A produção de bebidas ditas espirituosas por fermentação natural de alguns produtos vegetais data de há pelo menos 6000 anos. De facto, entre os sumérios a cerveja era tão apreciada que existia uma deusa da cerveja, Ninkasi, e o código de Hammurabi incluía uma série de disposições sobre a cerveja, nomeadamente prescrevia punições físicas para os taberneiros que a diluissem. Já os egipcios pareciam preferir o vinho sendo a cerveja - henket ou zythum - a bebida da povo e aparentemente dos sacerdotes de Ámon De facto, Ramsés III passou a ser conhecido como o faraó-cervejeiro depois de agraciar os referidos sacerdotes com quasi meio milhão de ânforas do precioso líquido.
O agente que eleva os espíritos - embora na realidade seja um depressor - o álcool do léxico do quotidiano, o álcool etílico ou etanol, foi descoberto por um alquimista árabe do século VIII, جابر ابن حيان Jābir ibn Hayyān, conhecido pelo seu nome latinizado Geber, o pai da alquimia árabe e um dos precursores da química.
Na realidade, embora a maioria dos historiadores de ciência situe o pré-nascimento da química no século XVII com Robert Boyle e se considere Lavoisier o pai da química, a química, enquanto ciência que procura responder ao como e porquê de transformações da matéria através da respectiva constituição, começa a delinear-se com Geber.
Este árabe, cujo trabalho alguns historiadores consideram ser na realidade produto de uma escola e não de uma única pessoa, foi contemporâneo dos califas abássida al-Mansur (754-775) - que transferiu a capital para a recém-criada Bagdad - e Harun ar-Rasid (786-809), no califado do qual Bagdad começou a ser transformada no epicentro da difusão de conhecimento que substituiu Alexandria como centro de saber.
Jābir ou Geber escreveu tratados de filosofia, astronomia, medicina e biologia, mas a sua maior contribuição verificou-se no campo da alquimia. Introduziu a investigação experimental na alquimia, lançando as bases para a química moderna, ao realçar que «A coisa primordial na alquimia é que se pode realizar trabalhos práticos e conduzir experiências», acrescentando que «quem não faz trabalhos práticos nem faz experiências nunca dominará a alquimia».
Jābir escreveu ainda que «Saiba que nós só mencionamos nos nossos livros o que experimentamos, e não tudo que ouvimos, ou o que nos foi dito e tivemos a oportunidade de estudar, o que era conforme a realidade adoptámos, e o que era falso rejeitámos.»
Assim, embora exista em Geber uma tendência mística incompatível com a ciência, esta é evidenciada nos seus outros escritos e não tanto nos seus tratados de alquimia. A sua procura do al-iksir ou al-aksir - que deu origem a elixir - o «xerion» ou seco que poderia realizar a transformação de um metal em ouro, adveio do facto de ter considerado que os diferentes metais eram constituídos por diferentes proporções de enxofre e mercúrio. Rearranjando essa proporção e as suas qualidades «exteriores» resultaria um metal diferente. De facto, embora classificando os materiais em três categorias: «espíritos» - que vaporizam ou sublimam sob aquecimento, como a cânfora ou o al-kohl -, metais e pedras, Geber adoptou os arqué de Empédocles, os quatro elementos a que todos os materiais se reduziriam - fogo, terra, água e ar-, mas considerou que as respectivas qualidades - quente, frio, húmido e seco - poderiam ser combinadas determinando as qualidades «exteriores» dos metais enquanto as restantes seriam «interiores» e inatas.
Não é assim de espantar que Geber tenha dado contribuições preciosas para a metalurgia, reconhecidas pelo mestre artesão Vanoccio Biringuccio no seu De la Pirotechnia, publicado em 1540 - embora Biringuccio não soubesse quem as tinha introduzido e referisse «algo muito engenhoso motivo pelo qual devemos ser muito gratos ao filósofo, alquimista, ou seja lá quem tenha sido o seu descobridor».
Os seus 22 tratados alquímicos são devotados ao desenvolvimento de métodos químicos básicos e ao estudo de reacções químicas, abrindo caminho para a quimica moderna ao notar que numa reacção química estão envolvidas quantidades bem determinadas dos reagentes. Os seus livros descrevem ainda técnicas de purificação e separação como fusão, sublimação, cristalização fraccionada, filtração - destilação sem fogo ou destillatio per filtrum - calcinação e especialmente destilação (simples, fraccionada e por arrastamento de vapor). Jabir desenvolveu vários instrumentos para o seu trabalho alquímico, nomeadamente o alambique com que destilou o espírito do vinho, o al kohl.
Ao destilar vários sais na presença de ácido sulfúrico - Zayt al-Zaj, ou óleo de vitríolo -, Jābir descobriu o ácido clorídrico (com cloreto de sódio, o vulgar sal de cozinha) e ácido nítrico (a partir de salitre, ou nitrato de potássio). Combinando os dois ácidos, inventou a água-régia, que «dissolve» ouro (por complexaçao do ião Au+ que resulta da oxidação do ouro), o que permitiu a extracção e purificação deste metal. A ele também é creditada a descoberta do ácido cítrico (existente em limões e outras citrinos), ácido acético ( vinagre), ácido tartárico (do resíduo de fabricação de vinho), o uso de dióxido de manganês na fabricação de vidro - um processo ainda hoje utilizado - e a introdução de termos químicos como ál-cali (alcalino).
Na Idade Média, os seus tratados de alquimia, como o Kitab al-Kimya, o Livro da Composição Alquímica, traduzido por Robert de Chester em 1144 e o Kitab as-Sab’een introduzido por Gerard de Cremona nos finais do séculoXII, influenciaram marcadamente os alquimistas europeus. Marcelin Berthelot traduziu ainda outros livros de Jābir ibn Hayyān sob os títulos de Livro do Reino, Livro das Balanças e Livro do Mercúrio Oriental.
terça-feira, 15 de maio de 2007
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6 comentários:
e no entanto, armas químicas, népia...
Pal,
Sou um dos 500.000 portugueses enxertados numa garrafa de whisky, e o seu post começa com uma imprecisão que na minha comunidade tilintou numa onda de indignação. "Bebida Espirituosa" é a que resulta de um processo de destilação de bebida fermentada, como por exemplo a cerveja, esta sim, com cerca de 6000 anos. Hic!
Dos gardenias para ti...
con ellas quiero decir... Hic
Longe de mim insultar os apreciadores do uisge beatha ou uisce beatha ou usquebaugh, a água da vida ou aqua vitae doutras paragens não gaélicas.
Este bebida espirituosa tinha a ver com a elevação dos espíritos humanos induzida pelo efeito do espírito das bebidas fermentadas em alguns neurotransmissores (como, p.e., o GABA) e pela desinibição consequente :-)
Pal,
Lembrei-me de uma experiência mística que fica algures entre a química e a alquimia que me convém tornar pública.
Numa aula prática de química analítica, no 9º ano do liceu, reuniram-se grupos para fazer uma titulação com NaOH concentrado e fenolfetaleína (se não me engano) e lá estávamos nós, o acne juvenil, as batas, as buretas, os funis e os agitadores a rodar no fundo dos erlenmeyers. Tudo preparado nas bancadas, a gota-a-gota marcando o compasso. A expectativa crescia nas caras à volta do processo e do resultado ainda incolor, canetas em riste para apontar as quantidades, no ar um aroma de Adam's mentol e sentido de responsabilidade. Neste processo lento e monótono até que... só mais algumas gotas... (o outro grupo já está quase a avaliar pelo burburinho, os sacanas!) e voilá! Do incolor se fez carmim, denso, lindo, desejado! E enquanto os meus colegas discutiam acerca da conveniência de acrescentar mais uma gota para consolidar o resultado, o Bruce Lóse, com o seu ensejo de agradar às miúdas, pega no erlenmeyer, triunfante, ergue-o até ao silêncio de todos, e brinda ao sucesso bebendo-o de penalti. Temperei o efeito com umas caretas simulando "delirium tremens", e o resultado foi de tal forma espectacular que um colega (que ainda hoje faz por se esquecer disso) não susteve um chichi nas calças. Momentos de grande glória. Ainda a aula não tinha acabado e estava aos beijos com uma presa (que ainda hoje faz por se esquecer disso).
Ou seja, desculpem-me qualquer coisinha, e não, não sou alcoólico.
Bem, se o titulante era uma base e o titulado virou vermelho o indicador devia mesmo ser fenolftaleína.
Considerando ser provável estarem a titular HCl, o Bruce não bebeu mais que uma solução ligeiramente alcalina - se tiverem trabalhado bem - de sal de cozinha, com um pouquinho de indicador.
Isto admitindo que o material utilizado estava escrupulosamente lavado...
Sal puro, que o de cozinha e ligeiramente iodado para intensificar o sabor.
"Isto admitindo que o material utilizado estava escrupulosamente lavado... "
Eu diria que isto e o cerne da questao. No computo geral, "a experiencia" encerra em si muitos dos males no sistema de ensino publico portugues identificados pelo matematico num post um pouco acima.
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