sexta-feira, 8 de junho de 2007
O primeiro aniversário de Camões
Quando se aproxima o dia de Camões, convidámos Carlota Simões, professora de Matemática da Universidade de Coimbra, a escrever sobre o poeta nacional:
Quem conhece a obra A Astronomia dos Lusíadas de Luciano Pereira da Silva sabe que ‘Camões tinha um conhecimento claro e seguro dos princípios da astronomia, como ela se professava no seu tempo’ e que utilizava com rigor tabelas de efemérides astronómicas. Depois de conhecermos esta faceta de Camões, não podemos ler o terceiro verso do soneto ‘O dia em que eu nasci, morra e pereça’ sem concluir que Camões se refere a um eclipse solar que de facto teve lugar e que foi visível a partir de Portugal continental.
O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Como o soneto nos fala do dia do nascimento do poeta, apetece pôr mãos à obra, procurar efemérides astronómicas, consultar tabelas de eclipses e a partir delas determinar a data de nascimento de Luís de Camões, com precisão superior à que é hoje oficialmente conhecida: ‘nasceu por volta de 1524 ou 1525’, data indicada pelo seu biógrafo Manuel de Faria e Sousa, baseado num documento segundo o qual Camões se teria inscrito para embarcar para a Índia em 1550, aos 25 anos de idade.
Na verdade, a análise deste soneto com recurso à astronomia foi feita por Mário Saa em 1939, que deduziu ter sido a 23 de Janeiro de 1524 o nascimento de Luís Vaz de Camões. Infelizmente, nem o autor nem o seu trabalho são conhecidos, e, mais infelizmente ainda, há ainda quem, conhecendo-o, indique erradamente a data que Mario Saa tão diligentemente encontrou:
Antes de regressarmos ao soneto, convém esclarecer um termo técnico que é fundamental para esta análise. O passo do Sol é o espaço percorrido pelo Sol (visto da Terra, obviamente) sobre a eclíptica, durante um dia completo. Como o Sol avança sobre a eclíptica cerca de um grau por dia, o passo é praticamente igual a um grau, e o termo era muito usado como sinónimo de grau no tempo de Camões. Lentamente, um passo por dia, o Sol percorre toda a eclíptica regressando ao ponto inicial no prazo de exactamente um ano.
Voltando ao soneto, lemos nos primeiros versos:
“O dia em que eu nasci [..] // não torne mais ao mundo e, se tornar,// eclipse nesse passo o sol padeça”.
O dia em que Camões nasceu, segundo ele próprio, não deveria voltar mais ao mundo. Mas, caso voltasse, o Sol deveria sofrer um eclipse ao voltar ao mesmo passo. Ora, tal aconteceria quando voltasse o mesmo dia do ano, um ano depois, quando Camões completasse um ano de idade. A partir daqui, resta-nos procurar todos os eclipses visíveis em Portugal em 1524 e 1525 para assim datar o primeiro aniversário de Camões. Mário Saa consultou as tabelas de Abraão Zacuto, mas nós podemos fazer os cálculos directamente, por exemplo a partir do sítio da NASA:
Eclipses solares visíveis a partir de Lisboa entre 1500 e 1536 (calendário juliano)
Nessa lista encontramos apenas um eclipse solar nos anos de 1524 e 1525: 23 de Janeiro de 1525. Trata-se de um eclipse anular, cuja visibilidade podemos analisar no mapa seguinte.
Eclipse Predictions by Fred Espenak and Jean Meeus (NASA's GSFC) Região de visibilidade do eclipse que ocorreu no dia do primeiro aniversário de Camões.
Deste modo, através da sua poesia, Camões deixou-nos a chave para datarmos o seu nascimento a 23 de Janeiro de 1524, exactamente um ano antes da ocorrência de um eclipse solar anular, visível em Portugal.
Post Scriptum: Na sequência da publicação deste texto, a data que se indica como errada em http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2006_10_01_archive.html foi prontamente corrigida pelo autor, que terá usado a data 27-1-1524 por esta estar referenciada nas «Líricas Portuguesas», 3.ª série, 1.º vol. de Jorge de Sena. Resta agora identificar qual terá sido a fonte de Jorge de Sena.
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11 comentários:
:):)
Bom dia.
É interessante o artigo e a possibilidade por ele levantada para a datação do nascimento de Camões.
Após olhar com um pouco mais de atenção, motivado por este post, não é para mim inequívoco que nos versos indicados Camões se refira ao eclipse um ano após o seu nascimento. É uma possibilidade. Mas um poema é um poema e os significados não são, muitas vezes, "directos".
Já agora, por distracção, levanto outra possibilidade. A ter observado realmente um eclipse que o impressionasse a ponto de o inserir num poema, seria interessante ter sido o de 25 de Fev. de 1579, o único anular desse século (consultando a tabela que a Carlota indicou) e, portanto, mais impressionante com os seus cerca de 3 minutos de "escuridão" total.
Aí já consigo imaginar o choro aterrorizado de ignorantes a imaginarem ver o fim do mundo.
Se assim fosse, e se realmente coincidisse com o seu dia de aniversário e Camões se tivesse decidido a assinalá-lo no (ou com) soneto, talvez ele tenha nascido a 25 de Fevereiro.
É claro que se o soneto tiver sido escrito antes dessa data (e isso não faço ideia), este raciocínio foi engraçado enquanto durou. :)
Seja como for, já estamos tão habituados a comemorar o dia da morte de Camões... Será que se ficasse estabelecido de forma definitiva o dia de nascimento, o feriado mudaria de lugar?
"Ora, tal aconteceria quando voltasse o mesmo dia do ano, um ano depois, quando Camões completasse um ano de idade".
Fazendo minhas as palavras do comentador anterior, não vejo como é que se chega a esta afirmação, para a qual nada, no soneto, aponta, nem de longe nem de perto. Hipótese por hipótese, acho mais consistente a que ele propõe (muito embora seja, de facto, impossível saber a data do soneto - a única consideração podendo ser que parece tratar-se de uma composição de "balanço", verosímil numa idade mais avançada).
Marvl
Curiosamente, este soneto é bastante idêntico a uma passagem no livro de Job, cap.3, que pode ser visto aqui:
http://www.idm.pt/biblia/Job1.htm
Não sou especialista, mas creio que a hipótese levantada no post será um pouco rebuscada, apesar de muito interessante.
Cumprimentos
Pois, a teoria é interessante. Mas não leio o soneto dessa forma, isto é, com indicação de um eclipse no prazo de um ano. Aliás, essa interpretação até me aprece um pouco forçada. Contudo, interessante!
«Infelizmente, nem o autor nem o seu trabalho são conhecidos, e, mais infelizmente ainda, há ainda quem, conhecendo-o, indique erradamente a data que Mario Saa tão diligentemente encontrou»…
Muito obrigado pela correcção que faz ao erro contido na nota biográfica que acompanha o poema de Mário Saa publicado no Insónia (link directo para o post: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2006/10/xcara-das-mulheres-amadas.html). A data de 27-1-1524 é a que aparece referenciada nas «Líricas Portuguesas», 3.ª série, 1.º vol., por Jorge de Sena. Sendo a nota em causa da responsabilidade do autor de «Sinais de Fogo», não me atrevi a desconfiar da mesma. Fiz mal, acabando por dar eco a um erro que é, de facto, infeliz.
«Se non è vero, è ben trovato»...
Mas... tenho as minhas dúvidas.
Eu apostaria na hipótese indicada por Slayer: este soneto parte de uma paráfrase de um texto do Livro de Job, o que não é novidade em Camões. Tenha-se presente o famoso poema (redondilhas) «Sôbolos rios que vão» (ou «Super flumina»), a partir do Salmo 137(136) (ver um confronto entre os dois textos aqui).
No caso deste soneto citado no «post», compare-se com o início do citado texto de Job, de que sublinho algumas frases:
«Desapareça o dia em que nasci
e a noite em que foi dito:
'Foi concebido um varão!'
Converta-se esse dia em trevas!
Deus, lá do alto, não se preocupe com ele
nem a luz o venha iluminar.
Apoderem-se dele as trevas e a escuridão.
Que as nuvens o envolvam
e os eclipses o apavorem!
Que a sombra domine essa noite;
não se mencione entre os dias do ano
nem se conte entre os meses!
[…]»
Esta tradução, da Difusora Bíblica, pode ser encontrada integralmente aqui.
Alef
A propóstio da análise deste soneto, seja-me permitido apresentar a minha "tese" sobre o nascimento de Cristóvão Colombo. Deois se entenderá por que razão o faço.
O Infante D. Henrique era amigo de um fidalgo pobre do Algarve (que nesse tempo, tal como agora, se escrevia Allgarve...) que tinha muitos filhos, e por causa disso disse-lhe um dia que ele era como um colombreiro (pepineiro). Ficou-lhe o nome, e alguns da família passaram aos Açores, tendo o nome evoluído para Cogumbreiro. Gonçalo Velho Cabral terá conhecido uma filha do Colombreiro, em Santa Maria, e dela teve um filho a que chamou Cristóvão, nome mais ou menos comum naquela ilha. Para esconder a filiação paterna, Cristóvão só usava o nome da mãe, cuja abreviatura (coisa comum na época) era Colombº. Ora facilmente se percebe por que razão passou a ser Colombo. Também há quem diga que era Colon ou Colom, e nesta forma se vê outra maneira de abreviar Colombreiro (Colom.)
Encurtando razões. Isto não passa obviamente de um pequeno exercício de como, apanhando um público distraído, se pode inventar muita coisa em História... e noutras áreas.
Aprendi aquele soneto de Camões como uma paráfrase da já aqui oportunamente citada passagemm do Livro de Job. Creio que ir além disso será um curioso exercício de cultura histórica, embora também de uma mais do que provável fantasia.
Que bom ver este artigo com uma verdade tão despretensiosamente apresentada. Num Camões que cercam de pseudo-problemas aqui está uma bela homenagem ao poeta nacional com um problema bem resolvido
"A boa e a má polémica… e os 500 anos do nascimento de Camões - por José Luz – Mais Ribatejo" https://maisribatejo.pt/2024/01/28/a-boa-e-a-ma-polemica-e-os-500-anos-do-nascimento-de-camoes-por-jose-luz/?fbclid=IwAR3INttDs6liOOby5XDeVc7GJHOajcAqlPktY4j5jimoK5Z4gNZ3XkmGKK8
"A propósito dum soneto ao 5.º Duque de Bragança subsídios para a tradição camoniana de Constância – Mais Ribatejo" https://maisribatejo.pt/2024/02/10/a-proposito-dum-soneto-ao-5-o-duque-de-braganca-subsidios-para-a-tradicao-camoniana-de-constancia/?amp=1&fbclid=IwAR0_z97cbDyjHbgjH5wM_NDAV0Wzm_j6B0lcpLMZTwRhXBtHLjVIygfxNk0
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