sábado, 23 de agosto de 2008

Crença dogmática na razão

Há uma tendência para fazer críticas à "razão" ou à "razão lógica". Muitas vezes, essas críticas são meros disparates. Vejamos porquê.

O racionalismo não é uma crença absoluta na “razão lógica”; na verdade, a expressão “razão lógica” nada quer dizer. Quem não conhece a lógica, por exemplo, não faz a mínima ideia de como é possível pensar sem usar o princípio do terceiro excluído, ou da não contradição. Para saber como se faz essas coisas é preciso estudar lógica. Além disso, a avaliação crítica e cuidadosa de todas as ideias é precisamente o que se faz quando não deixamos adormecer o intelecto por palermices tonitruantes, pelo que é absurdo pensar que alguém que seja racional aceita a racionalidade sem nada se perguntar sobre o que ela é ou quais os seus limites. Se alguém quiser estudar a racionalidade e os seus limites tem uma ampla bibliografia à sua disposição, mas quem escreve essa bibliografia não são gurus que exigem dos discípulos apenas a repetição acrítica de mantras.

Ninguém provavelmente alguma vez defendeu que tudo é explicável pelos seres humanos, pela simples razão de que é evidente que somos tolos e muitíssimo limitados. Mas nenhuma conversa sobre os limites da racionalidade pode ter como conclusão legítima a ideia de que há um acesso privilegiado à verdade que só algumas pessoas têm e que é “diferente” da maneira normal como todos sabemos se está ou não a chover ou em quantos pedaços podemos dividir um bolo para toda a gente ficar com o mesmo. A falácia aqui é sempre a mesma: criticar o raciocínio com o fim de fazer parar todo o pensamento e preparar as pessoas para toda e qualquer palermice que se reivindica infalível e como tal insusceptível de crítica.

É incoerente criticar quem tem uma crença injustificada nos poderes da razão, ao mesmo tempo que se defende que há ideias que não carecem de justificação — as nossas preferidas, ou as mais bonitas, ou as dos autores que preferimos porque têm bigode ou porque são carecas. Eu também sou careca, mas o que eu digo não é divino e deve ser cuidadosamente criticado pelas pessoas. Se é mau — e é — ter uma crença injustificada nos poderes absolutos da razão, também é mau ter uma crença injustificada nos limites da razão. E se é mau ter crenças injustificadas em geral — e é —, então o tipo de trabalho cuidadoso que temos de fazer é pensar articuladamente, sofisticadamente, deitando mão de tudo o que nos possa ajudar a ver com mais clareza — em vez de deitarmos poeira lexical para o ar, para depois qualquer tolice retrógrada e muitas vezes fascista soar como a Verdade Final.

7 comentários:

alfredo dinis disse...

Caro Desidério,
Nem só de proposições racionalmente justificadas vive o ser humano.

Um abraço,
Alfredo

Desidério Murcho disse...

Pois não. Só que isso é completamente irrelevante para o que eu escrevi. As pessoas precisam de água, por exemplo. Mas isso nada tem a ver com o que está em causa.

Renato Rocha disse...

Desidério:

O acesso privelegiado à verdade é justificado pela fé. Melhor dizendo. Essas verdades que a razão não consegue justificar, são justificadas - para aqueles que acreditam nela - pela fé.

A fé é uma tipo de crença que a razão não consegue explicar. Pelo menos eu não conheço esses estudos.

Ainda assim, se a fé pode ser melhor que a razão em algum ponto, é no facto que as pessoas podem dormir mais tranquilas tendo fé em Deus do que buscando razões através da ciência.

Desidério Murcho disse...

Renato, uma coisa é justificar algo à toa, outra coisa é saber se essa justificação é boa ou aceitável. Justificar algo pela fé só é aceitável se a própria fé for justificável. Se não houver razões para pensar que a fé é justificável -- se as pressoas têm fé só porque estão a sonhar alto, porque gostariam que existisse um deus -- então, justificar seja o que for pela fé não é aceitável.

Isto conduz-nos, pois, a um dos temas centrais da epistemologia da religião: saber se a fé é justificável ou não. Plantinga e Swinburne têm trabalhos importantes sobre isto, defendo o primeiro uma tese arrojada chamada "epistemologia reformada".

carolus augustus lusitanus disse...

Estamos a falar de que razão: pura, impura...?

Fico bastante surpreendido que uma pessoa que debata um tema destes escreva «na verdade, a expressão “razão lógica” nada quer dizer»... ponto.
Este senhor Desidério (com todo o respeito), acho que teria grande sucesso na literatura, pois tem bastante verve e escreve bem (sintaticamente), mas quanto ao «pensamento» em si, é muito fraquinho - no fundo, e desculpem a arrogância, o que faz é deitar «poeira lexical para o ar», enredado num labirinto de conceitos e teorias de que perdeu o fio de Ariana.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Esta para a razão a feminista e a razão lógica a feminina.

Dou fé que as duas são mulheres!

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Querido Desidério Murcho a tolice nem é má, nem assombra.

AINDA AS TERRAS RARAS

  Por. A. Galopim de Carvalho Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais ...