segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A génese das actuais ordens profissionais


O nosso habitual colaborador Rui Baptista volta ao tema, que sabemos polémico, da Ordem dos Professores:

“Entre a ordem e a sua execução há um abismo” (Ludwig Wittgenstein)

No meu post de 3 de Agosto passado A (Des)Ordem dos Professores apresentei razões para discordar do facto de o exercício da função docente não satisfazer os princípios que devem presidir ao conceito de profissão liberal, ainda que stricto sensu.

Acresce que sempre que surge a polémica a propósito da criação de uma futura Ordem dos Professores, surge, também, invariavelmente o argumento de que esta forma de organização profissional enferma de cumplicidade com o regime político deposto em 25 de Abril de que colho, como exemplo, um artigo de opinião do Professor Vital Moreira onde escreveu que as ordens profissionais “têm proliferado no nosso país apesar de terem a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo” (“Público”, 5 de Julho de 2005). Ainda nesse jornal, em 22 de Julho desse ano, chamei a atenção para a evidência de “a Ordem dos Advogados ser anterior à Constituição Portuguesa de 33 que estabeleceu o regime corporativo no nosso país”. Escassos dias depois (26 de Julho), acrescentou Vital Moreira, no mesmo periódico, que “a Ordem dos Advogados foi criada num dos primeiros governos da Ditadura que precedeu e preparou o Estado Novo, sendo depois integrada na organização corporativa juntamente com as demais criadas”.

Em face desta dualidade de posições sobre a génese das ordens profissionais portuguesas, escoro-me nos seguintes argumentos:

1.º - A Ordem dos Advogados foi criada sete anos antes da implantação do Estado Novo, através do Decreto n.º 11.715/26, de 12 de Junho (site da Ordem dos Advogados: ‘Resumo histórico da Ordem dos Advogados’).

2.º - As Ordens dos Advogados, dos Médicos e dos Engenheiros ‘foram depois representadas, pelo decreto-lei 24.083, de 27.XI.1934, na Organização da Câmara Corporativa, representação que só a Ordem dos Advogados repudiou por considerar deprimente, da sua corporação, a subordinação’ (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 1936-1960, vol. XIX, p. 557).

3.º - Ainda na referida enciclopédia, é aditado que ‘todas as três ordens funcionam, mas somente a dos Advogados continua excluída da Câmara Corporativa’”.

Apesar da proliferação a que se assiste hoje de ordens profissionais (e de outras na forja), ainda persiste a ideia de que todas as anteriores a 25 de Abril foram geradas no ventre licencioso do Estado Novo. Esta como que uma espécie de ultima ratio a que se agarram em desespero de causa os sindicalistas que se arrepiam só em ouvir falar da criação de uma Ordem dos Professores como instituição dignificante do exercício docente e reforço de garantias de um ensino em mãos de profissionais com as devidas habilitaçõs académicas e com responsabilidades arroladas num código deontológico próprio que lhes defina os deveres profissionais e sancione o seu eventual não cumprimento.

Em período de intensa e prolongada agitação laboral e tensão social desgastante, em que se contam espingardas sindicais e se estabelecem acordos ocasionais que fariam corar de vergonha o próprio Fausto, assumem-se publicamente como opositores à criação de uma Ordem dos Professores algumas organizações sindicais com destaque para a Fenprof e para a Federação Nacional do Ensino.

Com excepção das acções em prol de uma Ordem dos Professores a cargo do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados e da Associação Nacional de Professores (esta última uma organização profissional não sindical, como ela própria se define), o desacordo, ou mesmo o receio, das estruturas sindicais em relação à criação dessa associação pública, é tanto mais desmedido por a Constituição Portuguesa, no seu artigo 267, n.º 4, estabelecer expressamente que “as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”. Ou seja, nunca a César o que não é de César!

domingo, 24 de agosto de 2008

A física do impossível


Transcrevemos o artigo de Nelson Marques com o título de cima da revosta "Única" do semanário "Expresso" de ontem:

Alguns dos temas da ficção científica poderão tornar-se realidade num futuro não muito longínquo, defende o físico norte-americano de ascendência japonesa Michio Kaku. A invisibilidade pode estar à distância de poucas décadas mas viajar no tempo demorará muito mais

“Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela”. A frase de Albert Einstein é o ponto de partida para o mais recente livro do reputado físico teórico norte-americano, Michio Kaku, professor da City University de Nova Iorque e um adepto da “teoria de tudo” desejada por Einstein. Em “A Física dos Impossíveis”, que chegará a Portugal no Outono com a chancela da Bizâncio, Kaku aborda algumas das fantasias clássicas da ficção científica que, na sua opinião, poderão tornar-se uma realidade. O "Expresso" revela-lhe algumas dessas teorias mais extravagantes e dá-lhe a conhecer a opinião do físico português Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra.

Teletransporte

Apesar do cepticismo da generalidade dos cientistas sobre a possibilidade de desmaterializar uma pessoa num lugar e rematerializá-la noutro, o físico japonês acredita que o cenário imaginado na popular série “Star Trek” poderá mesmo ser uma realidade dentro de dois séculos. Kaku lembra que os físicos estão já a realizar experiências de teletransporte de partículas conhecidas como fotões a uma distância de 142 quilómetros, um fenómeno descrito por Albert Einstein como “efeito fantasmagórico à distância”. Contudo, os fotões não são transportados verdadeiramente, já que os fotões originais são destruídos e o que chega ao outro lado são fotões idênticos com a mesma informação dos iniciais.

O veredicto de Carlos Fiolhais: "Sou céptico. O chamado teletransporte que se faz actualmente com luz pouco tem a ver com a ideia do “Star Trek” de passar instantaneamente o Capitão Kirk de fora para dentro da nave."

Invisibilidade

Kaku acredita que esta impossibilidade física até agora será a primeira a tornar-se realidade, no espaço de apenas uma década. A opção mais promissora é familiar aos fãs de Harry Potter: passa pela criação de uma espécie de capa de invisibilidade, capaz de desviar a luz dos objectos, tornando-os invisíveis. Para o conseguir, os cientistas estão a desenvolver um novo tipo de substâncias, denominados metamateriais, com propriedades electromagnéticas muito diferentes dos materiais comuns. Enquanto estes têm um índice de refracção positivo, os metamateriais apresentam um índice negativo, permitindo camuflar o objecto.

O veredicto de Carlos Fiolhais: "Acho perfeitamente possível. De certo modo os aviões invisíveis ao radar (luz de microondas) são já um protótipo de objectos invisíveis à luz".

Viagens no tempo

É outro dos temas mais recorrentes dos filmes de ficção científica e, segundo o professor catedrático da Universidade City de Nova Iorque, não existe nenhum impedimento nas leis da física que torne impossível viajar no tempo. A esse propósito, Kaku lembra o consagrado físico teórico Stephen Hawking, professor da Universidade de Cambridge, o qual, durante grande parte da sua carreira, descartou essa possibilidade, mas, desde há uma década, vem admitindo que “é possível, mas nada prática”. Para forma de concretizar este desafio, os cientistas terão que, segundo Kaku, desenvolver os seus próprios buracos de verme, atalhos cósmicos que funcionam como ligações entre regiões do universo. A intensa gravidade destes túneis seria suficiente para desintegrar a estrutura do espaço-tempo, funcionado assim como janelas para viajar no tempo. Um cenário que, admite o autor, poderá levar, contudo, alguns milénios a concretizar-se.

O veredicto de Carlos Fiolhais: "Às viagens no tempo não digo categoricamente que não, mas, se possíveis, serão extremamente difíceis e muito limitadas."

Contacto com vida extraterrestre

O autor norte-americano acredita que um possível contacto com qualquer cultura extraterrestre poderá acontecer no prazo de apenas algumas décadas. Para justificar o seu optimismo, lembra que nunca como hoje a comunidade científica dispôs de tão boas oportunidades para entrar em contacto com outros mundos. Os satélites e telescópios espaciais de última geração irão permitir, de acordo com o cientista, analisar mil vezes mais dados do que aqueles recolhidos até hoje. Entre eles está o satélite "Kepler", que a NASA pretende lançar em Fevereiro do próximo ano para encontrar no espaço planetas semelhantes à Terra.

O veredicto de Carlos Fiolhais: "Gosto da ideia de que “há mais mundos”. Não me admiraria nada que viesse a acontecer... Seria um marco importante para a Humanidade."

Nelson Marques
unica@expresso.pt

A biologia da espiritualidade

No artigo "Flesh Made Soul", Sandra Blakesless explica as últimas investigações sobre as bases biológicas das experiências místicas, começando por descrever a sua própria experiência.

Presunção e água benta

Vídeo: Gustavo Lima abandona a vela.

A propósito do post «Fatos do outro mundo feitos em Portugal» recebi algumas informações muito interessantes de leitores, nomeadamente no que diz respeito às canoas Nelo que equipam desde há algum tempo os especialistas da modalidade e são preferidas pela maioria das equipas que participaram nas provas olímpicas de canoagem. A Mar Kayaks, que comercializa a marca, é assim outra empresa nacional de sucesso no desporto de alta competição sendo, por exemplo, a fornecedora oficial da Sprint National Elite Team norte-americana através da sua sucursal neste país.

Recebi ainda algumas reclamações, com imensa razão já que o post referido se focava na NASA e não enfatizava a importância da contribuição nacional para o sucesso dos fatos LZR Racer. Como refere Sérgio Neto, sócio-gerente da Petratex, este fato revolucionário:

«É o resultado de três anos de trabalho e de um processo de desenvolvimento no qual colaboramos com a Speedo, a Nasa (Agência Espacial norte-americana) e o Instituto Australiano de Desporto».

De facto, para além do tecido, o grande trunfo do LSR Racer assenta na tecnologia Nosew, patenteada pela empresa portuguesa. A teconologia nacional utiliza máquinas de costura especiais desenvolvidas pela empresa e permite coser através de ultra-sons, não deixando qualquer marca de costuras. A tecnologia patenteada mereceu uma reportagem da CNN após a sua apresentação numa feira nos Estados Unidos. A Speedo sondou a empresa sobre a possibilidade de utilizar a tecnologia Nosew nos novos fatos de natação que a marca queria desenvolver para Pequim.

Como referiu o Expresso há uns meses, durante três anos, os técnicos envolvidos no desenvolvimento do LZR visitaram a Petratex, visitas que vão continuar porque esta empresa nacional continua a colaboração com a Speedo agora no desenvolvimento da segunda geração deste fato para as olimpíadas de Londres.

«Era frequente mostrarem-se surpreendidos com o que encontravam. Às vezes, os técnicos da Speedo até confessavam que tinham vindo com alguma desconfiança quanto à tecnologia portuguesa», revelou Sérgio Neto.

Sara Oliveira foi a única nadadora portuguesa a usar o LZR em Pequim e bateu os recordes nacionais nas provas em que participou, repetindo os feitos alcançados com o mesmo fato no campeonato do mundo de natação, em Manchester. Aliás, nessa prova, com o LZR Sara não só melhorou o recorde nacional dos 100 metros mariposa como bateu na passagem aos 50 metros o recorde na distância, melhorando em 40 centésimos o que tinha fixado com o fato antigo dois dias antes.

«Bater um recorde à passagem é um acontecimento singular. Na prática, é algo como bater um recorde dos mil metros ao correr os 10 mil metros», comentou João Paulo Villas-Boas, ex-treinador de Sara e professor de Biomecânica na Faculdade de Ciências do Desporto da Universidade do Porto onde estuda a nadadora.

Podemos apenas especular sobre os resultados que os restantes nadadores portugueses poderiam ter obtido se lhes tivessem sido disponibilizados estes fatos. Nomeadamente poderíamos ter visto o Diogo Carvalho na meia-final dos 200 metros estilos já que o nadador, que nadou acima do seu recorde nacional, falhou a qualificação por nove centésimos de segundo. E qual seria o recorde nacional dos 200 metros mariposa se Pedro Oliveira, que retirou 2,19 segundos à anterior marca, vestisse o LZR? Ou Diana Gomes, que não bateu o recorde nacional dos 200 metros bruços por escassos centésimos de segundo, tal como aconteceu em relação aos 100 metros?

Devo confessar que sou espectadora ávida de todas as provas de natação, atletismo e ginástica a que consigo assistir. Infelizmente, as televisões nacionais, com a excepção quasi única nos Jogos Olímpicos, parecem enfermar de capitulação aos lugares comuns a que se referiu o Desidério e consideram que os espectadores portugueses não estão interessados em nenhum desporto que não seja o futebol.

O mesmo lugar comum parece ser partilhado pelos nossos jornais supostamente desportivos, que, como refere o Pedro Sales, devotaram ao futebol as primeiras páginas das edições coincidentes com os JO. O Pedro Sales tem sobre o tema outros posts que vale a pena ler, este, este, este e ainda este, que reproduzem na perfeição o que penso sobre a reacção nacional à prestação dos nossos atletas.

Aliás, acho curioso que os mesmos comentadores de sofá que se referem à falta de ética e de honra dos nossos atletas, que carpem a considerada «lamentável», «confrangedora», «patética» e «anedótica» delegação nacional que «esbanjou» a astronómica quantia de 15 milhões de euros em quatro anos, não comentem a ausência nos mesmos do desporto que só no seleccionador Scolari gastou uma quantia comparável no mesmo período. Parece que aqueles que se insurgem contra atletas que auferem 250 euros mensais e que tiveram um deslize nas declarações à imprensa (que, claro, glosou as mesmas ad nauseam) acham normal a recusa em participar nos JO de atletas que ganham isso por hora.

Por outro lado, nunca percebi a autoridade com que alguns comentam a prestação dos nossos atletas que, como os fatos LZR indiciam levemente, está dependente de muito mais que a «motivação», «honra» ou «ética» dos mesmos. Tirando o futebol, a aposta nacional no desporto é quase nula. Não há desporto escolar digno do nome, não há desporto universitário fora das modalidades patrocinadas pelas associações de estudantes respectivas, não há nem apoio institucional nem empresarial a qualquer desporto tirando o futebol, estavam à espera de quê? Milagres?

A experiência pessoal com a minha filha mais nova, que exclusivamente com o que chamo «matrocínio» ganhou várias provas internacionais em duas modalidades, numa delas representando a Universidade de Lisboa, que foi convidada muito cedo a integrar equipas de alta competição e não aceitou pela completa falta de apoios e pelos sacríficios monetários e pessoais que todos achavam normal a família fazer, permite-me ser totalmente solidária com o desabafo de Gustavo Lima, o velejador nacional que teve uma prestação fabulosa nos JO, com um quarto lugar apenas a um ponto da medalha de bronze:

«para andar a ouvir frases como 'os portugueses andam a gastar o dinheiro dos contribuintes' eu prefiro sair fora e sair de consciência tranquila».

Um problema nacional - e já agora não apenas no desporto - reside naqueles que acham que os muitos «carolas» que ainda vamos tendo têm obrigação de ombrear com os profissionais de outros países, profissionais que têm desde muito cedo condições para o serem. Enquanto não percebermos que não podemos depender da «carolice» de alguns (e que estes por vezes fartam-se de serem os bombos da festa) e precisamos investir a sério no desporto, começando pelo desporto escolar porque os Centros de Alto Rendimento prometidos precisam de uma base alargada de recrutamento para resultarem, vamos continuar com reedições dos coros de lamentações e críticas a que assistimos este ano. Ou então, se acharmos que não vale a pena nem o esforço nem o investimento e que os «carolas» são q.b. para o país, convinha um pouco de pudor na forma como os criticamos já que de facto os atletas se representam a si próprios e não um país, que, com raras e honrosas excepções como Naide Gomes, Francis Obikwelu ou Nelson Évora, não investiu neles!

sábado, 23 de agosto de 2008

Debates quentes

Lomborg apresenta algumas ideias sensatas sobre o aquecimento global e o que devemos fazer quanto a isso aqui, Yohe discorda aqui, mas não me convenceu.

UMA VOLTA A COMO



Minha crónica de "O Sol" de hoje (na foto estátua de Volta em Como, Itália, na qual ele segura a sua pilha):

Há lugares de turismo que são também lugares de ciência. Por exemplo, a encantadora cidade de Como à beira do lago com o mesmo nome, a norte de Milão, em Itália. No Verão numerosos turistas passeiam ao longo das margens do extenso lago. Alguns não resistem à tentação de fazerem excursões de barco, já que assim podem observar melhor o casario de Como e algumas belas villas à beira-lago (o actor norte-americano George Clooney comprou uma dessas casas, pelo que o turista pode ter a sorte de o encontrar).

Mas como é que Como é um lugar de ciência? Depois da catedral, a casa que mais impressiona o olhar do turista é o Templo de Volta. Não, não é uma outra igreja, mas sim um edifício circular neo-clássico, construído em honra do mais importante filho da terra, o físico Alessandro Volta (1745-1827), que foi inaugurado com pompa e circunstância quando se comemorou o centenário da sua morte. No interior, o visitante encontra muitos instrumentos usados por Volta (ou cópias deles, pois alguns foram destruídos por um incêndio numa exposição realizada em 1899, no centenário da invenção da pilha eléctrica). Do mais importante desses instrumentos – precisamente a pilha de Volta – existem aí valiosos exemplares. Ao vê-los percebe-se logo porque é que se chama pilha: Volta empilhou várias placas metálicas para conseguir uma tensão de cerca de um volt (o nome da unidade é uma homenagem ao sábio). No templo-museu, uma pintura com o físico a exibir a sua pilha a Napoleão em 1801 mostra que o poder político reconheceu rapidamente a importância daquela invenção.

De facto, com a pilha eléctrica, o século XIX pôde ser o século da electricidade. Graças a ela conseguiu-se pela primeira vez produzir uma corrente eléctrica estável num circuito, o que abriu o caminho ao motor eléctrico e ao dínamo. Não admira por isso que Como seja tão orgulhosa do seu cientista. Na terra quase tudo o lembra, desde a praça de Volta, com uma imponente estátua, até ao túmulo de Volta. Vale a pena dar uma volta a Como. Quem a der quererá decerto voltar…

Crença dogmática na razão

Há uma tendência para fazer críticas à "razão" ou à "razão lógica". Muitas vezes, essas críticas são meros disparates. Vejamos porquê.

O racionalismo não é uma crença absoluta na “razão lógica”; na verdade, a expressão “razão lógica” nada quer dizer. Quem não conhece a lógica, por exemplo, não faz a mínima ideia de como é possível pensar sem usar o princípio do terceiro excluído, ou da não contradição. Para saber como se faz essas coisas é preciso estudar lógica. Além disso, a avaliação crítica e cuidadosa de todas as ideias é precisamente o que se faz quando não deixamos adormecer o intelecto por palermices tonitruantes, pelo que é absurdo pensar que alguém que seja racional aceita a racionalidade sem nada se perguntar sobre o que ela é ou quais os seus limites. Se alguém quiser estudar a racionalidade e os seus limites tem uma ampla bibliografia à sua disposição, mas quem escreve essa bibliografia não são gurus que exigem dos discípulos apenas a repetição acrítica de mantras.

Ninguém provavelmente alguma vez defendeu que tudo é explicável pelos seres humanos, pela simples razão de que é evidente que somos tolos e muitíssimo limitados. Mas nenhuma conversa sobre os limites da racionalidade pode ter como conclusão legítima a ideia de que há um acesso privilegiado à verdade que só algumas pessoas têm e que é “diferente” da maneira normal como todos sabemos se está ou não a chover ou em quantos pedaços podemos dividir um bolo para toda a gente ficar com o mesmo. A falácia aqui é sempre a mesma: criticar o raciocínio com o fim de fazer parar todo o pensamento e preparar as pessoas para toda e qualquer palermice que se reivindica infalível e como tal insusceptível de crítica.

É incoerente criticar quem tem uma crença injustificada nos poderes da razão, ao mesmo tempo que se defende que há ideias que não carecem de justificação — as nossas preferidas, ou as mais bonitas, ou as dos autores que preferimos porque têm bigode ou porque são carecas. Eu também sou careca, mas o que eu digo não é divino e deve ser cuidadosamente criticado pelas pessoas. Se é mau — e é — ter uma crença injustificada nos poderes absolutos da razão, também é mau ter uma crença injustificada nos limites da razão. E se é mau ter crenças injustificadas em geral — e é —, então o tipo de trabalho cuidadoso que temos de fazer é pensar articuladamente, sofisticadamente, deitando mão de tudo o que nos possa ajudar a ver com mais clareza — em vez de deitarmos poeira lexical para o ar, para depois qualquer tolice retrógrada e muitas vezes fascista soar como a Verdade Final.

Lugar-comum

Os lugares-comuns são uma das coisas mais tristes, pois impede as pessoas de olhar à sua volta e ver a realidade, que muitas vezes refuta completamente os lugares-comuns.

É um lugar-comum falar-se da falta de apetência dos jovens pela cultura, pela ciência, pelo pensamento; mas quem alimenta a televisão, a publicidade, os shoppings, os jipes, os bares e as tolices que se lêem nos jornais e revistas não são pessoas assim tão jovens. Não me parece haver razões para pensar que nos jovens há mais estupidez e frivolidade do que nos menos jovens. Infelizmente, a palermice é um dos bens mais amplamente distribuídos pela humanidade.

A escola como espelho da sociedade

Uma das críticas que, em finais do século XIX, o Movimento da Educação Nova endereçava à escola dita tradicional, era o seu fechamento em relação à sociedade. Fechamento que podia ser atestado, tanto pelos ensinamentos que transmitia, como pelas condições de frequência que impunha e, até, pelas características físicas que apresentava. Tinha sentido esta crítica, pois no século anterior, o currículo centrava-se em conteúdos que só muito remotamente tinham ligação com o progresso científico, técnico, artístico, literário que o Iluminismo havia proporcionado, sendo o internato rígido, em circunstâncias de austeridade, vigilância e punição, o regime mais comum, sobretudo nos estudos secundários.

À luz do entendimento emergente da criança, já não como um homúnculo mas como um sujeito específico e com direitos – entre os quais se contam o de beneficiar duma preparação adequada para se integrar, em termos pessoais e profissionais, no meio que a cerca – fazia sentido aproximar a escola da sociedade. E, apesar de Ferriére, um dos mais importantes ideólogos desse movimento, encarar a Escola Nova como um “internato familiar situado no campo", a preocupação com essa aproximação, conquistou mentalidades e concretizou-se em práticas várias durante todo o século XX.

De facto, muitas das correntes pedagógicas que se desenvolveram ou surgiram nesse século, não obstante as suas singularidades, partilham o pressuposto de que a escola e a sociedade têm de seguir o mesmo rumo. Assim, a escola, deve responder, de modo eficaz, às necessidades, desafios e orientações da sociedade, sendo que esta tem uma palavra a dizer na determinação dos desígnios daquela.

É este pressuposto que, no presente, me parece ter sido extremado, impondo-se à escola, com pretextos “politicamente correctos”, o imperativo de seguir e servir a sociedade, independentemente das características que ela tiver e das tendências que manifestar.

Ora, toda a sociedade que se preza deve deixar uma clara margem de liberdade à escola para que ela eduque os sujeitos não só para se manterem integrados nela, tal como existe, mas para que a conheçam, a discutam e, numa atitude crítica, a renovem. Ou seja, a sociedade deve deixar que a escola mantenha em relação a ela uma distância estratégica, ainda que isso possa vir a jogar contra si. Tal distância tem dado, de resto, notáveis resultados na evolução das diversas áreas do saber… Quando a escola é colocada ao serviço dos interesses políticos e religiosos totalitários, os resultados tornam-se pouco vantajosos para essas mesmas áreas.

Estamos perante um assunto que requer uma reflexão muito mais atenta do que aquela que fiz até aqui, mas ela serve para deixar um apontamento: a sociedade em que vivemos, que alguns apelidam de pós-moderna, não se apresenta com contornos totalitários, mas como relativista e subjectivista, concedendo aos “grupos de pertença” e ao “eu” um lugar de destaque. Daí que toda e qualquer decisão de políticos, argumentistas, escritores, educadores, etc. deva passar, ou dar a entender que passa, pela contemplação do “respeito” que se lhes deve, independentemente de quem são, do que pensem e do que tenham feito ou façam. E a escola vai no mesmo sentido...

Isto a propósito de o Canal Fox ter decidido não emitir, não só na Argentina, mas em toda a América Latina um episódio da famosíssima série Os Simpsons por nela se fazer referência à ditadura peronista sendo mencionados, entre outros aspectos considerados incómodos, o desaparecimento de pessoas. A justificação dada ao mundo já é corriqueira: procurou-se evitar reabrir "feridas dolorosas”, “tocar num tema sério que poderia ferir muitas sensibilidades”, que “o assunto dos desaparecidos é muito sensível e não pode ser parte de uma piada”.

Aceitando a pertinência desta última justificação, o problema não passa só, nem principalmente, por aqui. Na verdade, quando, em 2002, um dos episódios desta série dava a ver ao Brasil a cidade do Rio de Janeiro muito distante dos postais turísticos, os cariocas ficaram descontentes e ripostaram. Nessa altura, os responsáveis pela série devem ter percebido que para agradar é preciso ser crítico mas… mais soft.

Infelizmente, a escola percebeu também isso e tem vindo a adoptar a mesma lógica do respeito cego por tudo e por todos. Um dos exemplos mais dramáticos desta lógica, que terá consequências trágicas na preparação das novas gerações, foi a supressão das Cruzadas, da Escravatura e do Nazismo dos currículos de História porque… são temas delicados, que podem causar melindre aos alunos, às suas famílias, à sua etnia, à sua cultura... Com a Palmira lembrou no De Rerum, aconteceu em Inglaterra, e depois em França. Em Portugal demorará a acontecer? E se acontecer, reagiremos da mesma maneira “compreensiva”?

É que também entre nós a sociedade e a escola parecem estar sintonizadas no esquecimento. Na verdade, as seguintes palavras de George Steiner não destoam no nosso sistema educativo: “a escolaridade é de amnésia planificada”.

Obra referida:
Steiner, G. & Ladjali, C. (2005). Elogio da Transmissão: O Professor e o Aluno. Lisboa: Dom Quixote.

Imagem retirada de:

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQ1ti69xKKFRkwR9oZZ-DBI7suRoM81YYg_wS0XmMlNBD5Eyaj8-zbp2a_ya4yKoC04dp825f3GK3CC2cBShmqyS1-H5WOaDKiWuqfduFMrmpmtrW_4DHqUb0SAcDv23Hl9lguP0qHhSEd/s1600-h/bart-peron-copia.jpg

O segredo da salamandra


O sucesso a nível do nosso espaço de debate de temas diabólicos recordaram-me outros diabos, ou antes, babas de diabos, que li recentemente. Alguns dos nossos leitores lembrar-se-ão certamente de alguns filmes de culto da década de sessenta como o BlowUp de Michelangelo Antonioni (1966) ou o Week End de Jean-Luc Godard, ambos inspirados em histórias do escritor argentino Julio Cortázar. O primeiro foi inspirado no conto Las Babas del Diablo do livro «Las armas secretas» que incluí em conjunto com o «Final del juego» nas minhas leituras de Verão. Este último é de longe o meu favorito, especialmente o conto Axolotl de que transcrevo uma pequena parte:
I began seeing in the axolotls a metamorphosis which did not succeed in revoking a mysterious humanity. I imagined them aware, slaves of their bodies, condemned infinitely to the silence of the abyss, to a hopeless meditation. Their blind gaze, the diminutive gold disc without expression and nonetheless terribly shining, went through me like a message: "Save us, save us." I caught myself mumbling words of advice, conveying childish hopes.They continued to look at me, immobile; from time to time the rosy branches of the gills stiffened. In that instant I felt a muted pain; perhaps they were seeing me, attracting my strength to penetrate into the impenetrable thing of their lives. They were not human beings, but I had found in no animal such a profound relation with myself. The axolotls were like witnesses of something, and at times like horrible judges. I felt ignoble in front of them; there was such a terrifying purity in those transparent eyes. They were larvas, but larva means disguise and also phantom. Behind those Aztec faces, without expression but of an implacable cruelty, what semblance was awaiting its hour?
O axolotl ou Ambystoma mexicanum a que se refere Cortázar é de facto uma espécie simplesmente fascinante. Nativa dos antigos lagos Xochimilco e Chalco, hoje bairros da Cidade do México, não fora esse fascínio e esta salamandra sempre jovem estaria certamente extinta já que hoje ainda em dia restam apenas alguns canais do que foi o lago Xochimilco, um dos quais palco das provas de canoagem e remo dos Jogos Olímpicos de há quarenta anos.

Tal como o chocolatl, o nome desta salamandra que em Nahuatl significa cão de água, tem origem na mitologia asteca. Xolotl, o deus da deformação e da morte e gémeo da serpente emplumada Quetzalcoatl, teria sido morto metamorfoseado em axolotl. Esta espécie apresenta de facto características quasi divinas que a distinguem dos restantes vertebrados. Quiçá para partilhar destas propriedades únicas, o axolotl é uma iguaria muito apreciada no México e dele se fazem elixires muito procurados (o xarope da figura foi obtido de um «primo», o Ambystoma dumerilii).

Mas quais são então as características especiais desta salamandra que a tornam tão especial? Ao contrário do que ocorre com os seus parentes próximos, sapos e rãs, e as restantes salamandras, que passam a viver na terra quando deixam as formas larvais, os axolotls permanecem na água por toda a vida. A razão deste comportamento reside no facto de os axolotls serem neoténicos, isto é, não sofrem normalmente metamorfose e vivem sempre jovens na fase larval, com guelras e barbatanas. A neotenia é a retenção de características juvenis na forma adulta, característica que no sentido lato se pode aplicar à espécie humana e ajuda a justificar o nosso sucesso adaptativo. Em relação aos axolotls poder-se-ia aplicar outros termos, pedomorfose e pedogénese, a última significando reprodução na fase infantil, neste caso na fase larval.

Assim, desde que os primeiros exemplares foram levados em 1863 para o Jardin des Plantes em Paris, onde o personagem de Cortázar os apreciou, o axolotl permanece a espécie de eleição para o estudo do desenvolvimento evolucionário. Mas quiçá a sua característica mais espantosa e mais estudada é a sua capacidade de regeneração. Em vez de desenvolverem tecido cicatricial, as células dos tecidos numa ferida desta espécie revertem a um estados quasi estaminal o que significa que podem regenerar os tecidos afectados na sua totalidade, incluindo membros e orgãos como o coração ou cérebro.

Como refere Gerald Pao, um post doc no Salk Institute for Biological Studies, «Pode-se fazer tudo ao axolotl excepto matá-lo que ele regenera».

O homem apresenta uma capacidade regenerativa muito limitada embora nos últimos anos, os resultados obtidos nos estudos com células estaminais e regeneração em sistemas modelo tenham criado uma nova esperança no sua aplicação ao homem. No entanto, estamos ainda longe de compreender os mecanismos que permitem esta capacidade regenerativa ao axolotl - ou mais limitada a tritões, outras salamandras e peixes teleósteos.

Um dado fulcral para a compreensão dos mecanismos de regeneração passa pelo conhecimento dos genes que o permitem mas pouco se sabe sobre o genoma do axolotl, mais concretamente, não se sabe exactamente que características genéticas lhe possibilitam a regeneração. A situação começou a alterar-se o ano passado quando o projecto «The Regeneration Epigenome of the Salamander Ambystoma mexicanum», liderado por Pao e colegas do Salk, ganhou o 1 Gigabase Sequencing Grant Program da Roche Applied Science.

A equipa de investigação, que pretende agora determinar exactamente em que passo do processo cada gene é activado e determinar o papel de cada gene silenciando genes específicos, sequenciou os genes mais expressados durante a formação do blastema e na etapa de crescimento regenerativo. Descobriram que cerca de 10 000 genes são transcritos no processo, dos quais apenas aproximadamente 9 000 têm correspondência nos humanos e alguns milhares não se parecem com nenhum gene conhecido.

«Pensamos que a maioria destes genes evoluíram apenas nas salamandras para ajudar este processo [regenerativo]», referiu Randal Voss, um biólogo da universidade do Kentucky, que colabora no projecto.

De facto, o genoma do axolotl, um dos maiores genomas de vertebrados sendo cerca de 10 vezes maior que o genoma humano, tem-se revelado inesperado. A sequenciação aleatória de partes do genoma revelou que os genes desta espécie são entre 5 a 10 vezes maiores que os genes de outros vertebrados e que o ADN não codificante entre genes é formado por sequências repetitivas que não foram ainda encontradas em mais nenhuma espécie. De acordo com Pao, não se sabe se estas sequêncas estão envolvidas na regeneração ou em qualquer outro processo assim como não se sabe se são estas características genéticas únicas que permitem a regeneração na salamandra.

David Gardiner, da Universidade da California em Irvine, prefere pensar que esta capacidade regenerativa não deriva de genes unicamente presentes no axolotl e que está apenas dormente nos mamíferos podendo ser acordada com a estimulação génica que a informação fornecida pelo axolotl nos permitirá. «A maioria dos tecidos do nosso braço regenera; é apenas o braço que não regenera. O que falta é o conhecimento de como coordenar a resposta para obter uma estrutura integrada», considera Gardiner numa reflexão que podemos apenas esperar se venha a confirmar num futuro não muito distante.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Divulgação, ensino e sociedade

Penso que a divulgação da ciência, da história, da filosofia, da literatura é importante, pelo menos por duas razões.

Em primeiro lugar, porque muitas vezes o ensino formal é muito mau. Lembro-me de aulas de ciências absolutamente mentecaptas, mas lembro-me também de excelentes livros de divulgação científica, como os de Carl Sagan, Jorge Buescu, Carlos Fiolhais, ou Nuno Crato. Por outro lado, as pessoas passam por vezes pela escola numa altura em que não têm ainda apetência para certas coisas, a que mais tarde darão mais valor. É importante satisfazer a curiosidade dessas pessoas, formá-las e informá-las.

Em segundo lugar, porque toda a escolha baseada no desconhecimento é na realidade uma mentira. As pessoas não escolhem geralmente a homeopatia ou a astrologia; apenas não têm a mínima noção do que distingue a ciência do estupro intelectual. Não fazem ideia do que é investigar as coisas seriamente, por contraste com fingir que é verdade o que gostaríamos que fosse verdade. É importante fazer divulgação porque é importante dar liberdade de escolha às pessoas.

Pessoalmente, não me afecta muito se a generalidade da população acredita ou deixa de acreditar na alquimia, na numerologia, no exorcismo, na astrologia, no criacionismo ou no Pai Natal. Preferia que não houvesse tanta gente a acreditar nessas e noutras coisas, mas desde que não me chateiem muito, não me afecta. Mas parece-me que não devemos esquecer as pessoas que acreditam em tolices porque nunca ninguém lhes disse, com distanciamento e imparcialidade, que são tolices e porquê. Talvez eu esteja enganado, mas dado que os conhecimentos que tenho resultam na verdade de uma longa cadeia generosa de pessoas que me ensinaram o que sei, parece-me que tenho algum dever de partilhar esses conhecimentos com os outros. E se os outros estão sedentos desse conhecimento, vale a pena perder algum tempo com isso, mesmo que pareça que não estão sedentos -- este é um daqueles casos em que só depois de beber nos apercebemos de que estávamos realmente sedentos.

O cheiro do cancro

Retirando amostras dos cheiros da pele. Crédito da imagem: Monell Chemical Senses Center, Philadelphia.

Terminou ontem em Filadélfia o 236º Encontro da American Chemical Society, ACS, onde foram apresentadas os trabalhos mais recentes da comunidade química norte-americana. Um dos trabalhos apresentados, «First detection of 'odor profile' for skin cancer may lead to rapid, non-invasive diagnostic test», poderá levar ao desenvolvimento a breve trecho de uma técnica de diagnóstico de cancro de pele absolutamente revolucionária.

Apenas nos Estados Unidos, são diagnosticados mais de um milhão de cancros de pele por ano. Os carcinomas espino-celulares e basocelulares são a forma mais comum de cancro da pele, normalmente não fatais: a maioria das mortes relacionadas com cancro de pele são devidas a melanomas, que dão conta de cerca de 5% dos casos diagnosticados. As pessoas que se suspeita poderem desenvolver cancros de pele necessitam submeter sinais suspeitos a exames e biópsias frequentes de forma a que eventuais tumores possam ser detectados numa fase inicial. O trabalho de Michelle Gallagher, uma post-doc do Monell Chemical Senses Center, em Filadélfia actualmente a trabalhar na Rohm & Haas, poderá permitir o desenvolvimento de testes de diagnóstico simples e não invasivos.

Há muito que se suspeita que os tumores libertam um cheiro único graças a uma série de estudos que indicam que os cães podem cheirar melanomas e outros cancros. Por exemplo, Armand Cognetta, um dermatologista de Tallahassee, na Florida, treinou um cão para encontrar amostras de melanomas escondidas numa sala assim como detectar melanomas na pele de pacientes enquanto Carolyn Willis, do Amersham Hospital em Inglaterra, os utilizou para detectar cancro da bexiga.

«Os cães cheiravam qualquer coisa mas ninguém conseguiu descobrir exactamente o quê», referiu Michelle Gallagher que, sob orientação de George Preti, um químico da Monell, tentou descobrir quais os compostos químicos em causa.

Para isso, a equipa trabalhou com 11 doentes aos quais tinham sido diagnosticados carcinomas basocelulares e com um grupo de controle escolhido de acordo com a idade, género e etnicidade dos pacientes. Ambos os grupos foram «limpos» de odores de fontes externas com uma semana de lavagem com produtos sem aroma e roupa fornecida pelos cientistas.

Depois da limpeza, as amostras de cheiro foram recolhidas com o auxílio de um funil dotado de um filtro absorvente colocado sobre a pele dos voluntários durante 30 minutos. A pele foi ainda lavada com uma solução alcoólica para recolher compostos não voláteis.

A equipa detectou quase 100 compostos químicos diferentes emanados pela pele usando técnicas de cromatografia em fase gasosa e espectrometria de massa. Os perfis químicos da pele saudável e cancerosa eram diferentes quer no tipo quer nas concentrações de VOCS (Volatile organic compounds, compostos orgânicos voláteis).

«Descobrimos dois compostos químicos em particular cujo perfil era significativamente diferente quando se comparava um paciente com cancro e um saudável» explicou Gallagher, sublinhando que «estão presentes os mesmos compostos químicos em ambos os casos, mas junto aos tumores certas substâncias químicas aumentam, enquanto a presença de outras diminui, em comparação com o perfil das pessoas saudáveis».

Os autores não indicaram quais as substâncias químicas em causa uma vez que pretendem procurar outros marcadores, nomeadamente associados também ao carcinoma espino-celular e ao melanoma, e patentear a sua descoberta. Se forem bem sucedidos, os narizes electrónicos em desenvolvimento poderão então ser utilizados em testes de diagnóstico com sensores parecidos com os que são utilizados nos aeroportos para detecção de metais.

Estão actualmente em desenvolvimento outros meios de diagnóstico assentes na detecção de VOCs associados ao metabolismo de células cancerígenas, nomeadamente os «Breathalyzers» para detectar cancro de pulmão.

Mas as possibilidades de diagnóstico possiblitadas pelos compostos químicos exalados não se restringem a patologias dos pulmões. Actualmente a FDA tem aprovados dois destes testes, um que utiliza os níveis de óxido nítrico no ar expirado para detectar asma e o outro que analiza níveis de hidrocarbonetos para avaliar as probabilidades de um paciente rejeitar um transplante cardíaco.

Michael Phillips, o médico CEO da Menssana Research, que comercializa os últimos testes, indica que poderão estar disponíveis em breve Breathalyzers para despistar doenças sortidas, de diabetes a problemas cardíacos e renais. O TR-580, o tricorder médico da série Guerra nas Estrelas, poderá assim passar da ficção científica para a realidade.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

A força do milagre

Entrevista com um exorcista

Aos 26 de Janeiro de 1999, na Sala de Imprensa da Santa Sé, o Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Sua Eminência Jorge Arturo Medina Estévez, apresentou o novo ritual de exorcismos da Igreja Católica. O De Exorcismis et Supplicationibus Quibusdam veio substituir aquele que ainda se mantinha em vigor, incluído no Rituale Romanum de 1614 .

Como referiu a revista Época pouco depois do lançamento do novo manual, «A Igreja Católica perdeu fiéis no período em que relegou o exorcismo, enquanto as igrejas evangélicas pentecostais arrebanhavam multidões com rituais espetaculares».

«Há católicos que não foram educados de forma adequada para a fé e duvidam da existência do diabo», disse o cardeal Medina na apresentação do manual dos exorcistas. «O maligno está em toda parte: na crença de que o dinheiro traz felicidade e de que a liberdade individual pode sobrepor-se à vontade divina.»

As advertências do prelado foram levadas a sério por uma série de dignitários católicos, Papa inclusive. Assim, não é surpresa que ao manual de 27 páginas sobre a arte de bem exorcizar qualquer «demónio» - que envolve o uso de litros de água-benta, encantamentos e orações sortidas q.b., incensos, imposição de relíquias ou símbolos cristãos-, se tenha seguido uma série de iniciativas destinadas a recuperar para o catolicismo esta prática.

Em Portugal fomos mimoseados com exorcismos em directo para a TVI por parte do padre Humberto Gama e com diversos artigos sobre a prática em jornais de referência. Ainda este ano, foi transmitida, online e em canais católicos, uma série em que figura o exorcista mais famoso da actualidade, o padre Gabriele Amorth, exorcista da diocese do Papa há 21 anos.

Também não é de espantar que as supostas «possessões» demoníacas tenham aumentado um pouco por todo o mundo católico, a tal ponto que há padres que consideram que a água benta, equivalente para o Mafarrico ao alho contra vampiros, deve estar sempre na posse dos católicos precavidos e, em pleno século XXI, há quem veja o mafarrico em coisas tão diversas como os livros do Harry Potter, uma dor de barriga ou insónias.

Para obviar a tal assalto das hostes «demoníacas», têm tido lugar vários encontros de exorcistas católicos e planeiam-se centros de exorcismos para tratar do assanhamento do Demo. De igual forma, o primeiro curso de caçadores de demónios do século XXI, realizado no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, teve tanto sucesso que foi reeditado pouco depois pela instituição, dita universitária, dos Legionários de Cristo e da Regnum Christi, organizações fundadas pelo padre mexicano Marcial Maciel Degollado.

Há cerca de uma semana, o padre Jeremy Davies da diocese de Westminster, certamente muito preocupado com este recrudescimento da «actividade» demoníaca, resolveu informar o público em geral sobre o que propicia a «possessão» demoníaca.

Assim, ficámos a saber que, para além da expectável demonização induzida pelo sexo sem fins reprodutivos - contracepção, aborto, promiscuidade, pornografia e homossexualidade (a pedofilia não está incluída pelas razões óbvias) foram veementemente apontadas como portas para o Demo -, aquilo que o dignitário apelida de humanismo secular ou cientismo ateísta é na realidade «satanismo racional». Assim, toda a investigação científica que não segue os ditames católicos é inspirada pelo Demo, influência infernal quiçá propagada pelo mesmo «factor demoníaco contagioso» que para o padre é uma das causas da homossexualidade.

Todo o discurso anacrónico e aberrante do padre inglês me fez lembrar as prelecções do padre da igreja de Santos-o-Velho que, depois das minhas primeiras perguntas nas aulas de catequese, avisou a minha mãe que todo e qualquer livro, Bíblia e manual de catequese inclusive, era para mim, um elemento do género que todos sabiam ser mais atreito a tentações do Demo, uma porta para o dito cujo. O empenho, diria quasi obsessão, com que se entregava a salvar a minha alma das eternas chamas que o meu infantil deleite com a leitura indicava certas, levou-o a sugerir repetidamente à minha mãe que não me deixasse prosseguir os estudos para além dos que na época eram obrigatórios - infelizmente, na opinião do padre que achava que eu só teria «salvação» se analfabeta. Claro que a minha família, na altura constítuida por devotos católicos, deu às palavras do padre a importância que elas, tais como as destoutro padre, mereciam.

Mas infelizmente há muita gente que, com a sanção dos mais altos dignitários de todas as igrejas cristãs, acredita nestes disparates, que podem ter efeitos muito nefastos. Enquanto as religiões, por questões de marketing, insistirem na existência «real» de diabos e de possessões demoníacas é complicado erradicar as crendices supersticiosas associadas que, essas sim, têm recrudescido de forma alarmante nos últimos anos.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Fatos do outro mundo feitos em Portugal


Há uns respeitáveis 50 anos, o presidente Dwight Eisenhower assinou o National Aeronautics Space Act, criando com um pequeno gesto da caneta aquela que hoje é a mais conhecida agência espacial do mundo. A NASA é especialmente conhecida do grande público pelas missões espaciais tripuladas e pelas sondas exploratórias que excitam o imaginário colectivo com missões como as da sonda Fénix ou das sondas Voyager.

Um conceito proposto pela NASA «To grasp the wonders of the cosmos, and understand its infinite variety and splendor» foi fundamental no avanço da astronomia e no nosso conhecimento do Cosmos: os grandes observatórios espaciais - compreendendo os quatro telescópios espaciais Hubble, Chandra, Compton e Sptizer - que permitem olhar para as maravilhas do cosmos em quatro comprimentos de onda.

Mas os benefícios práticos derivados de cinco décadas de investigação tecnológica e aeronáutica, investigações científicas na Terra e no espaço, tiveram uma imensa repercussão no mundo moderno que por vezes não é tão visível quanto as anteriores.

No post anterior referi um desses benefícios, a energia solar que promete ajudar a resolver o problema energético com que o mundo se debate. Mas os benefícios indirectos da corrida espacial vão desde o isolamento de ambientes, que permite que as nossas casas possam ser mais eficientes energeticamente, às aplicações médicas dos programas Mercury e Gemini que desenvolveram sofisticados sistemas para acompanhar as condições fisiológicas dos astronautas. Actualmente, esta tecnologia espacial é absolutamente indispensável nas Unidades de Cuidados Intensivos e unidades cardiológicas especializadas em todo o mundo desenvolvido.

De igual forma, muitos se maravilham com as imagens incríveis capturadas pelo Hubble mas poucos saberão que os CCDs (Charge Coupled Device, Dispositivo de Carga Acoplada) que permitiram a fabulosa imagem da galáxia do Sombrero a milhões de anos-luz da Terra são fundamentais hoje em dia, por exemplo, na detecção do cancro de mama.

Numa altura em que muitos, nomeadamente os nossos media, se focam nas performances dos atletas portugueses nos Jogos Olímpicos, é interessante referir a contribuição da NASA (com uma ajuda portuguesa) na disciplina olímpica que mais tinta tem feito correr. Refiro-me em concreto à natação e, claro, à prestação simplesmente fabulosa de Michael Phelps, o atleta norte-americano que se estreou aos 15 anos nos Jogos Olímpicos de Sydney e oito anos depois conseguiu bater o recorde do lendário Mark Spitz em Munique com oito medalhas de ouro.

Mas não foi apenas Phelps a bater recordes. Alan Thompson, o técnico da equipa australiana, referiu a propósito dos 24 recordes mundiais batidos:

«Tentam achar uma série de explicações para tantos recordes. A verdade é que os nadadores estão cada vez mais rápidos e os treinadores estão cada vez melhores».

Não querendo desmerecer os devidos méritos de treinadores e nadadores, importa referir que a natação é talvez a disciplina onde a ciência tem tido a palavra mais importante na pulverização de recordes. Essa investigação não se restringe à investigação biomecânica que muito contribuiu para a evolução técnica que apreciámos. Para além disso, todos os que como eu seguiram as transmissões das provas de natação ouviram certamente muitos louvores aos contributos da física para os feitos alcançados, nomeadamente no desenho revolucionário do Cubo de Água que será certamente emulado em todo o mundo.

Mas um factor não despiciendo a ter em conta são os fatos dos nadadores, quiçá os mais revolucionários desde que um obscuro estilista francês, de seu nome Louis Reard, provocou um efeito na moda feminina de banho comparável ao que se verificaria em Julho desse mesmo ano, 1946, no atol de Bikini.

De facto, a maioria dos nadadores que esmagaram recordes fizeram-no dentro de fatos Speedo LZR Racer desenvolvidos pela Speedo com o auxílio da NASA e de vários nadadores, entre eles nada menos que Michael Phelps.

Steve Wilkinson, o engenheiro aeronáutico do centro Langley da NASA, na foto inicial com Katie Hoff e Natalie Coughlin, ajudou a desenvolver este fato extraordinário, fabricado na Petratex, uma fábrica localizada em Paços de Ferreira. Wilkinson testou no seu túnel de vento cerca de 60 amostras de tecido diferentes (ou padrões diferentes do mesmo tecido, em que sulcos pequenos, quase invisíveis, são aplicados ao tecido para reduzir o atrito e a resistência aerodinâmica).

Os resultados dos testes da NASA foram fundamentais à equipa de investigação e desenvolvimento da Speedo, a Aqualab, no design do fato vestido por Phelps e introduzido apenas em Fevereiro deste ano e que mesmo antes de Pequim já tinha ajudado na queda de 48 recordes mundiais. Agora que as provas olímpicas de natação estão terminadas, as estatísticas são ainda mais esmagadoras: basta referir que dos 77 recordes mundiais estalecidos desde Fevereiro, 71 foram-no dentro de um Speedo LZR Racer.

De facto, o atrito e/ou a fricção na pele dão conta de cerca de um terço da resistência ao movimento sentida pelos nadadores e, de acordo com a Speedo, estes fatos em relação aos anteriores reduzem o atrito em 10% e aumentam a «eficiência de oxigenação» em 5%. Em 1972, Spitz nadou os 200 metros livros em 1 mn e 52.78 s, quase 10 s mais que o recorde estabelecido por Phelps no passado dia 12, 1 mn e 42.96 s. Podemos apenas pensar nos tempos que Spitz poderia ter feito se o Speedo fosse outro...

O carcereiro libertário

A minha habitual crónica das terças-feiras do Público está publicada aqui.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Epistemologia de mestre-escola

Um dos aspectos mais importantes de um livro que já recomendei várias vezes, Sobre a Liberdade, de Mill, é chamar a atenção para a importância de refutar publicamente ideias falsas:
"Por pouco disposta que esteja uma pessoa que tem uma opinião forte a admitir a possibilidade de que a sua opinião seja falsa, tem de ser tocada pela consideração de que por mais verdadeira que seja, se não for frequentemente discutida por inteiro e sem medos, será mantida como um dogma morto, e não como uma verdade viva."

"Há um grupo de pessoas (...) que acham suficiente que alguém concorde com aquilo que consideram verdadeiro, sem duvidar, ainda que não tenha qualquer conhecimento dos fundamentos da opinião, e não pudesse fazer uma defesa sustentável dessa posição contra as mais superficiais objecções. A partir do momento em que o seu credo lhes foi ensinado por uma autoridade, pensam naturalmente que não resulta qualquer bem — e até resultará algum mal — de se permitir que seja questionado. Onde a sua influência prevalece, tornam praticamente impossível que a opinião dominante seja rejeitada de modo sábio e ponderado, embora possa, ainda assim, ser rejeitada de modo precipitado e ignorante; porque impedir completamente a discussão é raramente possível, e assim que surge, as crenças não baseadas em convicção têm a tendência de ceder ante a mais fraca aparência de um argumento. Contudo, pondo de parte esta possibilidade — partindo do princípio de que a verdadeira opinião permanece na mente, mas permanece como um preconceito, uma crença independente de argumentos e de provas contra os argumentos — esta não é a maneira pela qual a verdade deve ser sustentada por um ser racional. Isto não é conhecer a verdade. A verdade, assim sustentada, não passa de mais uma superstição, pendurando-se acidentalmente às palavras que enunciam uma verdade."

Recordei-me destas passagem — e das páginas seguintes, onde Mill desenvolve cuidadosamente esta ideia — a propósito da importância de discutir o criacionismo, e em conexão com o problema do dogmatismo de alguns cientistas. Há quem pense que certas ideias não merecem ser levadas a sério nem discutidas — porque são ideias que não pertencem ao “nosso grupo”, são “as ideias dos outros”. Savater, no seu Dicionário Filosófico, tem este tipo de reacção ao relatar a estranheza que sentiu ao tentar ler o livro The Miracle of Theism, de Mackie, uma refutação filosófica cuidadosamente articulada da defesa do teísmo de Swinburne, The Coherence of Theism. Para Savater o livro de Mackie não faz sentido pela simples razão de que não vale a pena discutir o teísmo, que é uma aberração completa.

É importante discutir ideias que nos parecem absolutamente palermas, e mesmo que saibamos que os que as defendem não as levam realmente a sério (como é o caso dos criacionistas), pela simples razão de que sem essa discussão pública a generalidade das pessoas não saberá realmente que razões há para pensar que certas ideias são verdadeiras em vez de outras. Como argumenta Mill, sem uma discussão pública constante de ideias palermas, a generalidade das pessoas não saberá refutá-las quando precisar de o fazer. E as ideias, ainda que sejam verdadeiras, tornam-se dogmas mortos se as pessoas não souberem realmente defendê-las dos seus ataques.

Há lucidez epistémica nesta atitude. A única razão que qualquer pessoa pode ter para pensar que seja o que for é verdade é o facto de se oferecer honestamente essa ideia à discussão pública e se ver que em todas as oportunidades permanentemente dadas para a refutar, essa ideia resistiu à refutação. Na verdade, é o desconhecimento destes aspectos epistemológicos básicos que leva as pessoas a ficarem vulneráveis aos sofismas dos criacionistas, da New Age, da homeopatia e de todas as muitas palermices que poluem a noosfera. Uma vez mais, Mill era perfeitamente lúcido:
"Até na filosofia natural há sempre outra explicação possível dos mesmos factos; uma teoria geocêntrica em vez de uma teoria heliocêntrica; um flogisto em vez de oxigénio; e tem de se mostrar por que não pode outra teoria ser a verdadeira: e até se mostrar tal coisa, e até que saibamos como é mostrado, não percebemos os fundamentos da nossa opinião. Mas quando passamos para assuntos infinitamente mais complicados, para a ética, a religião, a política, as relações sociais e os assuntos da vida, três quartos dos argumentos a favor de cada opinião controversa consistem em dissipar as aparências que favorecem uma qualquer opinião diferente dela."

Uma estratégia fundamental de todas as imposturas intelectuais e políticas, como o criacionismo, consiste precisamente em lançar a confusão na opinião pública, ao insinuar que, por ser possível explorar possibilidades lógicas contra uma teoria verdadeira, daí se segue que essa teoria é de facto falsa. Isto impressiona a opinião pública apenas quando esta está mal formada e pensa como um mestre-escola: que o que é verdade é verdade, ponto final, e nenhumas hipóteses há de apresentar argumentos contrários a essa verdade. A epistemologia positivista (sinteticamente, a ideia de que o que fundamenta a ciência é a observação ou a experimentação) que alguns cientistas mais desavisados têm tendência para defender é uma manifestação desta epistemologia de mestre-escola; a ideia é a mesma: há métodos que põem um ponto final a todas as nossas dúvidas e a partir daí não vale mais a pena pensar outra vez nisso.

É esta falsidade que urge combater. Vale sempre a pena pensar outra vez. Sim, há argumentos contra a teoria da relatividade, contra a teoria darwinista, contra toda e qualquer teoria. Isto não devia ser surpreendente, e não o seria se as pessoas estivessem habituadas à ideia de que as teorias que temos boas razões para pensar que são verdadeiras não são as que foram cabalmente demonstradas como verdadeiras (seja pela observação, seja pelo que for) mas apenas as que, no cômputo geral, temos melhores razões para pensar que são verdadeiras do que para pensar que as suas concorrentes são verdadeiras. E, claro, tanto há argumentos contra o darwinismo como contra o criacionismo, tanto há argumentos contra a inexistência de deuses como contra a sua existência. O que não há são verdades fáceis de mestre-escola, que possamos lucidamente aceitar como definitivas para depois irmos à vida que a morte é certa.

Energia solar


As primeiras utilizações de energia fotovoltaica resumiam-se, como vimos no post anterior, a situações em que não estava disponível energia da rede, nomeadamente em locais remotos e, especialmente, fora da Terra, quer em satélites quer em sondas espaciais. De facto, embora inicialmente a NASA não estivesse muito convencida das vantagens da utilização de painéis solares aceitou, com alguma relutância, dotar o Vanguard I de um pequeno painel, seis células solares com uma área de apenas 1 dm2, para alimentar um transmissor back-up de outro alimentado por uma pilha de mercúrio. O transmissor do satélite, lançado em Março de 1958 e ainda em órbita, funcionou durante cerca de oito anos ... mas aquele alimentado pelas células solares, a pilha «convencional» falhou ao fim de vinte dias.

Depois do fiasco salvo pelas baterias solares, que tiveram aqui a sua prova de fogo, o programa espacial norte-americano passou a usar células solares nos seus satélites, solução igualmente adoptada pelo programa espacial soviético: o Sputnik-3, lançado cerca de dois meses depois do Vanguard I, estava igualmente dotado de um pequeno painel solar.

Na década de sessenta, a investigação em células solares surge quasi como um efeito colateral da guerra fria entre as duas grandes superpotências da época. Ou seja, foi a guerra ao espaço que promoveu um grande desenvolvimento das células solares, desenvolvimento que foi essencialmente dirigido a um aumento de eficiência e tinha poucas ou nenhumas preocupações económicas.

A situação alterou-se no início da década de setenta, quando Joseph Lindmeyer, que trabalhava para a Communications Satellite Corporation, inventou uma célula de silício cerca de 50% mais eficiente que qualquer outra. Embora a Comsat fosse a dona da patente, o sucesso desta célula convenceu Lindmeyer de que a energia solar estava pronta para o público em geral. Lindmeyer saiu da Comsat e com Peter Varadi fundou a Solarex em 1973.

Aquela que foi uma das primeiras empresas a tentar vender aplicações «civis» da energia solar começou por produzir painéis fotovoltaicos para sistemas de telecomunicações remotos e bóias de navegação, o único tipo de aplicações terrestres que se pensava serem economicamente interessantes. Mas cerca de dois meses depois de fundada a Solarex, a conjuntura alterou-se drasticamente com o primeiro choque petrolífero e, subitamente, o mercado da energia solar conheceu uma expansão inesperada. Em 1980, a Solarex detinha metade de um pequeno mas crescente mercado de células solares.

A crise petrolífera de 1973 levou a outra corrida a programas de investigação em células solares, agora mais dirigidos para a redução dos custos de produção. Até aí os painéis solares eram baseados exclusivamente em células de silício monocristalino. Mas a fabricação das células solares tradicionais - as células de 1ª geração que, com excepção das células de arsenieto de gálio, são ainda as mais eficientes disponíveis no mercado - feitas deste material, o mesmo utilizado para a fabricação dos chips de computador, exige salas limpas e tecnologia muito sofisticada, o que as torna demasiado caras.

A investigação intensiva nesta área despoletada pela primeira crise petrolífera conduziu à descoberta de novos materiais, em particular o silício multicristalino ou mesmo silício amorfo, muito menos exigentes em termos de processo de fabrico, ou de métodos de produção de silício directamente em fita o que permite eliminar os desperdícios (e esfarelamento) no corte de um grande cristal em bolachas. A deposição dos contactos eléctricos por serigrafia, em vez das técnicas tradicionais de fotolitografia e deposição por evaporação de metais em vácuo, permitiu baixar ainda mais os preços de fabricação. Mais recentemente, no final de Julho, um investigador do MIT revelou algo que promete uma autêntica revolução no papel da energia solar.

Por coincidência ou não, o segundo choque petrolífero que vivemos tem sido acompanhado de notícias muito promissoras, quer em termos de eficiência quer de preços de fabricação, algumas delas já referidas no De Rerum Natura. Em Março foi notícia a descoberta de um investigador do MIT, Emanuel Sachs, que anunciou ter conseguido aumentar a eficiência das células fotovoltaicas policristalinas, muito mais simples e baratas de fabricar.

Com as inovações introduzidas pelo cientista, a eficiência destas células, 19.5%, aproximou-se da eficiência das células convencionais mas os custos de fabricação são muito mais baixos: as células de silício monocristalino custam cerca de US$2.10 por watt gerado; as primeiras gerações destas novas células policristalinas deverão custar US$1.65 por watt gerado, quando fabricadas numa escala industrial. De acordo com Sachs, a curto prazo este preço deve baixar para US$1.30/watt. Como comparação, refere-se que o custo do watt gerado em centrais a carvão é de US$1.00. Sachs afirma que novos revestimentos antirreflexivos deverão permitir que as células solares policristalinas batam o preço do carvão por volta de 2012. As novas células solares policristalinas de alto rendimento são comercializadas pela empresa que fundaram, a 1366 Technologies.

Para além dos Estados Unidos, outro país que tem investido muito em investigação nesta área tem sido a Alemanha que é já o maior mercado de células fotovoltaicas a nível mundial, deixando o Japão, outro país que tem investido massivamente na área, para trás. Ambos os países tem contribuído para tornar a energia solar competitiva, baixando os custos de produção através do desenvolvimento de novas técnicas de produção e criando uma procura que ajudou as indústrias a ultrapassarem a massa crítica no mercado de energia.

Há uns meses, a propósito de outra energia alternativa, relatei que uma empresa alemã, a Evonik, anunciou um investimento massivo em baterias de lítio ião, pretendendo ser o maior fornecedor europeu na área. Há dias, a Evonik e SolarWorld anunciaram a abertura de uma fábrica de produção de silício «solar» em Rheinfelden, na Alemanha, como parte do seu consórcio Joint Solar Silicon. As empresas dizem que o seu processo de produção de filmes ultra-finos de silício permite uma economia de até 90% da energia utilizado nos processos de produção convencionais. A nova fábrica terá uma capacidade de produção de 850 toneladas de silício «solar» por ano e a matéria-prima será fornecida pela fábrica de silano (SiH4) da Evonik.

As células de filme fino, embora com uma eficiência em laboratório inferior às células de primeira geração, frequentemente permitem melhores resultados em comparação com as células clássicas nas aplicações reais do dia-a-dia, devido a perdas inferiores às temperaturas elevadas de funcionamento e a uma melhor eficiência em condições de baixa intensidade de luz. No entanto, o crescimento da fatia de mercado destas células tem sido limitado pela sua baixa disponibilidade no mercado. Assim, ambas as notícias são excelentes notícias já que as células convencionais dominam por enquanto o mercado das fotovoltaicas e a falta de silício monocristalino no mercado tem limitado o crescimento do sector e aumentado muito o preço deste material e, consequentemente, dos painéis solares.

"A Natureza e os Gregos"


Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger, prémio Nobel da Física em 1933 é, como se sabe, um dos maiores representantes da Teoria Quântica.

À semelhança de outros grandes físicos, matemáticos e químicos do século vinte, com a passagem dos anos, e a par do intenso trabalho científico que desenvolvia, interessou-se progressiva e genuinamente pela origem do conhecimento, pela sua validade e implicações, pela sua evolução… Assim, com a cautela de um jovem estudante, revisitou os Gregos, onde tudo começou.

Dessa incursão decorreram duas conferências que proferiu em finais dos anos quarenta e que estão reunidas num livro intitulado A Natureza e os Gregos, publicado no início dos anos cinquenta, a que a Palmira já se referiu neste blogue.

Apesar de seis décadas nos separarem dessas conferências, a sua actualidade permanece, no que respeita às questões que Schrödinger levantou, à maneira como explicou a sua origem e as discutiu, à referência deferente a outros pensadores... Por todas essa razões aqui deixo um extracto da primeira:

“Quando, no início de 1948, realizei uma série de conferências públicas sobre o assunto que aqui abordo, sentia ainda a necessidade premente de as anteceder com vastas explicações e desculpas. O que eu expunha naquela altura e naquele local (isto é, no University College, em Dublin) viria a constituir uma parte do livro que têm à sua frente. Foram acrescentados alguns comentários do ponto de vista da ciência moderna e uma exposição breve daquelas que considero serem as características fundamentais e peculiares da actual perspectiva científica mundial. Provar que essas características são produzidas historicamente e traçar o seu percurso até à fase primitiva do pensamento filosófico ocidental, era o meu verdadeiro objectivo ao abordar e discutir esta última fase. Contudo (…) sentia-me pouco à vontade, particularmente porque essas conferências surgiram como resultado dos meus deveres oficiais como professor de física teórica. Havia a necessidade de explicar (apesar de eu próprio não estar convencido disso) que ao dedicar-me aos relatos sobre os antigos pensadores gregos e aos comentários acerca das suas opiniões eu não estava simplesmente a desenvolver um passatempo pessoal, recentemente adquirido; isto não significava do ponto de vista profissional, uma perda de tempo, que deveria ser relegada para as horas de lazer; que isso se justificava pela esperança de conseguir vir a ganhar algo mais para a compreensão da ciência moderna, e assim, inter alia, também para a compreensão da física moderna.

Alguns meses mais tarde, em Maio, quando discorria acerca do mesmo tópico no University College, em Londres (Conferências Shearman, 1948), já me sentia bastante mais seguro. Apesar de no princípio me sentir apoiado principalmente por académicos eminentes e dedicados ao estudo da Antiguidade, como Theodor Gomperz, John Burnet, Cyril Bailey, Benjamim Farrington (…), depressa tomei consciência de que não foram o acaso nem a predilecção pessoal que me fizeram mergulhar na história do pensamento de há vinte séculos mais profundamente do que outros cientistas tinham feito, mas sim a reacção ao exemplo e à exortação de Ernst Mach. Longe de seguir um estranho interesse pessoal, eu tinha sido involuntariamente arrastado, como por vezes acontece, por uma tendência de pensamento enraizado, de alguma forma, na situação intelectual da nossa época. De facto, durante o curto período de um a dois anos tinham sido publicadas várias obras, cujos autores não eram estudiosos dos clássicos, mas pessoas interessadas prioritariamente no conhecimento científico e filosófico da actualidade; todavia todos eles tinham dedicado uma parte bastante substancial do trabalho académico (…) à exposição e à descoberta das raízes primitivas do pensamento moderno em obras da Antiguidade.

Havia a póstuma Growth of Physical Science, do falecido Sir James Jeans, astrónomo e físico eminente (…). Havia a maravilhosa Histpry of Western Philosophy, de Bertrand Russell, cujos méritos não necessito, nem aqui posso, referir como merece: permitam-me que recorde simplesmente que Bertrand Russell regista na sua brilhante carreira o facto de ser o filósofo da matemática moderna e da lógica matemática. Cerca de um terço de cada uma destas obras trata de aspectos de Antiguidade. Uma obra agradável e de âmbito semelhante, intitulada The Birth of Science, foi-me enviada praticamente pela mesma altura de Innsbruck, pelo seu autor Anton von Morl, que não é um estudioso da Antiguidade, nem da ciência ou da filosofia; teve a infelicidade de ocupar o cargo de Chefe da Polícia do Tirol, na altura em que Hitler invadiu a Áustria (…)

Ora, se tenho razão ao dizer que esta é uma tendência geral da nossa época, podem naturalmente levantar-se algumas questões: como é que surgiu, quais foram as suas causas e o que é que significa realmente? Essas questões dificilmente podem ser respondidas de forma exaustiva, mesmo quando a tendência de pensamento que se analisa remonta a um período da história que já nos permitiu adquirir uma perspectiva equilibrada da globalidade da situação humana dessa época (…)

Acredito que (…) existem duas circunstâncias que poderão servir como explicação parcial para a tendência fortemente retrospectiva dos que se preocupam com a história das ideias: uma refere-se à fase intelectual e emocional em que a humanidade, em geral, entrou nos nossos dias; a outra é a situação invulgarmente crítica em que quase todas as ciências fundamentais se encontram envolvidas de uma forma cada vez mais desconcertante.”

Obra referida:
- Erwin Schrödinger (1999). A Natureza e os Gregos e Ciência e Humanismo. Lisboa: Edições 70.

Imagem retirada de:
http://www.tcd.ie/Physics/Surfaces/images/large_pictures/Schroedinger.jpg

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Breve história da energia solar

A primeira bateria solar da Bell em Americus, Geórgia.

Os primórdios da História da energia solar estão marcados pela serendipidade. O efeito fotovoltaico foi observado em 1839 pelo físico francês que observou pela primeira vez o paramagnetismo do oxigénio líquido, Alexandre Edmond Becquerel. Um muito jovem Becquerel conduzia experiências electroquímicas quando, por acaso, verificou que a exposição à luz de eléctrodos de platina ou de prata dava origem ao efeito fotovoltaico.

A serendipidade foi igualmente determinante na construção da primeira célula fotovoltaica. Nas palavras de Willoughby Smith numa carta a Latimer Clark datada de 4 de Fevereiro de 1873, a sua descoberta do efeito fotovoltaico no selénio foi um acidente inesperado:

«Being desirous of obtaining a more suitable high resistance for use at the Shore Station in connection with my system of testing and signalling during the submersion of long submarine cables, I was induced to experiment with bars of selenium - a known metal of very high resistance. I obtained several bars, varying in length from 5 cm to 10 cm, and of a diameter from 1.0 mm to 1.5 mm. Each bar was hermetically sealed in a glass tube, and a platinum wire projected from each end for the purpose of connection. (...) While investigating the cause of such great differences in the resistance of the bars, it was found that the resistance altered materially according to the intensity of light to which they were subjected

Na sequência desta descoberta, Adams e o seu aluno Richard Day desenvolveram em 1877 o primeiro dispositivo sólido de fotoprodução de electricidade, um filme de selénio depositado num substrato de ferro em que um filme de ouro muito fino servia de contacto frontal. Este dispositivo apresentava uma eficiência de conversão de aproximadamente 0,5%.

Charles Fritts duplicou essa eficiência para cerca de 1% uns anos depois construindo as primeiras verdadeira células solares, construindo dispositivos assentes igualmente em selénio, primeiro com um filme muito fino de ouro e depois um sanduiche de selénio entre duas camadas muito finas de ouro e outro metal na primeira célula de área grande.

No entanto, não foram as propriedades fotovoltaicas do selénio que excitavam a imaginação da época mas sim a sua fotocondutividade, isto é, o facto de a corrente produzida ser proporcional à radiação incidente e dependente do comprimento de onda de uma forma que o tornava muito atraente como medir a intensidade da luz em fotografia. E de facto, estes dispositivos encontraram a sua primeira aplicação nos finais do século XIX pela mão do engenheiro alemão Werner Siemens (o fundador do império industrial homónimo) que os comercializou como fotómetros para máquinas fotográficas.

Embora tenha sido Russell Ohl quem inventou a primeira solar de silício, considera-se que a era moderna da energia solar teve início em 1954 quando Calvin Fuller, um químico dos Bell Laboratories em Murray Hill, New Jersey, nos Estados Unidos da América, desenvolveu o processo de dopagem do silício (que consiste em introduzir impurezas em cristais deste elemento). Fuller partilhou a sua descoberta com o físico Gerald Pearson, seu colega nos Bell Labs e este, seguindo as instruções de Fuller, produziu uma junção p-n ou díodo mergulhando num banho de lítio a barra de silício dopado. Ao caracterizar electricamente a amostra, Pearson descobriu que esta exibia um comportamento fotovoltaico e partilhou a descoberta com ainda outro colega, Daryl Chapin, que tentava infrutiferamente arranjar uma alternativa para as baterias eléctricas que alimentavam redes telefónicas remotas.

As primeiras células fotovoltaicas assim produzidas tinham alguns problemas técnicos que foram superados pela química quando Fuller dopou silício primeiro com arsénio e depois com boro obtendo células que exibiam eficiências recorde de cerca de 6%.

A primeira célula solar foi formalmente apresentada na reunião anual da National Academy of Sciences, em Washington, e anunciada numa conferência de imprensa no dia 25 de Abril de 1954. No ano seguinte a célula de silício viu a sua primeira aplicação exactamente no que Daryl Chapin procurava uma solução: como fonte de alimentação de uma rede telefónica em Americus, na Geórgia.

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...