quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A EDUCAÇÃO NÃO PODE SER UM PRODUTO COMERCIALIZÁVEL

A conferência e a entrevista que indico de seguida aconteceram há alguns meses mas vale a pena revê-la/relê-la (e guardá-las) pela orientação que nelas se vê da educação escolar: suportada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é afirmada como bem público e comum, sublinhando-se a responsabilidade dos Estados na sua concretização.

O contexto foi uma das Conferências Futuros da Educação realizadas no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e a conferencista foi Farida Shaheed, relatora especial para o direito à educação das Nações Unidas.
 
O discurso desta organização é, na matéria em causa, substancialmente diferente do discurso da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), sendo que é esta que mais protagonismo tem nos sistemas de ensino.

Eis um extrato da entrevista realizada pelo jornalista Jorge Andrade do Diário de Notícias:

Teme que os sistemas educacionais se estejam a tornar produtos e serviços comercializáveis? Estou profundamente preocupada com o facto de a educação parecer ter um objetivo cada vez mais restrito de desenvolver pessoas que possuam competências comercializáveis, em vez de nutrir a criatividade humana, proporcionando oportunidades e um ambiente de aprendizagem para pensar de forma crítica e diferente, para questionar, para explorar e realizar ao longo da vida o potencial de aprendizagem. Estou também preocupada com a redução do financiamento para a educação, ou para certas disciplinas não consideradas “dignas de mercado”, o que restringe a criatividade humana. A redução do financiamento também obriga as instituições educativas a procurarem fundos noutros locais, abrindo a porta a uma influência crescente de intervenientes empresariais que têm agendas específicas, bem como de instituições educativas privadas com fins lucrativos que atendem a grupos demográficos específicos, excluindo ainda mais os marginalizados.

Referiu a questão das tecnologias digitais. Como as vê enquanto ferramenta ao dispor da educação? Alarma-me a opinião generalizada de que a digitalização é uma panaceia para o fracasso educativo. Primeiro, a tecnologia digital é apenas isso: uma tecnologia, e o que importa é como ela é utilizada. Em segundo lugar, a chamada digitalização “gratuita” disponibilizada durante a covid-19 não era gratuita, os estudantes, os seus amigos e familiares pagaram o preço através da invasão da sua privacidade e da recolha de dados. Terceiro, a digitalização provavelmente aumentará a divisão entre pessoas, comunidades e países que possuem boa conectividade e dispositivos e aqueles que não os possuem. Em quarto lugar, na urgência para se tornar digital, não é dada atenção suficiente aos efeitos que isto pode ter no bem-estar psicológico e nos sentimentos de isolamento dos alunos, bem como na saúde física e no desenvolvimento. A inteligência artificial (IA), especialmente a IA generativa, traz novos desafios. Embora existam muitos aspetos positivos na IA, o perigo surge quando confiamos nela para a tomada de decisões ou para a normalização de, por exemplo, testes. A utilização de IA generativa pelos alunos levanta a questão de como avaliar se a aprendizagem ocorreu. Em termos de utilização da IA para padronização, um problema sério é que os metadados, nos quais os algoritmos se baseiam, excluem as realidades dos marginalizados. Os algoritmos em que confiamos cada vez mais são, portanto, tendenciosos e discriminam os já marginalizados, que podem então ser penalizados. 

Estas e outras ideias são desenvolvidas no vídeo (a partir do 25 minuto - aqui)

2 comentários:

Anónimo disse...

A educação pública atual é filha dileta da Revolução Industrial inglesa. Na transformação de camponeses em pequenos comerciantes e operários fabris, a escola pública desempenhou um papel fundamental, habilitando os alunos com novos conhecimentos, os indispensáveis para singrar no admirável mundo novo que a máquina a vapor abria. Já nos nossos dias, com a complexificação do mundo, apareceram alguns intelectuais da educação que defendem com unhas e dentes que a escola do conhecimento dos nossos avós deve ser substituída pela escola do "faz de conta", onde a função dos professores não deve ir além de tomar conta das crianças e jovens. Assim, em conformidade com as suas ideias baralhadas, eles equipararam, em Portugal, os professores do ensino secundário a educadores de infância! Neste sentido, discordo, em parte, das posições de Farida Shaheed. A escola atual é a escola dos mínimos, onde a função do professor é considerada supérflua. O conhecimento escolar clássico, seja o de caráter mais científico, seja o de caráter mais literário, deve desaparecer dos currículos para dar lugar a excentricidades como a literacia financeira e a LGBTQQICAAPF2K+ .

Carlos Ricardo Soares disse...

A educação, antes de ser pensada como forma de promover o indivíduo na realização das suas potencialidades pessoais, sociais e culturais (se é que alguma vez o foi a pensar nos interesses e aspirações do indivíduo) e ainda antes de ser pensada como sistema de ensino público, surgiu como oportunidade de formação em competências que eram valorizadas e estavam associadas à promoção de modelos sócio-culturais em que nem sempre predominava a vantagem económica, como foi o caso de grandes vultos da história das artes e das letras, mais até do que das ciências.
Parece até que uma das características de um homem educado, para além de saber escrever e ler Homero e Virgílio, um pouco de Platão e de Aristóteles e, em Portugal, as Crónicas de Fernão Lopes e ter ouvido falar nas Ordenações, muito antes de a educação se ter transformado num sistema de alfabetização republicana, aberto à ciência, nomeadamente às ciências humanas, sociais e económicas, o que só veio a acontecer com o dealbar da democracia, dizia eu, uma das características de um homem educado, como, por exemplo, Luís de Camões, contemporâneo de Pedro Nunes e de outras celebridades, seria a consciência de estarem a participar e a viver um processo social e cultural como nunca tinha sido visto e que punha em causa muitas visões obscurantistas e anacrónicas procurando ultrapassá-las para não terem que marcar passo atrás delas.
Vivemos um tempo de engarrafamentos no trânsito. Tudo é motivo para engarrafar. Mas não nos iludamos, Camões e Pedro Nunes e outros contemporâneos a quem não obrigaram a ir a uma escola, não se deixavam conduzir por carreiros nem por estradas. Tiveram ideias e paixões. Nada como uma paixão para nos fazer sacrificar tudo, ou quase tudo a ela. No caso de Camões, estou em crer, que a ideia dos Lusíadas foi por ele percepcionada como brilhante, de tal modo que tudo o mais soía digno de lhe ser dedicado e sacrificado, como terá feito.

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