sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Outros exorcismos

Matthew Cobb é um biólogo na Faculdade de Ciências da Vida na Universidade de Manchester que estuda a genética do comportamento e química da comunicação em insectos. Ou, como se descreve, é um «neurobiólogo evolucionário - estou interessado em saber como a evolução moldou os sistemas sensoriais e comportamento animal através de genes e redes neuronais».

Cobb é igualmente um historiador de ciência cujo interesse na biologia e biólogos do século XVII se deve ao facto de considerar que «estudar a história da biologia enriquece a minha investigação e permite uma perspectiva muito valiosa para a compreensão dos problemas de hoje».

Este livro fascinante, com uma capa igualmente fascinante, conta-nos a história dos feitos filosóficos e científicos do século XVII que estiveram na base da nossa compreensão sobre a reprodução. Ao mesmo tempo, Cobb dá-nos uma visão realista e colorida, mas sem qualquer estetização, da sociedade da época descrevendo o contexto cultural, social e político em que estas descobertas pioneiras foram efectuadas.

A história desenvolve-se em torno de cientistas e pensadores principalmente na Holanda (que atravessava a sua «golden age», com um ambiente fértil para o renascimento das artes e da ciência), mas também em França, Itália e Inglaterra e sobre as descobertas que alteraram a forma como se olhava a reprodução, ou antes, a «geração» como se pensava na época. De facto, nesses tempos em que as deduções filosóficas de Hipócrates e Aristóteles eram muitas vezes impostas,* pensava-se que os insectos se «geravam» espontaneamente do pó e matéria orgânica em decomposição e que os embriões humanos tinham origem no sangue menstrual. Os ovários, por exemplo, eram considerados orgãos vestigiais como os mamilos dos homens, os «testículos femininos» como eram designados.

Entre esses pensadores incluem-se alguns já abordados no De Rerum Natura como William Harvey ou Anton van Leeuwenhoek. Mas também são actores principais nesta corrida Francesco Redi, o médico e poeta italiano que contestou o princípio activo de Aristóteles com as suas experiências em que mostrou que as larvas não nascem por geração espontânea, Reinier de Graaf (o mesmo que deu nome ao folículo do ovário maduro, designado por «folículo de Graaf»), Nicolas Steno, que embora mais conhecido por ser um dos pais fundadores da geologia moderna, teve contribuições importantes para o estudo da anatomia e lançou as bases para a teoria da evolução de Darwin com a sua hipótese de que o registo fóssil era também um registo cronológico de criaturas diferentes que viveram em épocas diferentes.

Claro que Jan Swammerdam, o autor da Historia Insectorum Generalis de que se reproduz uma ilustração e do «The Book of Nature», o livro revolucionário que determinou o interesse de Cobb neste período da História da ciência, não pode faltar nestoutro que descreve de forma magistral como são indissociáveis o trabalho científico destes pensadores e a vida cultural e social do século XVII.

Swammerdam, cujas observações sobre insectos o levaram à catalogação destes em quatro grandes divisões segundo o grau e o tipo das suas metamorfoses, das quais três foram mantidas na classificação actual, foi igualmente quem lançou as bases da neurobiologia ao propôr que o comportamento animal se baseia em estímulos nervosos.

Exorcizing the animal spirits: John Swammerdam on nerve function (formato pdf) é o título de um artigo de Cobb na Nature Reviews que realça esta faceta do visionário pensador do século XVII. Este artigo, que vale a pena ler, embora restrito a Swammerdam, de certa forma sumaria as ideias expressas no livro «The Egg and Sperm Race»:
«For more than 1,500 years, nerves were thought to function through the action of ‘animal spirits’. In the seventeenth century, René Descartes conceived of these ‘spirits’ as liquids or gases, and used the idea to explain reflex action. But he was rapidly proven wrong by a young Dutchman, Jan Swammerdam. Swammerdam’s elegant experiments pioneered the frog nerve–muscle preparation and laid the foundation of our modern understanding of nerve function.

The seventeenth-century scientific revolution, which established the foundations of much of modern science, is generally associated with physics and astronomy, and the work of giants such as Galileo and Newton. However, remarkable and decisive discoveries were also made in biology (or ‘natural history’), although most modern scientists know little of this work and even less of the researchers who pioneered important aspects of today’s knowledge.
(...)
The particular episode in the scientific revolution described here — the abandonment of the hypothesis of ‘animal spirits’ to explain nerve function — not only reveals how some familiar concepts and experiments were first developed, but also casts a fascinating light on how we interpret our own experimental findings. In particular, it shows us that the hypotheses we put forward to explain the natural world are often heavily influenced by the social world.»
Ontem, Cobb e outro biólogo já referido no De Rerum Natura, Jerry Coyne, publicaram uma carta na Nature, que pode ser lida na íntegra no Pharyngula para quem não tenha acesso à Nature, que ajuda a explicar como o mundo social, em especial a religião, influencia para tantos a forma como veêm o mundo natural. A carta foca-se no tema que mais inflama o nosso espaço de debate e vale a pena ser lida por ajudar a esclarecer algumas questões recorrentes nesse espaço e que podem ser apreciadas neste excerto:
«Surely science is about finding material explanations of the world -- explanations that can inspire those spooky feelings of awe, wonder and reverence in the hyper-evolved human brain.

Religion, on the other hand, is about humans thinking that awe, wonder and reverence are the clue to understanding a God-built Universe. (The same is true of religion's poor cousin, 'spirituality', which you slip into your Editorial rather as a creationist uses 'intelligent design'.) There is a fundamental conflict here, one that can never be reconciled until all religions cease making claims about the nature of reality».

*Em 1746, o reitor do Colégio das Artes de Coimbra proibia por decreto «...quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles» e, em particular, «opiniões novas, pouco recebidas e inúteis para o estudo das Ciências Maiores, como são as de Renato Descartes, Gassendi(Pierre Gassendi recuperou o proscrito atomismo de Leucipo e Epicuro), Newton e outros».

39 comentários:

Fernando Dias disse...

Este artigo é algo paradigmático do que é a arqueologia do saber na sua vertente histórico-sociológica da Filosofia da Ciência, embora partindo de matrizes epistémicas do século XVII. Mesmo assim permite entender que o discurso não depende apenas dos processos subjectivos professados pela Filosofia da Consciência mas de procesos mais complexos.

Apesar de actuais acalorados debates, estamos ainda muito longe de clarificar a ordem do discurso. Hoje em dia, com a explosiva mediatização do conhecimento e a imposição de um modelo cognitivo dominante, por outros meios que não os do ‘seventeenth’, sobre a consciência de pessoas e grupos sociais, as consciências humanas como não são depósitos passivos de imagens ou de informações revoltam-se das mais diversas maneiras, como por exemplo estupidificando-se através da religião (a)racional, não irracional, a palavra irracional aplica-se noutros contextos. Por exemplo a religião de Bento XVI é racional porque vai recuperar o tempo em que Aquino racionalizou Deus através da absorção de Aristóteles.

A emergência do pensamento feminista, da ecologia, da teoria da complexidade, das análises sistémicas e holísticas, juntamente com as narrativas Nova Era imprimiram uma dinâmica diferente e diferenciada aos modelos tradicionais da epistemologia, o que tem contrbuído para deslocar esta discussão para esferas nunca vistas. Claro que seria inevitável que se colocassem como alternativas ao disputarem novos espaços de ressignificação da realidade e dos métodos para uma nova interpretação.
Quem não perceber isto correrá o risco de ficar para a história ao lado dos conservadores pró-aristotélicos dos séculos 17 e 18 mencionados neste texto de Palmira, provavelmente desta feita com o epíteto de conservadores
pró-cartesianos.

Anónimo disse...

"Em 1746, o reitor do Colégio das Artes de Coimbra proibia por decreto «...quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles» e, em particular, «opiniões novas, pouco recebidas e inúteis para o estudo das Ciências Maiores, como são as de Renato Descartes, Gassendi(Pierre Gassendi recuperou o proscrito atomismo de Leucipo e Epicuro), Newton e outros»"

Referência por favor.

Unknown disse...

F.Dias:

prontos, já suspeitava há muito tempo pelas parvoíces pseudofilosóficas mas agora cá está, preto no branco: o f. dias é um new ager!

Não sei quais os esoterismos da sua predilecção, vidas passadas, regressões hipnóticas, reencarnações e outras patetices new age do género, mas bolas, isto é um blog de ciência!

Não venha com tretas alternativas e paleio balofo para esconder a sua mentalidade anti-científica. Acaba gato escondido com rabo de fora :)

Unknown disse...

Nunca tive muita pachorrametáforas “alternativas” ou ditirambos sobre a “dualidades cognitivas” ou tretas do género.

Acho que são duplamente perigosa: para os próprios, porque pensam que pensam alguma coisa, e para os incautos, que pela pomposidade da linguagem pensam que eles pensam alguma coisa :)

Ora ponha os olhos no Desidério, que é um filósofo a sério e escreve coisas que nos fazem pensar de forma que toda a gente entende.

Fernando Dias disse...

A Rita faz-me lembrar aquele doente que tem cancro e que no início nega ou não quer admitir que o tem, e depois atribui a causa do cancro ao próprio médico que lhe fez o diagnóstico.

Uma das tarefas do crítico, ou de uma discussão filosófica, é a de lutar contra a confusão das esferas de valores. É claro que não vamos ter a ingenuidade de querer atingir a verdade numa discusssão, de uma vez por todas. Mas é uma tarefa continuada da crítica. A pureza da verdade em ciência é provavelmente um ideal inatingível.

Na minha crítica tentei chamar a atenção para a imposibilidade de banir da actividade científica os valores extra-científicos. Não podemos despojar o cientista do seu partidarismo, sob pena de o despojarmos também da sua humanidade. Também não podemos vedar-lhe as suas valorações sob pena de o aniquilarmos como cientista.

Tanto as nossas motivações como os nossos ideais puramente científicos, como o da procura da verdade pura, radicam profundamente em valorações extra-científicas e, em parte, religiosas. O cientista objectivo despido de valores não é o cientista ideal porque sem paixão nada avança, muito menos em ciência.

alf disse...

O professor Carvalho Rodrigues chamou em tempos a atenção para um particular problema dos computadores que não pode acontecer nos seres vivos: quando um computador chega a uma inconsistência lógica ou uma circular bloqueia.

Este é um problema frequente de todos os equipamentos dependentes de programas e até existem circuitos especificos para fazerem os equipamentos sairem da situação de bloqueio, chamados "watch-dogs", que fazem um "reset" ao equipamento.

Este problema tb existe nos seres vivos e nomeadamente nos humanos; e3 existe uma solução também: quando o cérebro entra numa situção dessas sai dela de duas maneiras: pelo riso desbragado ou pela violência.

Isto a propósito dos comentários da "Rita"... embora concorde que nem sempre é fácil perceber o f. dias, que não poucas vezes têm dito coisas muito interessantes que elevam o interesse deste blogue

alfredo dinis disse...

Palmira,

Achei a carta dos autores referidos muito pobre.

A religião, pelo menos o cristianismo, que eu saiba, não faz actualmente qualquer afirmação sobre a natureza da realidade.

Isso acontecua no tempo de Galileu, quando se pensava que o universo coincidia com o sistema solar mais a 'esfera das estrelas fixas', a 'esfera de águas cristalinas' e o 'empíreo'. As descobertas de Galileu deitaram por terra esta concepção que tinha também uma natureza teológica, além de filosófica e 'científica'. Aqui está um exemplo de como a ciência pode contribuir para o discurso teológico.

Com Darwin, compreendeu-se que os seres humanos não tinham sido criados por Deus a partir de Adão e Eva e do pó da Terra. Isto levou os cristãos a mudarem a sua interpretação literal do Livro do Génesis. Mais um contributo da ciência para o discurso teológico.

O mesmo aconteceu com a teoria do big bang, que levou à interpretação metafórica e não literal dos 'seis dias' da criação.

Dizer que a única forma de a ciência contribuir para a teologia é o ateísmo, parece-me pouco fundamentado.

A teologia cristã não faz quaisquer afirmações sobre o universo, quanto ao seu início, à sua estrutura, à sua evolução e termo, a estrutura da matéria, das galáxias ou dos buracos negros. Isso pertence à ciência.

A teologia cristã não faz qualquer afirmação sobre o modo como surgiu a vida, os seres humanos, a consciência, etc. Isso pertence à ciência.

A teologia cristã é compatível com qualquer teoria científica fundamentada. Porque deveria a ciência fazer afirmações sobre a teologia?

Saudações,

Alfredo Dinis

:: rui :: disse...

Se o início de tudo foi através de uma explosão acidental, é possivel que estejamos a viver os efeitos desse possivel evento e por isso, desenvolvamos entendimentos pouco definidos acerca das questões que nos rodeiam. Se tudo foi acidental, será que os nossos pensamentos sejam também acidentais e talvez não estejam certos algumas vezes? Como temos a certeza de que o que vemos é correcto? Quando começamos a ter esse entendimento? Acidentalmente?

A ciência é ciência quando lida com questões do presente. No passado, a disciplina é história. E se a ciência define o que foi a história, então a história tem como base a ciência e deixa de ser história. E como a ciência tem como base um acidente no início de tudo, então é possivel que esteja errada nalgum ponto e o passado possa não ter sido como apresenta. Se ainda assim, não entender que acidentes não geram ordem, pode ser que a ordem que apresenta não seja somente fruto de um acidente, mas de outro mais... mas que tao insistentemente não quer ver.

Fiquem bem.

Palmira F. da Silva disse...

Caro ex-alumo:

Se clicar no «proibia por decreto» entra num post que escrevi há uns tempos com a referência para o excerto que lhe suscita dúvidas.

Palmira F. da Silva disse...

Caro Alfredo Dinis:

Está certamente a brincar quando diz «a religião, pelo menos o cristianismo, que eu saiba, não faz actualmente qualquer afirmação sobre a natureza da realidade».

Não tenho dúvidas que a ciência contribuiu para a alteração de algum discurso teológico com os eventos que cita, nomeadamente em relação aos pontos que diz actualmente a teologia cristã não ter conflitos com a ciência.

Em relação à carta, não pode ler só o final, que fora do contexto não se entende.

A carta dos dois cientistas foi motivada pela perplexidade que o editorial da Nature sobre John Templeton (que falecera pouco antes) deixou em muitos.

Templeton não era um cientista, era um multimilionário que criou uma fundação com o propósito de «provar» cientificamente a existência de Deus, ou antes, de financiar aqueles que supostamente o fazem.

como escreveu o Jorge há uns tempos:

«O curioso Prémio Templeton, no valor de 1,2 milhões de euros (há quem diga que o valor foi escolhido para ser superior ao Nobel) premeia individualidades que consigam a curiosa proeza de aproximar a ciência da religião».

De facto, o prémio Templeton, o ex-libris da Fundação foi até 2001 o prémio Templeton para o Progresso da Religião e para muitos, inclusive eu - como pode ler noutro post sobre o tema - consideram que não passa de uma forma de «comprar» cientistas que sirvam os seus propósitos.

A carta manifesta a estranheza de um editorial de uma revista de ciência fazer a elegia de alguém que não estava minimamente interessado em ciência apenas em religião e que queria o impossível: que a ciência se aproximasse de Deus.

Coyne e Cobb apenas lembraram que ciência e religião são completamente incompatíveis e que, por muito dinheiro que se distribua para isso, não é possível aproximar a ciência da religião caso contrário a primeira deixa de ser ciência.

Quanto muito pode-se tentar aproximar a religião da ciência, como o faz um casal evangélico muito especial que descobri via o SandWalk, mas não é esse o objectivo da Fundação.

:: rui :: disse...

Palmira disse "ciência e religião são completamente incompatíveis e que, por muito dinheiro que se distribua para isso, não é possível aproximar a ciência da religião caso contrário a primeira deixa de ser ciência."

Vamos lá ver as coisas, primeiro, ciência lida com o presente. Tem a ver com usar o método cientifico no presente para tentar resolver questões no presente. Quando ao passado, não se pode usar o método cientifico para buscar respostas acerca deste. O passado já passou. Agora, se se vai analisar o passado, então teremos dois pontos de vista que poderão ser usados. Um baseia-se em pressupostos ateus, e outros baseia-se em pressupostos teístas. Dizer que o passado estende-se por milhões de anos, é o mesmo que dizer que usou o pressuposto ateu para explicar o passado. Não pode usar do método cientifico para obter respostas, pois este só pode ser usado no presente. Então, a ciência quando fala do passado, tem de ter uma base para assentar as suas respostas. Falar de compatibilidade ou não é assumir que existem dois campos totalmente separados. Mas os campos não estão totalmente separados pois uma pessoa pode ser um cientista e crer em Jesus Cristo como seu Salvador pessoal. Este simplesmente usa do método cientifico para fazer as suas experiencias e observações no presente no sentido de resolver questões no presente. E sabe que o passado foi baseado no registo bíblico (que tem uma parte histórica) onde a questão das origens estão bem definidas. Pelo contrário, um cientista que usa do método cientifico no presente e que não crê em Jesus Cristo como Salvador pessoal, pode muito bem continuar a ser cientista no presente, sem sequer precisar de "compatibilizar" o que seja para continuar a desenvolver um bom trabalho. Quando fala do passado, neste caso, vai buscar os seus pressupostos ateus para explicar o passado. No entanto, não pode usar de métodos cientificos para explicar este pois este já passou e não pode ser repetido para experimentação. Como não crê no registo bíblico da história, crê noutro registo, e por isso, desenvolver a sua "fé" em algo. É um religioso por assim dizer. A questão fundamental nisto tudo é que a religião não tem muito a ver com crer somente em Deus. Mas sim, crer que Jesus Cristo é o Salvador e que é necessário uma relação pessoal com Ele para poder ter vida eterna. Nenhuma religião oferece isto, nenhuma religião pode ser comparada com o cristianismo pois nenhuma tem um Deus que veio para incarnar como homem e morrer pelos pecadores, perdoando-lhes pelos seus pecados. As religiões impoem regras. O cristianismo oferece uma relação pessoal com o Criador. Não fala de compatibilidades.

Cumprimentos,

Palmira F. da Silva disse...

Caro Rui:

Devo confessar que não percebi nada do seu primeiro comentário.

Com o segundo ficou completamente claro o que pretendia, que é exactamente o oposto do que o Alfredo Dinis afirmava, confirmando que ou ele está a leste do mundo real ou estava a brincar em todo o comentário :)

Palmira F. da Silva disse...

E vamos lá a ver, a ciência não «lida» com o presente. A ciência descreve fenómenos naturais com modelos e leis também naturais.

Não é um pressuposto ateísta nem um objecto da História dizer que desde que há maçãs que estas se comportam como previsto pela lei da gravidade e em que momento algum da História entraram em órbita quando amadureciam :-)

Também não é um pressuposto ateísta dizer que todos os átomos de sódio, desde os primeiros sintetizados em estrelas primordiais, têm electroafinidades e energias de ionização baixas. Ou que os tempos de meia vida de todos os isótopos radioactivos não se alteraram drasticamente desde que nucleossíntese estelar os formou.

Por isso, nós não temos nenhuma «crença» de que a Terra tem muitos milhões de anos e não achamos que é ridículo dizer que tem apenas uns escassos seis milhares por «ateísmo».

:: rui :: disse...

Cara Palmira:

A questão não é fácil. Muitos querem-na apresentar fácil dizendo como são as coisas, mas que poderão não ter bem a noção como realmente são. Eu não estou a dizer que sei como são as coisas e que ando por aí a falar que sei e que todos deverão ouvir-me. Há questões que realmente não podem passar por mim ou por qualquer pessoa. Eu chamo-lhe questões básicas, e que por isso, são questões que têm a ver com o que é essencial.

No meu primeiro comentário, apresentei a realidade que, se tudo no inicio foi surgindo naturalmente através de uma explosão acidental (sem que se saiba o que causou ou qual o motivo desta), temos que realmente poderemos chegar a este ponto sem os melhores entendimentos acerca da nossa verdadeira essencia (ou as questões básicas) pois, como se poderia explicar que algo acidental teria criado a ordem que hoje vemos. Como se desenvolveram os primeiros pensamentos acerca destas questões? O que os fez surgir? E se realmente surgiram de forma natural, foram os correctos?

Por outro lado, temos o que o Sr. Alfredo Dinis diz, não que esteja a brincar, mas que procurasse apresentar o melhor argumento acerca destas questões essenciais. No entanto, poderá falhar nalgum entendimento ao não entender correctamente os âmbitos da ciência. Foi o que quis apresentar no segundo comentário, afirmando sobre onde estão os limites da ciência. Como disse também, uma pessoa pode ser cientista e crer em Jesus Cristo como Salvador. E isto é dizer que se tem noção dos limites da ciência e conhece o trabalho de Deus, apresentado na Sua Palavra.

A questão, e que é sensivel, e tem sido abordado em muitos posts por aqui, é que, se uma pessoa não tem noção destes limites, há muitas possibilidades que ficam em aberto, que vão desde espiritualismo a cientismo. Há tantas as possibilidades quantas as pessoas quiserem ir à procura. Por isso se diz que há muitos caminhos...muitas verdades. Assim sendo, provavelmente chegaremos a um ponto em que nada do que digo poderá ser entendido, pois podemos ir desenvolver novos entendimentos (no sentido de buscar um novo caminho) para qualquer uma das palavras que estou a usar. E isto já acontece um pouco em algures lugares... e então, estaremos a caminhar para uma compreensão da realidade ou para um desentendimento total desta? A essência é entender os limites dos vários ambitos. Se nao o fizermos, realmente estamos a ir no caminho da destruição.

Cumprimentos.

:: rui :: disse...

Palmira, a ciência lida com fenomenos e leis neste tempo presente. A ciência não pode lidar com fenomenos e leis no tempo passado ou no tempo futuro pois estes não existem. Um porque já passou, o outro porque ainda não aconteceu. Isto é o que queria dizer. Todos os fenomenos cientificos que apresenta, só podem ser verificados e analisados neste tempo presente. E podemos apoiar-nos nas verificações feitas no passado, que por sua vez, foram feitas no tempo presente destas. Muitas vezes vamos buscar análises de fenomenos feitas por pessoas no passado que por sua vez, tinham uma base teísta. E podemos viver com alguns dos resultados neste momento feita por estes cientistas. E também podemos buscar análises de fenomenos feitas por pessoas no passado que por sua vez, tinham base ateia. A questão é que, na Bíblia, diz-nos que o caminho é um. Ou seja, temos uma base. Se este nao for o caminho que decidirmos seguir, temos então que muitos e variados "caminhos" poderão ser encetados, o que não só está a contribuir para um grande desentendimento das questões essenciais, como a colocar o mundo a fugir à sua responsibilidade... com as consequentes consequências que hoje vemos. Importante a reter é que é bom ter noção dos vários âmbitos... mas que, se só nos ligarmos a um deles, podemos estar a desviar-nos do entendimento das questões essenciais.

Obrigado

Freire de Andrade disse...

A discussão tem sido muito interessante, mas confesso que não compreendo completamente os argumentos de Rui.
Já Alfredo Dinis, quando diz "A religião, pelo menos o cristianismo, que eu saiba, não faz actualmente qualquer afirmação sobre a natureza da realidade." não parece estar a falar do cristianismo tal como é seguido actualmente pela religião católica pelo menos em Portugal. Ainda no passado dia 15 ouvi um pároco afirmar que a Virgem Maria subiu ao céu em corpo e alma. Isto é uma afirmação sobre uma realidade que ou é verdadeira ou falsa. Parece-me que é dificilmente compatível com os conhecimentos científicos acreditar que um corpo subiu ao céu, seja lá onde for este céu, há 2000 anos.

alfredo dinis disse...

Caro Freire de Andrade,
Expressões como 'subiu ao céu' têm sentido literal no universo pré-galilaico, mas não têm esse sentido hoje. A linguagem dos teólogos não 'cai do céu', é a linguagem da cultura em que uma determinada crença é expressa. O mais importante é entender a ideia que se quer transmitir: a Virgem Maria não sofreu a corrupção que sofrem os seres humanos. O seu corpo foi transformado antes da corrupção, tal como o de Cristo. Como é que isso aconteceu? Não sabemos. Esta crença dos cristãos baseia-se no facto de Maria ter gerado Cristo e merecer, por isso, ser preservada da corrupção física. É apenas isso o que se pretende dizer com a expressão 'subiu ao céu em corpo e alma'. Não está aqui canonizada nenhuma teoria sobre os céus nem sobre o dualismo corpo-alma.

Saudações,

Alfredo Dinis

alfredo dinis disse...

Cara Palmira,

Não entendi porque pensa que estou a brincar quando digo que o cristianismo não faz actualmente qualquer afirmação sobre a natureza da realidade. Conhece alguma?

No que se refere à carta dos dois cientistas, a parte final é mesmo o elemento mais importante, porque contém o argumento que pretende destruir o argumento do editorial da Nature. A afirmação de que a ciência só pode conduzir ao ateismo parece-lhe um pormenor no contexto da carta?

Limitei-me a elencar alguns contributos da ciência que não levaram ao ateísmo, o que contradiz a tese dos autores. Não basta fazer afirmações, é necessário fundamentá-las.

Finalmente, se a ciência e a religião são claramente antagónicas, o que faz com que a história da ciência esteja cheia de cientistas cristãos?

Saudações,

Alfredo Dinis

Palmira F. da Silva disse...

Acho curioso que diga

Expressões como 'subiu ao céu' têm sentido literal no universo pré-galilaico, mas não têm esse sentido hoje.

De facto, inúmeras expressões como esta, nomeadamente as referentes à transmutação da hóstia e do vinho, à «criação», etc. eram entendidas literalmente antes do Renascimento e foi necessária muita...er... controvérsia e muito conflito com a ciência para alguns teólogos começarem com a história das metáforas, etc.

Mas apenas nalgum discurso teológico, a linguagem para o povo manteve-se na mesma como ilustra o caso da ascensão de Maria.

Aliás, Maria é extraordinariamente apropriada neste post que trata de reprodução porque em relação a ela a Igreja faz afirmações extraordinárias sem qualquer justificação: nomeamente que concebeu e foi concebida sem «pecado», ou seja, sem sexo, o que está totalmente em conflito com o que sabemos do mundo natural.

Para além de que dizer que foi preservada da «corrupção física» é outro atentado à ciência. Não conheço nenhuma geleira na zona de Israel nem penso que tenha sido conservada em formaldeído ou afins que possa ter feito a proeza e tirando a conservação criogénica ou química não há forma de evitar a decomposição de matéria orgânica.

De igual forma, porque insistem tantos eclesiásticos em «milagres», que não passam de violações das leis da natureza, como o impossível «milagre» do Sol em Fátima?

A questão do dualismo cartesiano alma-corpo então há panos para mangas :) porque de facto a Igreja insiste nele.

Mas suponho que o discurso de Ratzinger em Regensburg (ou Ratisbona) que tanta tinta fez correr (pelas razões erradas, em minha opinião) seja de facto o melhor exemplo de que há de facto um conflito fundamental entre ciência e religião.

Palmira F. da Silva disse...

Antes de continuar, só mais um exemplo.

Outra questão tem a ver com a Trindade, estabelecida no concílio de Niceia (Iznik, na Anatólia), em 325, que no seu pinto 1 da ordem de trabalhos pretendia responder à heresia Ariana.

O concílio de Arles, em 314, já tinha condenado uma «heresia» desastrosa para a Igreja, a dos Donatistas, que ameaçava alastrar perigosamente e «contaminar» a fé. Os «hereges» Donatos (dois bispos com o mesmo nome: Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia; e Donato, o Grande, bispo de Cartago) pregavam, entre outras inadmissíveis, a separação Igreja-Estado.

Mas a questão ariana era mais complicada porque ameaçava aquilo em que assentava a cristandade: era o seu mito divino e se sim como conciliar a divindade do Cristo com o dogma de fé num único Deus?

A resposta foi uma manipulação judiciosa dos termos ousia (essência) e hypostasis (pessoa). Assim, a Trindade corresponderia a uma única ousia mas as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo eram estabelecidas por três hypostasis. Não era (nem é) claro como estes termos se aplicam na cristologia. Isto é, não só o Cristo para além da baralhação triuna tinha duas essências como falar na ousia divina unida com a ousia humana implica que toda a trindade encarnou (e ficou sujeita às leis da Natureza...).

Porque recordo estes episódios?

Porque há cerca de 4 anos, o actual Papa, então na pele de inquisidor-mor, redigiu um documento declarando como herética a obra do padre Roger Haight, Jesus Symbol of God, que segundo Ratzinger «continha afirmações erróneas, cuja divulgação constituía grave dano para os fiéis».

No livro e segundo Ratzinger, o padre jesuita comete várias heresias. Afirma que «hoje a teologia deveria ser realizada em diálogo com o mundo pós-moderno», estabelecendo uma «correlação crítica» entre os dados da fé e o pensamento pós-moderno, o que se traduz para o actual Papa «numa subordinação [inadmíssivel] dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade».

Para além disso, o jesuita produz «afirmações contrárias às verdades da fé divina e católica pertencentes ao primeiro coma da Professio Fidei, relativos à preexistência do Verbo, à divindade de Jesus, à Trindade, ao valor salvífico da morte de Jesus, à unicidade e universalidade da mediação salvífica de Jesus e da Igreja, e à ressurreição de Jesus».

E quais são estas afirmações?

O autor propõe uma interpretação simbólica ou seja não literal do emanado no concílio de Niceia, isto é, propõe «uma cristologia da encarnação, na qual o ser humano criado ou a pessoa de Jesus de Nazaré é o símbolo concreto que exprime a presença na história de Deus como Logos».

todas estas coisas devem ser deixadas estar sem se mexer como «mistérios» da fé...

Palmira F. da Silva disse...

Em relação à carta propriamente dita, suponho que ainda não percebeu o que lá está nem o contexto em que fou escrita.

A carta respondia a um editorial que louvava Templeton que dedicara a sua fortuna (feita na Wall Street) a aproximar a ciência da religião.

O que os autores dizem é que pela própria natureza da ciência, que não se compadece com «mistérios» sejam da fé sejam outros, isso é impossível.

Basicamente a frase que tanto o indigna foi dita por Ratzinger em Regensburg, que condenou a ciência «que pela sua própria natureza» «exclui a questão de Deus, fazendo-a aparecer como não científica ou como uma questão pré-científica».

Ratzinger,tal como Templeton e muitos outros, não aceita a natureza da ciência e embora na tal na palestra pretenda que a dita palestra

«não tem nada a ver com recuar no tempo anterior ao Iluminismo ou rejeitar as conquistas da idade moderna»

ao sustentar que a «revelação» divina é a fonte máxima da razão e conhecimento de facto Ratzinger está a atacar os princípios fundamentais da ciência e do modernismo. Por outro lado, ao rejeitar os princípios básicos da ciência Ratzinger rejeita igualmente as conquistas da idade moderna, apenas possíveis devido a esses princípios.

Palmira F. da Silva disse...

Em relação à sua última questão, peço desulpa se lhe digo que esperava um argumento melhor, esse parece um argumento à Rui, ou seja, à criacionista da Terra jovem.

Para mim é um argumento non sequitur, a ciência não são alguns cientistas. O facto de existirem cientistas cristãos não diz nada sobre a ciência, assim como não diz nada sobre a ciência o facto de existirem cientistas racistas, sexistas, que batem nas mulheres, vegetarianos, vegans, etc.

Palmira F. da Silva disse...

Em relação à evolução, recordo que há de facto conflito.

Por exemplo, num livro publicado em abril de 2007, Joseph Ratzinger afirma que «a teoria da evolução não está provada», porque «não pode ser testada em laboratório».

O papa, que não possui curriculo em biologia ou qualquer outra ciência da natureza, não explicou como é que as bactérias se tornaram resistentes aos antibióticos.

O livro chama-se «Criação e Evolução» e inclui comentários feitos em Castel Gandolfo, em Setembro, para uma plateia constituida unicamente por crentes.

Inclui também textos do cardeal Schönborn, que desde o início do actual papado tem pressionado Ratzinger para que tome posição pelo «desenho inteligente».

O arcebispo de Viena, Christoph Schönborn, que escreveu um artigo («Finding Design in Nature»; New York Times, 7 de Julho de 2005) negando a teoria da evolução.

Na sequência da carta de Schönborn, alguns cientistas católicos, onde se inclui o Ken Miller sobre quem já escrevi no DRN, decidiram escrever uma carta a Joseph Ratzinger pedindo-lhe que clarifique a sua posição e se a posição da ICAR se alterou.

O livro não clarifica nem uma nem outra pelo que devem estar em vigor as tais famosas declarações de João Paulo II em 1988 (quando este pedia o «diálogo» entre a ciência e a religião) e 1996, em que o Papa anterior parecia disposto a aceitar que a teoria da evolução era «mais do que uma hipótese» embora «incompatível com a verdade sobre o homem» se afirmasse que «a mente evoluíra a partir da matéria viva».

Ou seja, para João Paulo II a teoria da evolução seria válida para todos os animais à excepção do homem...

recomendo a leitura desta mensagem:

Magisterium Is Concerned with Question of Evolution For It Involves Conception of Man

:: rui :: disse...

Palmira, se alguns cientistas cristãos não dizem nada sobre a ciência, porque dizem alguns cientistas não cristãos? Ou então, porque dizem os cientistas no geral? Afinal, o que define um cientista? E quem é que define o que define um cientista? E quem definiu aquele que definiu o que define um cientista? Parece que andamos em círculos... pois é, foi por andar em círculos que estive perto de me destruir. As coisas pareciam nunca chegar a algum lado... como poderiam? Se o início é vago... como pode o meio ser algo, e chegarmos a algum fim?

Adelaide disse...

«Não podemos despojar o cientista do seu partidarismo, sob pena de o despojarmos também da sua humanidade. Também não podemos vedar-lhe as suas valorações sob pena de o aniquilarmos como cientista.»

Eu só substituiria a palavra «cientista» pela palavra «pessoa». Porque quero acreditar que a ciência não é feita somente por autómatos.

Um abraço
Adelaide Chichorro Ferreira

alfredo dinis disse...

Palmira,

1. “Coyne e Cobb apenas lembraram que ciência e religião são completamente incompatíveis”.

Eu repito que se há cientistas que são cristãos, como podem conciliar a sua fé com a sua prática científica? Quando lhe perguntei como é possível que a história da ciência esteja cheia de cientistas cristãos, alguns dos quais padres e frades, não queria dizer que este facto diga alguma coisa sobre a natureza da ciência. Diz, sim, que de facto não se pode dizer que fé ciência são incompatíveis. A ciência não é constituída apenas pelos cientistas que tem uma fé religiosa, mas também não é constituída apenas pelos cientistas que pensam que há incompatibilidade entre fé e ciência. Não lhe parece?

2. Ratzinger nunca afirmou que a ciência, pela sua própria natureza exclui a questão de Deus. O que ele afirma é que a ciência não tem que entrar no discurso sobre Deus e que, quando o faz, extravasa as suas competências. Nunca rejeitou os princípios básicos da ciência.

3. A discussão sobre princípios dogmáticos do cristianismo tem acontecido ao longo da história, e vai continuar a acontecer. O conteúdo da fé não cai do céu numa bandeja, expresso numa linguagem neutra em relação às diversas culturas dos diversos tempos.

4. Ratzinger nunca afirmou que não aceita a teoria da evolução. Na obra de 2007, intitulada ‘Criação e Evolução’a citação completa que retirou no New York Times é a seguinte:

“para mim é importante que a doutrina da evolução em partes significativas se não possa comprovar experimentalmente de um modo simples, porque já não podemos trazer ao laboratório 10.000 gerações. Quer isto dizer que existem lacunas consideráveis na possibilidade de verificação e falsificação experimentais em virtude da ingente dimensão temporal a que a teoria se refere (…) a teoria da evolução não é ainda uma doutrina completa, cientificamente verificada.”

O que Ratzinger diz corresponde ao facto de, desde Darwin, se continuar a elaborar a teoria da evolução das espécies. Parece-lhe que todos os aspectos da teoria estão esclarecidos. Basta ver as controvérsias que existem entre alguns biólogos evolucionistas (S. Jay Gould e Dawkins, para só dar um exemplo).

Por outro lado, num encontro com o clero das dioceses de Belluno e Treviso, em 24 de Julio de 2007, Ratzinger reprovou a rejeição da teoria da evolução pelos criacionistas, afirmando que “há muitas provas científicas a favor de uma evolução que é uma realidade que devemos ver e que enriquece o nosso conhecimento acerca da vida”. O texto está no site do Vaticano.

5. No que se refere ao dualismo corpo-alma poderá ler com proveito as últimas páginas da obra de Ratzinger ‘Introdução ao Cristianismo’ nas quais ele se distancia do dualismo de origem grega que postula a existencia de duas substâncias, o corpo e a alma.

Saudações,

Alfredo Dinis

Palmira F. da Silva disse...

Caro Alfredo Dinis

Acho que continua a não perceber a carta. Como é óbvio, o ser humano é capaz de conciliar as coisas mais estranhas e mais contraditórias, aliás, o Desidério já escreveu sobre dissonância cognitiva.

Em resposta à sua questão do ponto 1, devolvo-a noutra forma,

«se há tantos pedófilos que são padres, como podem conciliar a sua fé com a sua prática pedófila?»

Qunado se diz que ciência e religião são incompatíveis, no contexto da carta, e que a única contribuição que a ciência pode fazer para a religião é o ateísmo está-se a natureza de ambas.

Pela sua própria natureza, a ciência exclui explicações sobrenaturais ou divinas, ou seja, a ciência não pode nunca incluir Deus nos seus modelos.

Isto não significa que não haja gente que consiga conciliar ambas, como consegue conciliar tantas coisas por vezes contraditórias outras vezes complementares. Quer apenas dizer que nunca a ciência de per se incluirá deuses ou outras sobrenaturalidades nas suas explicações, teorias e modelos.

Palmira F. da Silva disse...

Agora sobre o ponto 2.

Aparentemente ou nunca leu de facto as muitas homilias de Ratzinger sobre o tema ou então entendeu-as de forma metafórica e não literal :)

A aula magna de Bento XVI na Universidade de Regensburg, por exemplo, para além de uma defesa do catolicismo tradicional, isto é, pré Vaticano II, em relação às outras religiões do livro, é essencialmente um ataque à ciência «que tornou Deus supérfluo», causa última dos males profundos que dominam a Europa na opinião de Ratzinger: a «ditadura do relativismo» e concumitantes secularismo, laicidade, respeito pelos direitos humanos, tolerância e plurarismo.

O discurso do Papa, assenta na crítica à ciência que exclui Deus, como dissera antes na missa ao ar livre na mesma cidade em que ainda censurou as teorias "irracionais" que explicam a existência da humanidade como resultado do acaso.

De fcato, com explicações naturais de fenómenos naturais, não há alguma razão ou prova para acreditarmos que, a existir o sobrenatural indispensável às religiões, este tenha qualquer interacção ou efeito no mundo natural.

Assim, a palestra desenrola-se em torno deste tema desde a congratulação inicial ao Magnífico Reitor pela existência na sua Universidade, com duas faculdades de teologia, daquilo a que chama universitas scientiarum, ou seja, a genuína universitas que destaca proeminentemente a teologia nos «saberes» a transmitir aos alunos, que aceita como dado adquirido que Deus, na versão cristianismo tradicional, é imprescindível na Universidade.

Embora Ratzinger note que nem todos os docentes, nomeadamente os cépticos «radicais» que afirmam a inexistência de Deus, partilham a opinião dos teólogos de que a fé e a razão estão intimimamente correlacionadas e sem fé não pode ocorrer o exercício da razão. Isto é, sem fé católica tradicional, porque no decorrer do discurso Ratzinger explana porque razão apenas esta fé é racional!

Depois destas reminiscências de Regensburg, uma «genuína» Universidade em que o debate racional integra a teologia (católica) como componente indispensável, em que a teologia é aceite como equivalente da filosofia no privilegiar da razão universal, surgem então os 3 parágrafos que tanta tinta fizeram correr, em que Ratzinger usa o diálogo de Manuel II Paleólogo como ponto de partida para analisar a necessária centralidade da razão na fé e a relação entre a fé e a razão nas «três ‘Leis’ ou ‘Regras da Vida’: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão.

Embora não explicitamente, Ratzinger sugere que o Islão, a religião judaica e o protestantismo, não «helenizados», enfermam de uma irracionalidade constitucional enquanto o catolicismo é a única religião racional.

Ratzinger contrasta esta compreensão cristã helenista de Deus, coincidente com uma harmonia entre razão e fé através da revelação de um Deus racional, com a «irracionalidade do islamismo» exemplificada com o (irrelevante) teólogo muçulmano Ibn Hazm que defendia a absoluta transcendência de Deus e rejeitava a necessidade de qualquer racionalização das leis islâmicas já que eram o código que Deus tinha legislado e a sua implementação, sem qualquer imiscuição da razão, indispensável na prática religiosa.

Compreensão helenista que Ratzinger afirma fazer parte essencial da fé cristã e «permanece a fundação do que podemos chamar apropriadamente Europa». Criticando a de-helenização do cristianismo e da Europa- as causas dos tais «males profundos» que a assolam e a deixam impotente face à ameaça islâmica - que segundo ele ocorreu em três fases, interligadas mas claramente distintas nas motivações e objectivos.

Assim, Ratzinger critica a separação da fé e da razão que ocorreu com a Reforma, a primeira de-helenização que rejeita a razão (isto é, a interpretação bíblica de Roma) e assenta a fé no princípio da sola scriptura, postulado base da reforma protestante. Ou seja, afirma claramente que o protestantismo é irracional!

A segunda fase de de-helenização corresponde ao pensamento teológico liberal dos séculos XIX e XX, de onde surgiram as heresias modernista e progressista, censuradas na encíclica de Pio X, Pascendi Dominici Gregis, que têm para Ratzinger o seu representante máximo em Adolf von Harnack. Heresia que na prática reduz a fé católica a meras directivas éticas e morais, sem necessidade de culto nem de teologia.

Ou seja, mais uma vez critica os católicos que não seguem à letra os ditames do Vaticano, «enganados» por teólogos como Harnack ou Roger Haight que «numa subordinação [inadmíssivel] dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade» tentam reconciliar a fé com a modernidade.

Para Ratzinger, como tem sido abundantemente expresso no seu papado e concretizado sem margens para dúvidas nesta palestra, é a modernidade que tem de se sujeitar à fé!

Ou seja, para Ratzinger os cientistas devem aceitar o Sapientia Dei, Scientia Mundi agostiniano, isto é, que há um conhecimento superior, a sapiência, as «verdades eternas» divinas, e um conhecimento inferior, a ciência, que consiste na observação dos dados sensíveis.

Palmira F. da Silva disse...

Sobre o ponto 3 não me pronuncio, deixo isso aos teólogos :)

Só gostaria de deixar uma nota que considero curiosa.

A escolha do nome de «guerra» por parte de um novo papa tem normalmente associado um significado programático e o facto de Ratzinger não ter assumido o esperado João Paulo III, indicativo de que continuaria as pisadas do seu antecessor, mas Bento XVI surpreendeu muitos no meio católico.

Muitos viram nesta escolha um bom auspício já que Giacomo della Chiesa, que tomou posse como Bento XV um mês antes do início da I Guerra Mundial, é normalmente descrito como o «Papa da paz» devido aos seus esforços para a terminar.

De facto, Giacomo della Chiesa, nascido de uma família nobre genovesa, era um experiente diplomata que insistiu na neutralidade do Vaticano durante toda a Guerra e a partir de 1917 encorajou o presidente americano Woodrow Wilson a iniciar as negociações de paz.

Mas convém recordar que dos dois lados das trincheiras estavam envolvidos países com consideráveis populações católicas: a Alemanha e o império Austro-húngaro de um lado; a França de outro. A neutralidade da Igreja e a insistência na paz enquadravam-se assim em manobras diplomáticas destinadas a evitar a divisão da Igreja.

Uma vez que a diplomacia não é exactamente apreciada por Ratzinger, que escolheu Tarcisio Bertone, um teólogo que foi o seu braço direito na ex-Inquisição, para substituir o diplomata Angelo Sodano no lugar de secretário de estado do Vaticano - posição ocupada normalmente, com muito raras excepções, por diplomatas de carreira - sugere que talvez não sejam os dotes diplomáticos do outro Bento que o inspiraram.

Uns escassos dois meses depois de tomar posse, já em plena I Guerra, foi publicada a primeira enciclica do Papa da Paz, Ad Beatissimi Apostolorum em que, depois de condenar nos primeiros parágrafos a I Guerra Mundial, Bento XV critica extensica e veementemente todos os que preferem o conhecimento e a razão à fé:

«Cegos e levados por uma ideia soberba do intelecto humano, pelo qual o bom dom concedido por Deus fez certamente muitos progressos no estudo da natureza, confiantes no seu julgamento e desdenhosos da autoridade da Igreja, chegaram a tal grau de imprudência que não hesitam em avaliar com a própria mente até as coisas escondidas de Deus e tudo o que Deus revelou aos homens.

Daqui surgiram os montruosos erros do ‘Modernismo’ que o nosso predecessor [Pio X, nomeadamente no Decreto Lamentabili Sane e na encíclica Pascendi Dominici Gregis, encíclica que traduz fielmente o pensamento de Ratzinger sobre o modernismo ] declarou justamente serem ‘a síntese de todas as heresias’ e os condenou solenemente. Nós vimos desta forma renovar esta condenação na sua totalidade. (…)

É assim a nossa vontade que a lei dos nossos antepassados deve ser mantida sagrada: ‘Que não haja inovação.’».

Palmira F. da Silva disse...

Agora o ponto 5. Como disse logo no primeiro comentário, Ratzinger não clarifica nem a sua nem a posição da Igreja em relação à evolução.

Os últimos períodos do excerto que reproduz são absolutamente supérfluos, uma vez que dizer «a teoria da evolução não é ainda uma doutrina completa, cientificamente verificada» não faz muito sentido, ou seja, a ciência não tem «doutrinas completas», tem modelos que refina constantemente e que apresenta como as melhores explicações do momento.

O que é relevante é a primeira parte do excerto, aquela que fica no ouvido de quem não percebe de ciência nem da natureza da ciência. Ou seja, na prática B16 pretende deixar dúvidas sobre a evolução nos católicos ileteratos científicos e apaziguar os restantes.

De igual forma, a condenação do criacionismo puro e duro não é inesperada dadas as óbvias palermices deste. Mas Ratzinger nunca se pronunciou claramente sobre o «desenho inteligente» nem nunca desdisse João Paulo II naquela de que a evolução não se aplica ao homem.

Esta é complicada de resolver, porque se o homem evoluiu lenta e progressivamente de um organismo unicelular primevo, desenvolvendo gradualmente o que nos torna diferentes das outras espécies - a alma que para a Igreja nos distingue dos outros animais e possibilita as nossas capacidades senciente e intelectual únicas - como justificar o pecado original e a necessidade de um salvador de «almas»?

Do ponto de vista científico, a moral humana é uma consequência da evolução do homem, um sub-produto da evolução do cérebro humano, não só em dimensões mas em «qualidade», que permitiu o desenvolvimento de mecanismos cognitivos únicos ao homem. Não faz sentido postular mecanismos diferentes para o desenvolvimento de comportamentos semelhantes. Ou seja, não faz sentido postular a existência de um Deus, que nos criou «à sua semelhança», criação essa que justifica a diferença no ser do Homem em relação ao ser de outros animais.

Tal como as capacidades cognitivas, as capacidades comportamentais, nomeadamente morais, únicas aos humanos decorrem da nossa evolução biológica, igualmente única. Ou seja, evoluiram connosco ao longo de milhões de anos.

O que torna complicado responder à questão: Em que ponto da evolução fomos mimoseados com almas que necessitam ser «salvas»? Teriam o H. erectus, o H. habilis ou o Neanderthal alma?

Palmira F. da Silva disse...

Oops, o anterior era sobre o ponto 4.

Sobre o ponto 5, Rtazinger apenas retomou a versão tomista anima forma corporis e pelo que fui lendo a questão tem mais a ver com a «ressureição» que com outra coisa.

Mas também disse, porque «um cristão (e, com mais forte razão, um pensador) não deveria considerar o monismo como algo de menos perigoso e menos fatal que o dualismo»:

«No entanto, justamente por este facto, não há necessidade de se negar o conceito de alma, nem de substituir a alma por um novo corpo. Não é este ou aquele corpo que fixa a alma, porém é a alma que continua a existir e que retém em si, interiorizada, a matéria da sua vida, esperando impacientemente o Cristo ressuscitado, para uma nova união entre espírito e matéria, união que se abre nele».

Palmira F. da Silva disse...

Os excertos anteriores são e um artigo de Ratzinger em 1982 na revista Communio intitulado «Entre a morte e a ressurreição», que basicamente dizia que a dualidade alma-corpo deve sempre ser mantida, porque deixa muito claro que embora o ser humano pertença ao mundo material, não se reduz à matéria e há outra dimensão no homem.

Ou seja, que o homem não se define só pela matéria nem só pelo espírito.

Ouseja ainda, uma visão «antropológica correcta», (a tal «antropologia bíblica» tão abundantemente na carta aos bispos que explica o devido lugar da mulher na sociedade ameaçado pelo «feminismo radical»), deverá acentuar a unidade fundamental do ser humano mas deve também frisar a constituição dualista do homem, «espiritual» e «material». Nem dualismo, nem monismo, mas dualidade de aspectos constitutivos (corpo e alma, claro).

alfredo dinis disse...

Palmira,
Os seus comentários estão cheios de interpretações. Não há nada de mal em interpretar, fazemos isso permanentemente, mas a interpretação tem limites.
(NB-A numeração que utilizo agora não se refere à anterior.)

1.Quando afirma que Ratzinger é contra a ciência, não apresenta nenhuma citação para fundamentar essa afirmação.

Em Ratisbona, Ratzinger não fez ‘essencialmente um ataque à ciência «que tornou Deus supérfluo»’, como interpreta a Palmira, mas sim “um ataque à ciência que torna Deus supérfluo” – não ‘à ciência’, mas ‘à ciência que’, isto é, a uma certa ciência que se considera legitimada para se pronunciar sobre a existência de Deus. Ora aqui parece que estamos os três de acordo: Ratzinger, a Palmira e eu. Com efeito, a Palmira afirma que “pela sua própria natureza, a ciência exclui explicações sobrenaturais ou divinas, ou seja, a ciência não pode nunca incluir Deus nos seus modelos.” Sobre isto estamos os três de acordo. Afirma ainda que “nunca a ciência de per se incluirá deuses ou outras sobrenaturalidades nas suas explicações, teorias e modelos.” De acordo. Mas se não inclui deuses o que a legitima a exclui-los?

A Palmira afirma uma segunda vez que “o discurso do Papa, assenta na crítica à ciência que exclui Deus,” Exactamente, de novo a crítica não é à ciência, mas a uma determinada ciência.

Quando alguém critica “a política que protege a corrupção’, não está a condenar a política ‘que protege a corrupção’. Nem toda a política protege a corrupção, mas apenas a política que se desviou da sua missão.

2. “com explicações naturais de fenómenos naturais, não há alguma razão ou prova para acreditarmos que, a existir o sobrenatural indispensável às religiões, este tenha qualquer interacção ou efeito no mundo natural.”

Plenamente de acordo. As explicações naturais de fenómenos naturais são isso mesmo e apenas isso: explicações naturais de fenómenos naturais. A interacção ou os efeitos do ‘sobrenatural’ (o que poderá ser isto?) no mundo natural – se existe - não entra no conjunto dos fenómenos naturais, logo não tem uma explicação natural. Haverá alguém que defenda o contrário?

3. A Palmira continua a afirmar que é evidente que existe uma incompatibilidade entre ciência e religião, mas ainda não me deu uma única razão fundamentada. E para explicar que existam cientistas cristãos que não vêm tal incompatibilidade, dá-me o exemplo dos padres pedófilos, um exemplo bastante infeliz e que nada tem a ver com a questão. Quando diz: «se há tantos pedófilos que são padres, como podem conciliar a sua fé com a sua prática pedófila?», conhece algum padre pedófilo que afirme que a pedofilia e o sacerdócio são compatíveis? Eu não conheço. Não basta fazer afirmações abstractas. O facto de muitas pessoas se embriagarem não significa necessariamente que conciliam livre e conscientemente a embriaguês com uma saudável existência física e social. Não lhe parece? Mas os cientistas cristãos conciliam livre e conscientemente a sua fé com a sua prática científica.

4. “Os últimos períodos do excerto que reproduz são absolutamente supérfluos, uma vez que dizer «a teoria da evolução não é ainda uma doutrina completa, cientificamente verificada» não faz muito sentido, ou seja, a ciência não tem «doutrinas completas», tem modelos que refina constantemente e que apresenta como as melhores explicações do momento.”

Completamente de acordo. Mais uma vez parece que estamos os três de acordo. Recordo porém à Palmira que não fui eu que tomei a iniciativa de reproduzir este excerto. Foi a Palmira que o reproduziu de forma truncada e que lhe permitia dizer que para Ratzinger a teoria da evolução não pode simplesmente ser verificada porqu não pode ser objecto de estudo laboratorial. Não é isso o que ele diz.

Afirma ainda a Palmira:

“O que é relevante é a primeira parte do excerto, aquela que fica no ouvido de quem não percebe de ciência nem da natureza da ciência. Ou seja, na prática B16 pretende deixar dúvidas sobre a evolução nos católicos ileteratos científicos e apaziguar os restantes.”

Trata-se de uma interpretação sua que não condivido. As interpretações têm limites.

5. “se o homem evoluiu lenta e progressivamente de um organismo unicelular primevo, desenvolvendo gradualmente o que nos torna diferentes das outras espécies - a alma que para a Igreja nos distingue dos outros animais e possibilita as nossas capacidades senciente e intelectual únicas - como justificar o pecado original e a necessidade de um salvador de «almas»?

O pecado original não é a acção cometida por Adão e Eva de comerem o fruto proibido. Não existiu nenhum paraíso terrestre, nenhum Adão e nenhuma Eva, a não ser na interpretação literal do Génesis feita pelos criacionistas e que a Palmira não assume, certamente. A narração da criação do mundo no livro do Génesis é de natureza sapiencial e não histórica ou científica. O pecado original é simplesmente a tendência que o ser finito e limitado que é o ser humano de querer dispensar Deus e ocupar o seu lugar.
Quanto à incarnação de Cristo, ele não veio ‘salvar as almas’, veio confirmar a existência de Deus e fazer à humanidade a proposta de basear as suas relações interpessoais no amor e na justiça. Há na história da Igreja Católica mais que uma interpretação sobre a incarnação de Cristo.

6. "O que torna complicado responder à questão: Em que ponto da evolução fomos mimoseados com almas que necessitam ser «salvas»? Teriam o H. erectus, o H. habilis ou o Neanderthal alma?"

Ou seja ainda, uma visão «antropológica correcta», (a tal «antropologia bíblica» tão abundantemente na carta aos bispos que explica o devido lugar da mulher na sociedade ameaçado pelo «feminismo radical»), deverá acentuar a unidade fundamental do ser humano mas deve também frisar a constituição dualista do homem, «espiritual» e «material». Nem dualismo, nem monismo, mas dualidade de aspectos constitutivos (corpo e alma, claro).

‘Corpo e alma, claro. Quando digo que posso medir o peso e a altura de uma pessoa, também posso dizer: ‘peso e altura, claro’. Mas não estou de modo nenhum a afirmar que existe o peso sem altura ou altura sem peso , e que os dois elementos são separáveis. Isso seria uma abstracção que não teria qualquer significado. Ratzinger afirmou em ‘Introdução ao Cristianismo’ que embora se possa ainda utilizar a expressão ‘corpo e alma’ enquanto ela significa que o ser humano não se reduz à pura biologia, há uma linguagem mais actual para dizer o mesmo. O ser humano não ‘tem uma alma’, recebe de Deus a relação que o torna verdadeiramente humano, e é essa relação que constitui a sua ‘alma’. Não me parece correcto escolher algumas citações de alguns textos que parecem confirmar a interpretação da Palmira, ignorando outras citações que não vão na linha dessa interpretação. Não é correcto tomar a parte como se fosse o todo. Por exemplo: hoje é a mecânica relativista que é a mais actual, sendo a mecânica newtoniana a menos actual e menos correcta. Todavia, o facto de alguém dizer que se pode utilizar a mecânica newtoniana para cálculos intermédios entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno não justifica que seja considerado um simples newtoniano, e que não aceite a mecânica relativista, ou que exista uma incompatibilidade entre as duas.

7. “Do ponto de vista científico, a moral humana é uma consequência da evolução do homem, um sub-produto da evolução do cérebro humano, não só em dimensões mas em «qualidade», que permitiu o desenvolvimento de mecanismos cognitivos únicos ao homem. Não faz sentido postular mecanismos diferentes para o desenvolvimento de comportamentos semelhantes. Ou seja, não faz sentido postular a existência de um Deus, que nos criou «à sua semelhança», criação essa que justifica a diferença no ser do Homem em relação ao ser de outros animais.

Tal como as capacidades cognitivas, as capacidades comportamentais, nomeadamente morais, únicas aos humanos decorrem da nossa evolução biológica, igualmente única. Ou seja, evoluiram connosco ao longo de milhões de anos."

A evolução biológica que levou à complexidade do cérebro humano constitui uma condição necessária da moral, e até mesmo da religião, mas não a sua condição suficiente. É isso o que o insuspeito António Damásio afirma em ‘Ao Encontro de Espinosa’

’A elucidação dos mecanismos biológicos em que assentam os comportamentos éticos não significa que esses mecanismos ou a sua disfunção sejam a causa singular de um determinado comportamento. O facto de que contribuem para o comportamento não significa que sejam, necessariamente, determinantes desse comportamento” (p. 189 da edição portuguesa)

“os mais recomendáveis comportamentos humanos não são necessariamente impressos nos circuitos neurais sob o controlo do genoma” (p. 188)

“uma explicação neurobiológica simples da emergência da ética, da religião, das leis e da justiça não é de todo viável” (p. 184)

Finalmente, a ética humana não se fundamenta na existência de Deus. As posições éticas dos crentes não são exclusivas deles, mas sim transversais à diversidade dos seres humanos. Há pessoas que são contra o aborto sem serem crentes, e não fundamentam em Deus essa posição ética. O mesmo se passa com a eutanásia e as demais questões relacionadas com a ética. Há uma fundamentação racional para as posições éticas dos cristãos que não necessitam da autoridade divina, uma vez que essa fundamentação é muitas vezes comum a não crentes.


Cordiais saudações,

Alfredo Dinis

Palmira F. da Silva disse...

Caro Alfredo:

A sua defesa do Ratzinger faz-me lembrar uma anedota que circulou pouco depois do 25 de Abril. Nela um fulano, nos tempos da ditadura, foi apanhado pela Pide a escrever

Salazar para a rua
Não faz falta à nação

Safou-se de ir parar à prisão porque disse que o tinham interrompido antes de pôr a pontuação:

Salazar para a rua?
Não, faz falta à nação!

Palmira F. da Silva disse...

Agora a sério, a ciência não se pronuncia sobre Deus. Deus está totalmente ausente da ciência e esse é o problema de Raztinger.

Claro que não se preocupa muito com o que se passa na metalurgia, na química ou afins.

Mas para ver qual é o problema nada melhor que as palavras de Ratzinger no livro «Truth and Tolerance» (2004)

«The separation of physics from metaphysics achieved by Christian thinking is being steadily canceled. Everything is to become "physics" again. The theory of evolution has increasingly emerged as the way to make metaphysics disappear, to make "the hypothesis of God" (Laplace) superfluous, and to formulate a strictly "scientific" explanation of the world.

(...)

Thus the Christian idea of God is necessarily regarded as unscientific.

There is no longer any "theologia physica" that corresponds to it: in this view, the doctrine of evolution is the only "theologia naturalis," and that knows of no God, either a creator in the Christian (or Jewish or Islamic) sense or a world-soul or moving spirit in the Stoic sense.»

Palmira F. da Silva disse...

No ponto 2 aparentemente estamos de acordo.

Mas o ponto depois é a resposta à sua dúvida inicial do ponto 3. Ou seja, a ciência explica o mundo natural de forma natural, sem qualquer necessidade de sobrenaturalidades. Ou seja, toda a ciência exclui Deus.

Aliás, essa é a «queixa» de Ratzinger: a ciência tornou Deus supérfluo ao dar uma explicação científica do mundo, obviamente sem Deus.

Ou como tão bem explicou Neil deGrasse Tyson, Deus só existe para lá do perímetro da nossa ignorância

«Eu, como Ptolomeu, sinto-me humilde face ao nosso Universo bem regulado. Quando me encontro na fronteira cósmica, quando toco as leis da física com a minha caneta ou quando contemplo o céu infinito de um observatório no topo de uma montanha, inundo-me de admiração pelo seu esplendor. Mas faço-o sabendo e aceitando que se proponho um Deus para lá desse horizonte, aquele que agracia o vale da nossa ignorância colectiva, o dia chegará em que a nossa esfera de conhecimento terá crescido tanto que eu não mais terei necessidade dessa hipótese».

Para lá desse perímetro não há qualquer incompatibilidade entre ciência e religião. Claro que com incompatibilidade me refiro a explicações científicas e religiosas em relação aos mesmos fenómenos (estamos a discutir a carta que achou muito pobre, não esqueça).

Palmira F. da Silva disse...

O excerto do livro de Ratzinger que reproduzi - mais à frente disserta sobre micro-evolução, que aceita, e sobre-macroevolução, nem por isso porque exclui o «Criador» - responde também ao ponto 4 e mostra que não é uma questão de interpretação minha (ou se calhar é, e Ratzinger só lança dúvidas metafóricas e não literais sobre a evolução :)

Mas voltando ao ponto 3, continuo a não perceber porque insiste que o facto de existirem cientistas crentes indica que não há uma incompatibilidade metodológica entre religião e ciência. Especialmente vindo da parte de alguém que neste espaço de debate tanto se tem esforçado por dizer que umas andorinhas não fazem a Primavera.

Por exemplo, no post sobre exorcismo afirmou que « Embora sejam padres, falam apenas em nome próprio, e não me parece que se deva dar a tais opiniões uma importância que de facto não têm.»

Porque razão no caso do exorcismo, os padres (e a cúpula da Igreja) que conciliam livre e conscientemente a superstição e a sua fé não são exemplo e o devem ser os que conciliam a religião e a fé?

Palmira F. da Silva disse...

Agora ponto 5:

«O pecado original é simplesmente a tendência que o ser finito e limitado que é o ser humano de querer dispensar Deus e ocupar o seu lugar.»

Esta descrição parece os queixumes de Ratzinger sobre a ciência, assim de repente dá ideia que a ciência é o pecado original :)


Não percebi muito bem a diatribe da alma nem o que tem a ver com mecânica clássica ou quântica, especialmente depois da afirmação absolutamente extraordinária (e sem qualquer confirmação, é nestas que digo que ciência e religião são incompatíveis) de que:

O ser humano não ‘tem uma alma’, recebe de Deus a relação que o torna verdadeiramente humano, e é essa relação que constitui a sua ‘alma’.

Só não percebi se está a dizer que eu, por exemplo, não sou verdadeiramente humana já que não tenho nenhuma relação com o sobrenatural (tirando ser fan de ficção fantástica).

Palmira F. da Silva disse...

Em relação à ética e a Damásio, obviamente que não são só factores biológicos que a determinam, os factores sociais são extremamente importantes. O homem não é apenas um animal biológico é também um animal social e não podemos dissociar ambas (a tal história da nature or nurture tão estudada, por exemplo, em gémeos verdadeiros que cresceram em ambientes diferentes).

Acho que não seria necessário o Damásio escrever que «uma explicação neurobiológica simples da emergência da ética, da religião, das leis e da justiça não é de todo viável».

Todos nós o sabemos, basta olhar para o mundo que embora cada vez menos ainda espelha bem a importância dos factores sociais na emergência de diferentes éticas, religiões, leis e sistemas de justiça. Se estas fossem determinadas exclusivamente pela biologia seriam iguais em todo o lado e não o são. Claro que estas diferenças também apontam para a inexistência de qualquer factor «divino» que as determine...

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