Uma das ideias erradas sobre a filosofia que dificulta o seu ensino é o mito da subjectividade. Quero falar deste mito, relacionando-o com algo de mais geral que explica a sua génese e tem por sua vez consequências também mais gerais e mais inquietantes.
A mentalidade positivista que adoptámos em Portugal vê as coisas assim: de um lado, estão as ciências e do outro está a completa subjectividade. Neste segundo lado mete-se a filosofia, a história, e tudo o que não é ciência. Este dualismo entre a ciência e as humanidades é falso, desastroso e fruto de uma incompreensão de base quer das humanidades quer da ciência.
Quem defende que a filosofia é subjectiva pensa que a ciência é o que não é e está convencido que a filosofia não é o que é. Essa pessoa pensa que a ciência é um amontoado de resultados, prontos a decorar e a aplicar, para fazer pontes e automóveis e prédios e remédios para os bicos-de-papagaio. E pensa que a filosofia não é um estudo rigoroso, objectivo e científico. E está enganada nos dois casos.
Comecemos pelo primeiro. Não podemos confundir os resultados da ciência com a ciência em si. A melhor maneira de percebermos a diferença é a seguinte. Imaginemos que na Antiguidade egípcia os nossos antepassados tinham descoberto uma espécie de Enciclopédia Galáctica, deixada em terras egípcias por alienígenas. Com base nessa Enciclopédia, os egípcios poderiam fazer pontes e automóveis e tudo o que hoje é o resultado da ciência. Diríamos, nessa circunstância, que os egípcios tinham ciência? Certamente que não. Limitaram-se a aplicar receitas cujos fundamentos desconhecem, como eu posso perfeitamente fazer um magnífico jantar sem perceber nada de culinária, seguindo apenas uma receita muito boa. O problema é pensar-se que a ciência é precisamente uma espécie de receitas, conjuntos de fórmulas «objectivas» para fazer pontes e micro-ondas. Isso não é a ciência; é apenas uma aplicação da ciência. A ciência é o que está antes disso, é a investigação fundamental que procura compreender melhor o mundo que nos rodeia. E é isso que os egípcios do nosso exemplo não têm.
Compreendo que em Portugal se possa ter esta ideia da ciência. Se me é permitida a caricatura, é como aquela criança a quem perguntamos de onde vem o leite e nos responde: «Do supermercado!» O que há de errado com esta criança é não perceber o que aconteceu antes de o leite aparecer no supermercado. O que há de errado na concepção que muitos estudantes têm da ciência é do mesmo teor. A ciência não é na sua maior parte feita em Portugal: é importada. A tecnologia não é portuguesa, e a ciência também não. Os medicamentos que compramos são quase todos de laboratórios estrangeiros, e os livros que usamos nas faculdades são também estrangeiros e esta situação dá às pessoas a ilusão de pensar que a ciência vem dos livros, tal como a criança pensa que o leite vem do supermercado. Tal como o leite, também a ciência passou por um longo processo antes de chegar aos livros que são depois copiados, repetidos, decorados e aplicados em Portugal. A ciência nasceu na cabeça dos seres humanos, nus e sós perante o universo, e sem quaisquer garantias de resultados. Mas quem se limita a consumir ciência como quem consome leite empacotado, não se apercebe disto.
Ora, quando compreendemos o modo como a ciência se faz, desfaz-se o mito de que a ciência é objectiva e a filosofia subjectiva. Em ambos os casos temos actividades humanas que procuram ir além dos nossos preconceitos e limitações, e em ambos os casos temos sucessos e falhanços. A verdadeira diferença entre a filosofia e a ciência é apenas esta: a ciência produz muitos mais resultados consensuais do que a filosofia. Mas quando estamos nas fronteiras do conhecimento, seja na ciência ou na filosofia, estamos sempre na mesma situação: somos seres humanos razoavelmente inteligentes que procuram dar o seu melhor e não têm quaisquer garantias. Quando estamos a desenvolver teorias sobre o início do universo não podemos sentar-nos, decorar meia dúzia de fórmulas, e resolver o problema. Não! Tal como na filosofia, temos de nos confrontar com muitas teorias diferentes e contraditórias, entre as quais não é fácil decidir. O que engrandece a humanidade é haver pessoas que insistem em tentar, quando muitas outras teriam logo desistido por ser tudo «muito subjectivo».
O que me assusta na ideia que os estudantes fazem da filosofia e da ciência é o alheamento que isto revela e a falta de preparação para enfrentar os desafios humanos mais básicos. Quem pensa que onde há disputa tudo é subjectivo não está preparado para entrar na discussão de ideias que faz avançar o conhecimento e é vítima da ideia infantil de que o leite vem do supermercado — ou seja, que o conhecimento está todo feito e escrito algures. Era bom que os professores preparassem os nossos estudantes não para consumidores e aplicadores acéfalos do conhecimento importado por atacado, mas em participantes de igual direito na comunidade internacional que discute ideias contraditórias e teorias rivais — que é de onde verdadeiramente vem o leite.
Excerto do livro A Natureza da Filosofia e o seu Ensino, de Desidério Murcho (Plátano, 2002).
terça-feira, 19 de junho de 2007
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6 comentários:
Dério,
Sobre a subjectividade e sobre o seu post "O que é a ética?".
Não querendo desmentir a fatalidade de eu ser um nabo, começo por me alinhar com a ideia de que a filosofia não é refém da subjectividade, sob pena de não passar de uma actividade especulativa inútil, atravancada na cabeça de cada um. Em informática chama-se "portabilidade" da linguagem à possibilidade de a usar em sistemas diferentes, e ou muito me engano ou é esse o primeiro propósito dos filósofos e das suas propostas.
Em segundo lugar, parece-me que o trabalho filosófico no domínio da lógica, da prospecção metódica da dúvida e do erro é essencial também às ciências exactas (já aqui estrebuchei qualquer coisa sobre isto) pelo que não me revejo na abordagem redutora e dualista "ciências exactas" e "completa subjectividade" que refere no texto.
Em terceiro lugar a minha teimosia sobre a subjectividade da ética. Pelo que tenho lido sobre a validade e qualidade das premissas, das premissas das premissas, é inevitável concluir que na origem essencial desta validação está a natureza individual - ou prudência emocional, como lhe chamou - onde deixa de haver a transparência necessária à filosofia não subjectiva. Por isso comentei no outro post que esta fragmentação me parece incompatível com os objectivos próprios da filosofia. As perguntas da ética normativa que o Dério exemplifica
- Qual é o bem último?
- O que faz uma acção ser correcta?
- Será que o aborto assim e assado?
- Será que temos o devere de ajudar os mais pobres?
são a meu ver impossíveis dados os atributos que os próprios filósofos pretendem do seu trabalho. Reconheço, obviamente, a conceptualização ético-jurídica que organiza "por grosso" o patamar ético, por exemplo, da legislação. O problema é que, como diz o Mia Couto, cada homem é uma raça.
Quero falar acerca desta frase:
"a ciência produz muitos mais resultados consensuais do que a filosofia."
Creio que foi a propósito da primeira opinião que deixei escrita neste blog que outro seu frequentador classificou o que eu disse como "terrorismo verbal". Tratava-se, nem mais nem menos, do que a síntese de um capítulo de um livro que publiquei há uma dúzia de anos. Resumo agora esse resumo da seguinte forma: a consciência é a maneira de o universo se defender da não existência, porquanto não ser conhecido nem ter consciência de si é o mesmo que não existir.
Por ests dias, numa revista de ciência, li que Christian de Duve disse que a consciência é uma expressão do cosmos tão fundamental como a própria vida.
De certeza que não é consensual. Apesar disso, ninguém terá dito que se tratou de terrorismo verbal.
Infelizmente não é só a filosofia que sofre de subjectividade ilusória, as artes e as literaturas estão carregadas dela e a própria ciência, como tem sido denunciado neste blog, também se vê a braços com variadíssimas "coisas" como o criacionismo e outras curandices.
Aliás, a subjectividade é uma arma fantástica no nosso dia a dia. Independentemente do nosso grau de formação, nos tempos actuais, explicar uma atitude que possamos ter tomado é um exercício de pura estupidez porque a subjectividade já tinha explicado essa nossa atitude muito antes de a termos tomado.
Os políticos são os mestres da subjectividade (o dilema Ota/Qualquer local é um exemplo recente assim...de pouca importância) por isso é que passam o tempo a esfregar as costas uns aos outros com dicotomias esquerdas/direitas ou capitalismo social versus socialismo liberal.
Já, se formos comprar um canudinho e portanto acrescentarmos o apelido dr ao nome passamos a sofrer do oposto, razão excessiva. Qualquer disparate que a gente diga é uma demonstração de elevados níveis de racionalidade, para nós e para os outros.
Esta situação é também bastante confortável para a generalidade dos mortais e por isso é tão difícil remar contra a maré de todas as formas de "eduQuês?".
A economia é que é uma malandra porque normalmente acaba por estragar estas continhas todas. E, continhas que estão certas! Já o confirmámos. Só que o piiib... e a produtividaaade...
E por isso também, é que a Filosofia é uma coisa gira. Para um hobby. Tipo cubo mágico das ideias ou... soduku intelectual.
Certamente derivei do tema mas como acredito que a bondade humana pode ser ilimitada, estarei naturalmente perdoado.
Artur Figueiredo
Quem perdoa uma vez, também fácilmente perdoa duas, e eu já agora vos confesso que tenho o persentimento que o melhor local para o "aeroporto da ota" era algures ao largo entre Cascais e Setúbal. As distâncias ideais seriam proporcionais a 1/5 para Lisboa e 4/5 para Setúbal que é a correspondência com os fluxos de utilizadores da Portela.
Já ouço sussurros de Ah mas o oceano! É tão ecológico e primitivo... as espécies autóctones? Falso. Portela, Ota e Camp´deTiro seriam exemplos de Empreendimentos Urbanos do mais sólido desenvolvimento ambiental humano integrado do planeta e os lucros seriam utilizados para aumentar a população de tainhas e afins.
Todos os estudos ambientais sobre a implantação do aeroporto oceânico teriam de atingir o consenso absoluto e claro, a primeira condicionante lançada sobre a mesa seria a manutenção das rotas migratórias desses portentosos animais oceânicos que são os petroleiros e mercantes.
Teríamos com toda a certeza, mais de um terço da população portuguesa directamente servida, camelos de um lado e do outro do Tejo e tempo de sobra para toda a população poder fazer coisas muito mais úteis.
Os leitores, neste momento estão a pensar: - Este palerma quer é tirar a Capital Portuguesa das rotas aéreas! Mas garanto-vos: É o oposto! Pelo contrário, Portugal seria o único destino do mundo em que uma viagem de avião seria um dois em um inesquecível: sim, se temos um país lindo teremos seguramente um oceano inolvidável.
Qualquer réstia de ideia, facilmente descarregaria a manga de passageiros em luxuosos catamarãs e ao cabo de dez minuto poderíamos descansadamente estar a almoçar numa marisqueira da Rua de Santo Antão ou efusivamente de botinha de borracha, cana de pesca e minhoca a caminho de desfrutar o melhor que há no Sado.
Que se dane a problemática da aerodinâmica dos ventos porque as construtoras aeronáuticas ganham mais do que o suficiente para legislativamente serem obrigadas a adaptar os seus brinquedos e as infra-estruturas de apoio necessárias ao aeroporto atlântico resumiriam os investimentos necessários nesta matéria a uma ninharia para aquisição de dúzia e meia de catamerãs e uns míseros euros para recuperar os necessários cais e docas. Ou não sejamos nós uma nação marítima!
Claro que isto é uma ideia completamente tola porque garantidamente não arregimentarei ninguém para pagar os estudos!
Mas, se vista subjectivamente...
Artur Figueiredo
Reduzo em poesia e aumento em eficiência: troque-se os catamarãs por hovercrafts.
artur Figueiredo
O Forte do Bugio poderia servir de Heliporto.
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