segunda-feira, 21 de maio de 2007

COIMBRA E A GÉNESE DA CIÊNCIA MODERNA 2


Continuação do escrito anterior, em co-autoria com Décio Ruivo Martins, sobre a história da ciência em Portugal. Depois de ter sido descrito o tempo de Galileu em Portugal, descreve-se o tempo imediatamente posterior, isto é, o tempo de Newton. Na figura rosto de um dos famosos livros dos Conimbricenses ("Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate Jesu. In universam dialecticam Aristotelis Stagirita", 1606).


Nos anos que se seguiram à passagem de Borri por Coimbra, continuaram a verificar-se influências renovadoras em aulas de Filosofia no Colégio das Artes, em Coimbra, leccionadas por portugueses. São exemplos os cursos de Baltasar Teles – Summa Philosophiæ: in quatuor partes distributa, de Francisco Soares Lusitano – Cursus philosophicus in quatuor tomos distributus, e de António Cordeiro – Cursus Philosophicus Conimbricensis.

Após a difusão das descobertas astronómicas de Galileu, as novas ideias passaram a ser ensinadas no Colégio das Artes. Nos cursos de Teles, Lusitano e Cordeiro podia aprender-se que: a matéria celeste tinha a mesma natureza que a da Terra; que os astros eram corruptíveis; que apareciam estrelas novas e que os cometas não eram elementares e sublunares; e que os astros não eram movidos por anjos… E mais: Todos os elementos eram pesados e não buscavam naturalmente os seus lugares; a gravidade era apenas uma força intrínseca; também era por uma força intrínseca que os astros se moviam; o centro do mundo não existia e, portanto, não podia “apetecer” às partes da Terra. Se uns corpos desciam e outros subiam, tal se devia à diversidade do peso: provinham exclusivamente da diferente resistência do meio, porque por si tendiam igualmente para o centro. Não havia fogo elementar entre a terceira região do ar e a Lua; o Sol não era sólido: estava em ebulição, salvo no centro que era bastante sólido; tinha manchas e era dotado não só de movimento de translação mas também de rotação. Em resumo, o pensamento de Aristóteles tinha sido muito abalado e, em parte, substituído.

Baseando se num estudo pormenorizado do Cursus philosophicus de Soares Lusitano, o historiador João Pereira Gomes destacou a independência de ideias e o conhecimento dos mais recentes tratados científicos daquele professor. Com efeito, Lusitano afirmou que, perante os novos conhecimentos, nem desprezava as coisas antigas, quando verdadeiras, nem abraçava as recentes, quando falsas: Agradam me as coisas verdadeiras, porque verdadeiras; desagradam me as falsas, porque falsas. Pois não me arrasta a beleza da novidade, ou o peso da antiguidade, mas a verdade das coisas. Apoiando se nas observações que os modernos matemáticos e físicos tinham feito e publicado sobre o Sol, Lusitano afirmava tratar se não de um corpo sólido, mas sim líquido. Os modernos que lhe serviam de referência eram Copérnico, Tycho, Borri, Galileu, Kepler, etc. Segundo ele, aos melhores matemáticos e físicos deveria dar se todo o crédito nas coisas de que eram diligentíssimos investigadores. Destacava o facto de Simão Mário e Francisco Rodrigues Cassão terem feito observações do Sol em Coimbra, e o descreviam como parecendo ouro liquefeito numa fornalha quando observado pelo helioscópio, um instrumento destinado a observar o Sol sem ferir a vista. Cassão, considerado por Lusitano um insigne matemático nesta Universidade de Coimbra, afirmava que através do seu helioscópio com vinte e quatro palmos de comprimento via-se toda a circunferência do Sol a borbulhar, tal como a água a ferver borbulha numa panela ao lume. Eram, na verdade, novos estes fenómenos, mas, como provinham de instrumentos de observação, a sua veracidade não podia ser negada!

Ao longo da segunda metade do século XVII Coimbra continuou a ser um local de passagem de estudiosos da Matemática e da Astronomia, alguns dos quais, tal como antes, em trânsito para o Oriente. Antes de partir para o Oriente, o jesuíta belga Antoine Thomas ensinou num curso de Matemática do Colégio das Artes, frequentado por candidatos à missão da China. Foi durante a sua estada em Coimbra que Thomas observou o eclipse da Lua de 29 de Outubro de 1678. Os resultados da observação foram enviados ao padre jesuíta Jean de Fontenay, professor de Matemática no Colégio de Clermont, França, e depois publicados num artigo, em Fevereiro de 1679, no Journal des Savants, sob o título Observation de l'éclipse de lune du 29 octobre 1678 à Coimbre.

A controvérsia sobre a natureza da luz na época de Newton

O final do século XVII – um tempo dominado pela figura de Newton – ficou assinalado no Colégio das Artes pela discussão acerca do hilemorfismo – doutrina aristotélico escolástica, segundo a qual os corpos resultam de dois princípios distintos e complementares: a matéria, princípio indeterminado de que as coisas são feitas, e a forma, princípio determinante da essência particular a cada ser. Este assunto deu origem a uma forte polémica, na qual esteve envolvido o jesuíta açoriano António Cordeiro, que veio para o Continente no Verão de 1656 e entrou para a Companhia de Jesus no ano seguinte. Depois de um período de ensino no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, regressou a Coimbra, onde ensinou durante duas décadas. As obras científicas mais recentes tinham sido reunidas nas bibliotecas de Coimbra. Não admira por isso que, entre as muitas referências apresentadas por Cordeiro no seu Cursus Philosophicus Conimbricensis, apareçam várias a Kepler, Galileu, Descartes, Gassendi, etc.

Sobre a natureza da luz, uma questão estudada experimentalmente por Isaac Newton, Cordeiro afirmava que não havia dúvida de que a luz era aquilo que tornava os objectos claros e manifestos; e tal acontecia pelos sentidos e pela experiência. Para ele, a dúvida estava em saber qual era, na realidade, a natureza da luz. Cordeiro comentou que a luz, criada por Deus quando exclamou faça se a luz, não seria mais do que um elemento substancial do fogo. Segundo ele, esta opinião podia ser provada pela experiência, visto que os raios de luz aqueciam, queimavam, iluminavam, etc., como se podia verificar através do espelho ustório, um grande espelho côncavo que fazia convergir os raios solares para um ponto. Esses raios, mesmo quando dispersos, não deixavam de ser fogo, mas manifestavam mais intensamente as suas propriedades ígneas quando concentrados no foco do espelho.

Para Cordeiro as espécies que estavam na origem das sensações visuais eram tenuissima corpuscula, ou eflúvios corpóreos. À semelhança do que era proposto na teoria corpuscular de Newton, cuja versão final foi publicada em 1704 no livro Opticks (uma das mais notáveis peças da obra newtoniana, apesar de não ser tão conhecido como os Principia), Cordeiro também concebia a luz como uma substância material, formada por partículas pequeníssimas que eram continuamente emanadas da fonte luminosa. As suas ideias geraram, porém, grande controvérsia no Colégio das Artes. Na Primavera de 1696 António Cordeiro foi suspenso do ensino em consequência da disputa em torno das suas opiniões. Apesar de ter começado a ensinar em Coimbra em 1676, só em 1714 obteve autorização do Geral da Companhia de Jesus para publicar as suas lições, o que fez sob o título Cursus Philosophicus Conimbricensis.

A natureza corpuscular da luz e a sua velocidade de propagação finita também tinham implicações no domínio da Astronomia. Cordeiro considerava que a percepção que temos das coisas longínquas do Universo era influenciada pelo facto das partículas ígneas emanadas pelos corpos luminosos se deslocarem com uma velocidade finita, embora muito elevada (Galileu tinha tentado, sem êxito, medir essa velocidade). Contudo, os opositores da natureza corpórea da luz argumentavam que, se a luz demorasse algum tempo a chegar do Sol à Terra, então jamais o Sol seria visto onde realmente se encontrava. Para responder a esta dificuldade Cordeiro recorreu à experiência, fazendo notar que, quando se movia circularmente um tição aceso, se julgava ver a brasa em cada ponto dessa circunferência. Apontava como razão do engano a conservação das imagens nos nossos olhos durante um certo tempo. A defesa que fez da observação e do método experimental Cordeiro torna-o, decerto, merecedor de maior conhecimento e reconhecimento.

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