível. Não gostei do livro de combate do Dawkins sobre Deus porque é mero activismo ateu — não tem uma ponta de discussão séria — e a partir do momento em que ele entra no activismo ateu, perde a autoridade como biólogo. Eu agora já não sei se ele me diz realmente a verdade quando me diz seja o que for sobre biologia, ou se é como os criacionistas, que mentem o tempo todo para empurrar o mundo para onde eles querem. Fazer o que Dawkins fez pode ter sido o melhor que os criacionistas poderiam ter desejado. Repare-se que o ataque criacionista baseia-se precisamente na ideia de que os biólogos defendem apenas ideologicamente a teoria da evolução pela selecção natural, por ser uma aliada do ateísmo, sabendo que é falsa, mas ocultando isso das pessoas. Dawkins ajuda a tornar plausível esta ridícula teoria da conspiração.

Nada fazer perante os ataques da direita religiosa à ciência e à racionalidade não é opção, e não é isso que estou a advogar. Mas cair na armadilha do activismo, como Dawkins, pode não ser desejável. Alternativa? Não tenho. Ser intelectualmente honesto, ensinar honestamente, escrever e publicar honestamente, defender a verdade e a tolerância, a racionalidade e democracia, não fingir que sabemos o que realmente não sabemos, poderá parecer insuficiente a quem se sente impaciente por empurrar o mundo numa dada direcção. A chatice é que eu não sei se esses empurrões realmente funcionam como se deseja, ou se pelo contrário atropelam aquilo mesmo que estávamos a querer salvar. O que será melhor? Uma multidão ignara e supersticiosa, ou uma multidão igualmente ignara e ateia? O problema, parece-me, é a multidão; a palavra de ordem que se grita é quase irrelevante. Como escreveu Orwell, “O inimigo é o espírito de gramofone, quer concordemos quer não com o disco que está a tocar nesse momento.”

19 comentários:

disse...

Bom dia
Sou católico convicto - frequento nesta altura na faculdade o curso de Ciências Religiosas - não sou absolutamente nada criacionista e sou um amador das filosofias e das teologias. Sigo há bastante tempo com bastante interesse o vosso blogue, cujos posts disponibilizo muitas vezes aos professores e alunos com quem trabalho - somos um colégio católico. Abomino qualquer tipo de extremismo, qualquer que seja a sua origem, e creio que a sabedoria encontra-se algures no equilíbrio difícil mas possível entre fé e razão. Por isso recorro muitas vezes à vossa razão para questionar (e assim moderar) a minha fé.
Obrigado

José Pinho

João disse...

É isso que também não compreendo no Dawkins, porque é que é tão importante para ele? Acho que não será talvez activismo mas anda lá perto. Muito perto. So falta ver o Dawkins de cartaz na mão em Picadilly e a gritar por um megafone.

Não estou de acordo que isso faça ruir todo o conhecimento que ele produziu e divulgou até agora. Da mesma maneira não acredito que todos os criacionistas mintam sobre tudo e mais alguma coisa. Estou convencido que o Desidério estara de acordo.

Gostei do post, foi dos que gostei mais até agora.

PS: li algures, que no brasil, se anda a fazer uma declaração conjunta entre bloguistas de ciencia para se desmarcarem do extremismo do Dawkins, apesar de seguirem muitas das suas ideias.

Fernando Dias disse...

Este é um interessante artigo e estimulante de diálogo. Quanto ao Dawkins já temos feito considerações acerca do seu fundamentalismo religioso e científico. O que tenho pena. Por exemplo S.J.Gould foi noutra direcção. Mas este texto é de facto de uma grande felicidade não só em relação ao Dawkins, como remete para muitas outras coisas interessantes.

Por exemplo, pego nos seguintes excertos :

“O que acontece depois? É um mundo académico hobbesiano e impossível.” …”O que será melhor? Uma multidão ignara e supersticiosa, ou uma multidão igualmente ignara e ateia? O problema parece-me é a multidão: a palavra de ordem que se grita é quase irrelevante.”,

- para suscitar ao Desidério considerações acerca do conceito de multidão à luz do De Cive de Hobbes, ou à luz do Tratado Político de Espinosa.

Fernando Dias disse...

Hobbes no De Cive faz distinção entre povo e multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade e a ele pode atribuir-se uma acção; mas nada disso se pode atribuir a uma multidão. O povo significa o poder, a multidão significa a obediência. Há muitos que em nome do povo incitam a multidão contra o povo. O povo na teoria hobbesiana é a multidão sem multiplicidade, a diferença e o conflito subsumido numa só vontade, que num dado momento pode ter de ser exercido à custa da espada.

A idealização do direito hobbesiano é rejeitada por Espinosa no TP. A política tem de se fazer com a natureza efectiva dos homens, com a razão e os afectos, impossível de os neutralizar. A discordância de Espinosa em relação a Hobbes reside na diferente valoração da multidão. Espinosa concebe a multidão como capaz de configurar uma comunidade política, intrisecamente portadora da sua carga de razões e paixões – a “potência da multidão”. Aliás, já Maquiavel havia posto em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão.

Ítalo M. R. Guedes disse...

Caro Desidério,
Este foi o post mais lúcido que já li sobre o ativismo conflitando com a atividade acadêmica, aliás, é um dos melhores e mais bem escritos posts que já li.

Nuno Sousa disse...

Uma questão completamente fora do contexto, mas será que alguem sabe dizer quem é o autor da pintura associada ao artigo.
Obrigado

Nuno Sousa

Nuno Sousa disse...

Obrigado, mas já descobri.
William Dyce.

Cumprimentos

João Vasco disse...

Desidério:

Se este texto defende que os académiscos não se devem envolver em diferentes causas políticas, discordo a 100%. Que nunca devem ser activos na divulgação dos seus ideais, discordo a 100%.

Mas se o texto defende que os académicos não devem "contaminar" ideologicamente o seu trabalho académico, aí não podia concordar mais.

Mas se é este o caso, o exemplo de Dawkins parece desajustado. Eu nunca li o livro dele (God delusion) - ainda tenho outros na lista antes desse - por isso não sei se é bom ou mau. Mas mesmo que assuma que é muito mau, a verdade é que o livro não pretende ser um trabalho académico.

O trabalho académico de Dawkins é sobre biologia, e que eu saiba o ateísmo de Dawkins não "contaminou" o conhecimento que este produziu nesta área. Na verdade esse é um risco mais sério nas ciências humanas, e tanto quanto sei há quem defenda que essa "contaminação" é legítima e louvável (assumindo que se as pessoas acreditam em A, então B pode tornar-se real, e então se B é bom será um imperativo ético defender A cientificamente). Discordo completamente desta ideia.

A mesma razão me leva a não considerar que o facto de poder ser usado pela propaganda criacionista deva calar Dawkins. Discutam-se as ideias, promova-se a clareza, o rigor, a honestidade.

Se Dawkins escreveu um mau livro (não sei se é o caso), paciência. Mas creio que os cientistas não se devem coibir de se pronunciarem publicamente a respeito de diferentes assuntos, e até de serem "activistas". Desde que o seu trabalho académico não fique adulterado por isso.

E até penso mais facilmente noutro tipo de causas políticas do que na questão da religião. Isso enriquece o debate público, e fortalece a democracia.

João Vasco disse...

«Eu nunca li o livro dele (God delusion)»

O último livro dele, digo. Li outros e gostei.

Barba Rija disse...

Eu concordo absolutamente com o João Vasco e discordo com o Desidério. O activismo faz parte da humanidade e esta frase:


O problema, parece-me, é a multidão; a palavra de ordem que se grita é quase irrelevante. Como escreveu Orwell, “O inimigo é o espírito de gramofone, quer concordemos quer não com o disco que está a tocar nesse momento.”

..., peço desculpa, é auto-refutante, pois não é o blog um gramofone? Demita-se então de dizer seja o que for, se quiser ser coerente! Ah, está a ver? Calar quem não gostamos é sempre mais fácil do que calarmo-nos a nós próprios. No entanto, felizmente, sempre existe a liberdade de expressão, e Dawkins tem todo o direito de fazer o activismo ateu que faz, independentemente de ser ou não politicamente correcto. O seu ateísmo nasce também de factos, como a evolução, e é bem natural que esse naturalismo dele o influencie nessa direcção, e que tenha um impulso em partilhar com os outros essas ligações que ele vê.

Repare que ninguém toma o livro "The God Delusion", que já li, por científico. É claramente um ensaio filosófico de pouca qualidade técnica (penso que o Desidério conseguiria encontrar erros técnicos página sim página não), mas de grande sensibilidade pessoal, é o que ele pensa sobre o assunto. Isto de meter o cientista na gaveta e apenas perguntar-lhe o que pensa "enquanto cientista" é, a meu ver, destruir o ser humano que também ele é. Que todos nós somos.

Aquilo que temos direito de saber é, no entanto, se aquilo que ele está a dizer é "peer-reviewed" ciência hard core ou mera opinião pessoal.


O mesmo digo dos activistas do aquecimento global. Para mim, é totalmente possível que um James Hansen tenha opiniões bastante activas sobre o assunto. O que já não suporto é que o homem abuse da sua posição e confunda o seu activismo com aquilo que a ciência realmente diz.

Não vejo essa confusão em Dawkins. Mas estou sempre aberto a correcções.

Barba Rija disse...

PS: a própria frase de Orwell é hilariante, visto ser ele próprio um escritor altamente bem sucedido com ideias bastante claras sobre os perigos que o mundo corre. Que as diga com um gramofone ou usando metáforas e parábolas literárias, qual será a grande diferença? E acusando a primeira maneira não será apenas hipocrisia da sua parte?

João Vasco disse...

Barba Rija:

Não creio que houvesse qualquer hipocrisia em Orwell, mas isso dependerá da leitura que se faz dessa passagem.
Tanto quanto li, era uma crítica à "psicologia de massas", bastante acertada por sinal. O contexto da passagem mostra que o problema não é o "gramofone" em si, mas sim à forma como as multidões lhe reagem (sem que importe muito a força dos argumentos).

Um exemplo disto é o prós e contras. É muito interessante ver a reacção do público, que tende a apludir os argumentos ditos mais convicção ao invés dos argumentos mais sólidos. Podem aplaudir até ideias contraditórias entre si, mas dificilmente aplaudem uma ideia brilhante dita com pouca convicção. Isto é o "espírito do gramofone" que tende a ser usado por quem quer ter controlo das multidões.

João disse...

Barba Rija:

Estou em boa parte de acordo contigo acerca do activismo. No caso de Dawkins o que eu não compreendo são as motivações para tanta intolerancia.

Mas disseste um coisa que fiquei a pensar


"e confunda o seu activismo com aquilo que a ciência realmente diz"

e o que é que a ciencia realmente diz? E como chegaste a essa conclusão?

Barba Rija disse...

Bem, ok João Vasco, concordo com essa questão do gramofone vista dessa maneira. Não compreendo então como é que alguém pensa que o Dawkins grita ao gramofone, a escrever um livro (?!). Não nos podemos esquecer que a Inglaterra não é o país mole que Portugal parece ser. Lá, existe um debate religioso muito enfurecido, com islamitas a reinvindicarem alterações à lei para poderem usar a Sharia na solução dos seus problemas. O que é insano. E no entanto, estas coisas estão de facto a ser legalizadas.

O apelo à conversa mole do Desidério está completamente dessincronizada com a realidade política actual.


João,

E o que é que a ciencia realmente diz? E como chegaste a essa conclusão?

Falo da diferença entre as incertezas do que a ciência professa que se transformam em certezas absolutas quando proferidas pelo cientista em questão de modo a avançar a sua agenda.

No fundo, é disto que o Desidério teme. E no entanto, não vejo como isto tem sequer relação com aquilo que o Dawkins faz.

Filipe Moura disse...

"Se este texto defende que os académiscos não se devem envolver em diferentes causas políticas, discordo a 100%. Que nunca devem ser activos na divulgação dos seus ideais, discordo a 100%.

Mas se o texto defende que os académicos não devem "contaminar" ideologicamente o seu trabalho académico, aí não podia concordar mais."

Também fiquei com a mesma dúvida do João Vasco ao ler este texto. E concordo com ele.

João disse...

"Falo da diferença entre as incertezas do que a ciência professa que se transformam em certezas absolutas quando proferidas pelo cientista em questão de modo a avançar a sua agenda."

Ainda ha pouco referia que ha um consenso cientifico fortissimo acerca do aquecimento global. Achas que não se deve agir então?

Joao Augusto Aldeia disse...

«Todo o activismo tende para a simplificação grosseira»

Sim, é verdade, mas essa simplificação é a essência da vivência humana. Quando um vizinho nos lixa, temos de o classificar (grosseiramente) como um tipo desqualificado; imagine-se agora a pensarmos sofisticadamente: "bem, ele anda a lixar-me, mas por outro lado, é um ser humano, há-de ter qualidades e defeitos, etc." —; do mesmo modo, a relação humana normal com familiares e amigos simplifica em sentido oposto.

Pode perguntar-se: mas não poderiamos todos ser um bocadinho mais sofisticados? Eu respondo com outra pergunta: mas isso não é a velha utopia do "homem novo"?

Também se pode aventar: ao menos a política poderia ser um bocadinho mais sofisticada. E eu respondo: mais sofisticada significa ser mais científica (informada pelos conhecimentos científicos, académicos, etc.) — porém, isso levar-nos-ia a substituir os políticos eleitos por sábios diplomados, quiçá os Prémios Nobel"; era capaz de ser pior a emenda do que o soneto.

João Lisboa disse...

"O que será melhor? Uma multidão ignara e supersticiosa, ou uma multidão igualmente ignara e ateia? O problema, parece-me, é a multidão; a palavra de ordem que se grita é quase irrelevante"

O problema não será - com multidão ou sem multidão - os polos em oposição terem obrigatoriamente de ser "iganara e supersticiosa" vs "ignara e ateia"? Porque não "informada, culta e ateia"?

Por outro lado, não entendo por que se ACUSA o Dawkins de "activista", "militante" e "intolerante"... justamente o que mais admirei no livro (li-o) foi a atitude de recusar que, perante temas acerca dos quais a ciência não possui resposta, se admita... tolerantemente... que as religiões se possam pronunciar.

Não será, tacticamente, o mais sensato. Mas há "intolerâncias" com um enorme potencial higiénico.

Anónimo disse...

Este artigo é activista. Defende activamente o status quo, atacando quem se envolve em acções para o combater. Não empurrar o mundo é deixá-lo ficar onde está. Mas quem julga este Desiderio que engana? O tipo toma uma posição, e pretende pairar acima de lutas de facções. Comece por criticar a quantidade de cientistas que apoiando-se na autoridade e na visão da ciência como estando acima de lutas ideológicas propõem teorias sociais puramente ideológicas como a sociobiologia humana ou o persistente renascimento do racismo científico ou a pretensão da economia ser uma ciência objectiva e não a santificação da sociedade existente, naturalizando categorias sociais e históricas.

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