terça-feira, 16 de julho de 2024

CARTAS DA RÚSSIA

 Por João Boavida

É um dos livros mais esclarecedores que li nos últimos anos. A primeira leitura foi em 2018, quando foi publicado pela Imprensa da Universidade de Lisboa, e agora tornei a lê-lo por causa da invasão da Ucrânia, que mo tornou muito atual. 
 
É o livro de um escritor francês Astolphe Louis Léonor, mais conhecido por Marquês de Custine (1790 e 1857), e intitula-se Cartas da Rússia. É desse livro que quero falar. 
 
O Marquês de Custine era uma pessoa culta, viajada, e percebe-se ser muito perspicaz na interpretação das pessoas, na leitura dos rostos, dos olhares, e na avaliação das conversas e dos diálogos – aspetos da maior importância neste caso. 
 
Andou pela Rússia durante vários meses, em 1839, visitou várias cidades, viu tudo o que o deixaram ver, deambulou pelas ruas de Moscovo e de São Petersburgo, a observar, foi convidado para festas e receções, contactou com gente de várias condições sociais, e até com o czar e a czarina teve conversas a partir das quais fez análises psicológicas interessantes.

O livro, com quase duzentos anos, e anterior à queda da monarquia czarista, à revolução bolchevique, à 1.ª Grande Guerra, à ascensão da América como potência económica e militar, à formação da União Soviética, à 2.ª Grande Guerra, à Guerra Fria e ao fim da URSS. E como não pode ter sido influenciado por estes acontecimentos posteriores, revela-se uma chave preciosa para perceber a Rússia e os seus dirigentes. E também para compreender o povo que resultou de séculos de opressão feroz e de tiranias incessantes. 
 
A descrição que Custine faz – assente em factos confirmados – da crueldade de Ivan, o Terrível, (1530-1584) contra os seus imaginários inimigos (muitos deles obedientes, temerosos e leais servidores) é de estarrecer. E o mais espantoso ainda é perceber que, apesar desta crueldade demencial e absolutamente arbitrária, o povo o venerava.
 
Podem dizer que esta violência era a de um psicopata do século XVI, mas, em primeiro lugar, as tiranias, tanto hoje como ontem, produzem os psicopatas políticos, e põem os povos a defenderem-nos e a venerarem-nos. 
 
Mas o interessante é que o autor presenciou nas ruas, já no segundo quartel do século XIX, formas de violência que o revoltaram profundamente, mas que os agredidos aceitavam sem um murmúrio de revolta e nem sequer um esboço de defesa, desde que executadas por alguém mais acima na hierarquia social, nem que fosse um pequeno degrau. Numa sociedade com infinitos degraus hierárquicos, a violência e as agressões eram aceites com naturalidade.
 
Presenciou espancamentos e brutalidades, em plena rua, sem que os transeuntes se impressionassem e, muito menos, tentassem intervir ou sequer mostrassem pesar pelos agredidos. Todos passavam adiante sem ver nem ouvir, temerosos de forças inomináveis, mesmo que se manifestassem por pequenos incidentes, mas que eram sentidas como manifestações de uma força superior que a todos dominava, que ninguém contestava e nem sequer referia. Como diz o autor: 
«…tudo o que confere valor e encanto às sociedades bem organizadas, tudo o que dá sentido e um fim às organizações políticas, confunde-se aqui com um único sentimento: o temor». (p. 115). 
E um pouco mais adiante: 
«É preciso vir aqui para criar ódio à descrição; tanta prudência revela uma tirania secreta, cuja imagem se torna presente em todos os lugares. Cada movimento do olhar, cada reticência, cada inflexão da voz me ensina o perigo da confiança e da naturalidade» (p. 118). «A tristeza habitual da vida dos homens neste país vem do facto de esta nada valer para eles; cada um sente que a própria existência está presa por um fio, e cada um se resigna a isso, por assim dizer desde que nasce» (p. 122).
Dá para compreender o atual cidadão russo, misantropo e desconfiado, sem opinião ou completamente alinhado com a narrativa oficial, que não sabe rir, de cara fechada e inexpressiva, pois a transparência do rosto e dos olhos é um perigo para quem a tem e a usa; gente que se habituou à probabilidade de lhe cair em cima um castigo implacável, mesmo que incompreensível e sem razão, que foi criado na dissimulação e é obrigado, há séculos, a cultiva-la sem descanso e a esconder hipocritamente o mais autêntico de si. 
 
(A propósito, aconselho os que facilmente usam o termo hipocrisia para atacar outros, a ler o romance A família Golovlev do romancista russo Saltykov Chechedrine, e de que há mais de uma tradução em Português).
 
A atual desconfiança do povo russo relativamente ao Ocidente não é dos dias de hoje. Vem de longe o debate interno entre os que queriam ocidentalizar a Rússia, e os que, cultivando sentimentos eslavófilos, sempre lutaram contra essa ocidentalização e viram nela um perigo para o modo de ser dos russos, porque trazia o Iluminismo, a ideia democrática e a libertação dos povos. A famosa “alma russa”, tão incensada por Dostoieveski, e muitos outros autores, antigos e atuais é, em grande medida, o resultado de séculos de servidão e de terror, que amolece caracteres e enfraquece vontades, com vasta e diversificada presença na literatura russa. Veja-se, por exemplo, Goncharov e inúmeras personagens de Tchekov, entre muitos outros.

Esta luta íntima, esta oscilação mal equilibrada entre ocidentalismo e orientalismo, em que a alma russa se debate, parece resultar da sua duplicidade europeia e asiática, ao terem sido agregados, à força de guerras, conquistas e dominações, territórios imensos (sempre vistos como pouco) e povos e culturas muito diferentes e até antagónicas. Mas tem sido vantajosa para as suas contínuas ânsias imperialistas. 
Escreve Custine (p.115): «Dizem-me [os russos]: “Bem gostaríamos de poder prescindir da arbitrariedade, seríamos mais ricos e mais fortes; mas temos de nos haver com os povos da Ásia”. Ao mesmo tempo pensam: “Bem gostaríamos de poder dispensar-nos de falar de liberalismo, de filantropia, seríamos mais felizes e mais fortes; mas temos que nos haver com os governos da Europa”, estes governos que são detestados, temidos e elogiados», conclui.
Ou seja, enquanto asiáticos temos que ser implacáveis e tirânicos para com o povo, ou esse mesmo povo nos destruirá; enquanto europeus, temos que parecer civilizados, para nos considerarem e sermos bem vistos por eles. Por aqui se compreende que o povo russo continue a ver, no Ocidente, um inimigo, (quando o dito Ocidente não tem os mesmos sentimentos em relação a ele). É certo que houve as invasões de Napoleão e de Hitler, e se viveram na Rússia situações terríveis, tanto numa como noutra invasão, e isso explica certamente muito. Mas o Ocidente também sofreu as invasões napoleónicas e hitlerianas, e os horrores não foram menores. A diferença é que enquanto o Ocidente procura superar esses fantasmas, e superar esses ódios doentios através da paz e do entendimento, com benefício de todos, a Rússia alimenta ressentimentos e cria inimigos que lhe justifiquem as eternas ânsias de conquista.

O problema é muito anterior aos conflitos modernos, e Custine percebeu-o bem. Para ele é o resultado duma tirania de séculos que destruiu o nervo de um povo, a que não deram condições para passar pela longa evolução social, política e mental que beneficiou o Ocidente. As tentativas de ocidentalização dos ambos “Grandes” Pedro e Catarina, no século XVIII, foram esporádicas, sem continuidade, ficando pela superfície, e como foram feitas de modo violento acabaram por reforçar aquilo que diziam querer resolver, que era uma evolução social e cultural que libertasse e modernizasse os seus súbditos. 
 
Ora, como é evidente, isso continua a favorecer os atuais dominadores políticos. É por isso que hoje, embora possa não parecer, o modo de vida e de pensamento dos europeus é profundamente diferente do dos russos. E os que entre nós não percebem isto nem conseguem medir a distância que subjaz a estes dois universais atualmente em conflito são altamente nocivos e muito perigosos para nós: há séculos de evolução a separar uns dos outros. Falando da tradição despótica, diz ainda Custine: 
 «O despotismo cega os homens; povo e soberano, todos se inebriam em conjunto da taça da tirania. Esta verdade parece provada até à evidência pela História da Rússia» (p. 219). E noutra passagem (p. 250): «Um governo dito vigoroso e que se faz impiedosamente respeitar em todas as ocasiões deve necessariamente tornar os homens miseráveis».
É ainda interessante a comparação que Custine faz entre a Igreja Ortodoxa Russa, e a Cristã. A primeira tornou-se religião do Estado e foi-se reduzindo cada vez mais aos formalismos litúrgicos sem uma profunda e individual interferência nos sentimentos dos crentes, e esvaziando-os de dimensão individual e, portanto, moral. A Igreja cristã do Ocidente, por outro lado, ao transmitir uma palavra libertadora e uma consciência moral responsável em cada um de nós, foi um fator para a liberdade política de que hoje beneficiamos. 
 
Isto pode parecer muito estranho a certas mentalidades iluminadas da modernidade e da pós-modernidade, mas talvez não o deva ser e é evidente a um homem formado nos finais do século XVIII europeu, que faz a comparação entre as religiões dominantes no Ocidente e na Rússia.

É certo que o mundo evoluiu muito nos últimos duzentos anos, mas parece evidente que em termos psicológicos e morais somos hoje basicamente idênticos ao que sempre fomos. A chamada natureza humana vai evoluindo, se lhe derem boas condições para isso, mas rapidamente se degradará se as circunstâncias a isso obrigarem. 
 
Parece evidente que os governantes russos de hoje se servem desses sentimentos, cultivados e desenvolvidos durante séculos, para poderem ter todo um povo ao serviço dos seus eternos desejos imperialistas e conquistadores. Criar inimigos externos mesmo que imaginários, sempre foi usado para dominar os respetivos povos. 
 
O mais interessante, para nós, é ter Custine captado, há duzentos anos, esses sentimentos interiorizados pele população, antes dos acontecimentos que servem de argumento aos que, hoje, os tentam justificar. Se os políticos europeus modernos tivessem lido estas Cartas da Rússia, como, atrevo-me a dizer, era obrigação de políticos cultos e informados, por certo não teriam sido tão inocentes e imprudentes como foram em relação a Putin e seus ressentimentos pelo esboroamento do império soviético. 
 
Como devem calcular limitei-me a referir alguns aspetos, há muitos outos de grande interesse.
 
João Boavida

19 comentários:

Anónimo disse...

Quando Natacha terminou, Paulo levantou-se e perguntou tranquilamente:
- O que nós queremos será somente comer até à saciedade?
Não! - respondeu ele próprio, olhando firmemente o trio -, devemos mostrar aos que nos seguram pela garganta e nos vendam os olhos que vemos tudo, que não somos nem idiotas nem brutos, que não é somente a comida que nos interessa, mas sim viver, como seres dignos da vida. Devemos mostrar aos nossos inimigos que a vida de forçados que nos impoẽm não nos impede de nos medirmos com eles pela inteligência e até de nos elevarmos acima deles!
A mãe escutava-o e vibrava de orgulho ao ouvi-lo falar tão bem.
- Saciados há bastantes, honestos não há - disse o pequeno russo - Atrás do pântano desta vida corrupta devemos construir um passadiço que nos conduza a um mundo novo de bondade e fraternidade. Eis a nossa tarefa camaradas.

A Mãe - Máximo Gorki


Gorki conheceu os trabalhadores, os camponeses, conheceu os desgraçados, conheceu o povo, e, como alguém dissesse que ele tinha tido a sorte na vida de conhecer tantas pessoas de grande interesse humano, ele respondeu que toda a gente passa na vida por tais pessoas, mas não as vê ou não as quer ver.

Caro professor, João Boavida, discordo da leitura que recomenda aos politicos europeus, era A Mãe, de Gorki, que eles precisavam de ler. Está evidente que os russos não são brutos nem idiotas, que se elevaram e elevam pela inteligência, nós portugueses, os ditos espertos, ainda não percebemos que andamos agarrados pela garganta. E o seu texto, em nada ajuda, antes pelo contrário.

Mário R. Gonçalves disse...

Caro João Boavida,

Gostei muito do seu texto e dos excertos do livro de Custine. Tocam no ponto nevrálgico, a infamemente famosa "alma russa", cultivada também por muitos russófilos europeus, que esteve alguns anos adormecida, para a felicidade de muitos povos, mas agora foi recuperada e acicatada por ideólogos do Kremlin para fundamentar a barbárie em curso. Essa alma russa, por contraste com o espírito humanista , cosmopolita, solidário e mesmo assim liberal dos Europeus, manifesta-se desde há muito nas ideias e nas artes - na literatura russa, na horrorosa arquitectura, no cinema. Gorkim por exemplo, não era recomendável - foi convidado e amigo de Estaline, cujo regime apoiou sabendo muito bem (mas fechando os olhos) dos horrores que se passavam nos Gulags. Criticava às vezes, mas sempre manteve fiel à barbárie comunista.

A alma russa é isto, é Ivan o terrível e os piores Czares, é Lenine e Brejnev e Putin, são os personagens de Dostoievsky e a estética de Eisenstein, é a música de Glazunov e Borodine. É uma alma atormentada, ressabiada, um miserável pesadelo de grandeza, que conduz ao desprezo e ao rancor. É uma alma de urso, um monstruoso e raivoso urso que ameaça esmagar tudo o que os outros possam ter de belo, de feliz, de nobreza de alma.

Anónimo disse...

- Leio livros proibidos. Proíbem de os ler, porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos clandestinamente, e se os encontrarem cá em casa metem-me na prisão... na prisão por eu querer saber a verdade. Estás a compreender? [...]
Porque fazes isso, Paulo? murmurou.
Ele ergue a cabeça, olhou-a rapidamente, e, sem levantar a voz, trnquilamente respondeu:
- Quero saber a verdade. [...]
- Não chores - pediu o filho, com voz meiga, mas que à mãe pareceu como se estivesse a despedir-se. - Raciocina... que vida é a nossa? Tens quarenta anos, e podes acaso dizer que viveste? O pai batia-te... só agora compreendo que se vingava em ti do seu pesar, da tristeza da vida que o esmagava e que não compreendia de onde lhe vinha. Trabalhou trinta anos, começou quando a fábrica tinha apenas dois edifícios. E agora tem sete! [...]
- Que alegrias tiveste? Podes dizer-me o que houve de bom na tua vida? [...]
Contou, então, a sua infãncia com as companheiras, falou longamente de tudo, mas, como as outras, não sabia senão lamentar-se: ninguém explicava porque razão era a vida tão dificil e penosa. [...]
As mães ninguém as lamenta.
Ela sabia-o. Tudo o que o Paulo dizia, da vida das mulheres, era a verdade, a amarga verdade; no seu peito palpitava uma sensação de doces palpitações, a sua rara ternuta aquecia-lhe o coração.
- E então, que pensas fazer?
- Aprender, e em seguida ensinar os outros. Nós, os operários, devemos estudar. Devemos saber, devemos poder compreender por que razão a vida é tão dura connosco.

A Mãe - Gorki

Caro professor João Boavida, esta transcricão de A Mãe, é para que os leitores possam compreender as palavras de Custine, e ver o que este não enxergou. - Era a exploração em que viviam que lhe retirava o sentido da vida. E não há como negar, seja na russia, em portugal ou em qualquer parte do mundo. Custine foge, cobardemente, à evidência.

«A tristeza habitual da vida dos homens neste país vem do facto de esta nada valer para eles; cada um sente que a própria existência está presa por um fio, e cada um se resigna a isso, por assim dizer desde que nasce» (p. 122).[Custine]

João Boavida disse...

Caro Mário R. Gonçalves, obrigado pelas suas palavras simpáticas e por ter percebido perfeitamente que o meu texto realçava sobretudo o caráter premonitório de acontecimentos futuros. Custine não sabia o que ia acontecer, mas tudo o que aconteceu (e está a acontecer) prova que ele viu e percebeu muito bem a Rússia daquele tempo. É pena que as forças dominantes não tenham podido, ou querido, reconhecer a verdade do que dizia e tentar emendar as coisas a tempo, libertando os cidadãos e tornando a sociedade mais justa.

Caro Anónimo, também li, como deve calcular, a "A mãe", de Máximo Gorki, e foi até, durante bastante tempo, um dos meus grandes livros da literatura russa. É um livro belo, comovente e carregado de esperança. Mas só prova que Custine tinha razão na maior parte das observações que fez sobre a Rússia, cem anos antes. É claro que na Rússia havia (e há) imensa gente inteligente, justa, corajosa, cheia de energia, mas todas as ditaduras aviltam os povos, alienam-nos e quebram-lhes o vigor. A riquíssima literatura russa, posterior a Custine, está cheia de exemplos deste mal psicológico e social de que o escritor francês falou.

Anónimo disse...

Ravel, que nunca terá ido a Espanha, criou o Bolero, representativo, diz-se, do caráter da mesma (Espanha).
Para cada estádio de um povo, de uma comunidade, de uma classe, há sempre um agente cultural do passado – pelo menos um – que, segundo os agentes presentes, leu com acerto a alma, o caráter e a natureza deles (povo, comunidade, classe).
No Porto, soltem uma dúzia de gatos retidos num saco: fugindo em várias direções, pelo menos um – o mais esclarecido - apontará a Lisboa.
Vá, desdigam-me!

Anónimo disse...

... era obrigação de políticos cultos e informados, por certo não teriam sido tão inocentes e imprudentes como foram em relação a Putin e seus ressentimentos pelo esboroamento do império soviético.

O Ocidente foi arruinado pela expansão para o leste, era obrigação de políticos cultos e informados, cumprir aquilo que acordaram. Agora a Ucrania terá de desistir dos seus vastos territórios, e concordar com um estatuto neutro e desmilitarizado, e mudar o governo, e tudo graças aos polîticos cultos e informados

Carlos Ricardo Soares disse...

As retóricas instaladas em torno da Rússia e da Europa e dos EUA refletem a visão de uma dialética de antiEUA e antipunistas que aludem à Europa como se fosse um vidrinho de cheiro indefeso que pode cair nas mãos de uns ou de outros. Andamos a ouvir o mesmo discurso, com algumas variações pouco relevantes, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e este é o terrível e incontornável facto consumado em causa. A principal razão para estarmos tranquilos é que a Rússia já foi derrotada em Kiev, na já célebre batalha de Kiev. Quanto à Europa precisar dos EUA para enfrentar a Rússia, é algo que só pode ter a ver com o poderio atómico mas, nesse capítulo, a preocupação dos EUA não é menor.
A Rússia ainda é admitida a fingir que tem uma palavra a dizer num eventual acordo de paz, mas trata-se de uma estratégia para que as coisas pareçam ser o que interessa, porque, na realidade, a Rússia e todos os que se lhe colaram aquando da invasão da Ucrânia, podiam antecipar a sentença e sabem qual é. Nada os redimirá nem eximirá de responsabilidades. Porém, até à execução das sentenças é de recear que haja muitas dificuldades e mais guerra.
A Europa está a preparar-se para isso, como mandam os princípios de governação, segurança e prudência. A experiência europeia mostra que a fase do julgamento e das sentenças, mormente à revelia, é relativamente jurisdicional, burocrática e pacífica. A execução, a “manu militari” é que, muitas vezes, depara com resistências ferozes. Tratando-se de forças organizadas sob os auspícios e os comandos de Estados ricos, essa execução pode ser algo de catastrófico, mas pode ser inevitável.

João Boavida disse...

Caro Carlos Ricardo Soares

O seu comentário é inteligente e, a longo prazo, apaziguador. Apesar de tudo e por vezes com grandes retrocessos, as coisas vão evoluindo e o futuro não pode perdoar o que a Rússia está a fazer. A leitura das Cartas da Rússia dá-nos uma lente que, se tivesse sido usada pelo poder russo, talvez tivesse evitado revoluções, guerras civis e mortandades sem conto. E se tivesse sido lido e pensado, no Ocidente, talvez nos tirasse muita ingenuidade e nos livrasse do apertos em que estamos. Os políticos não podem ter vistas curtas e eles deviam saber o que significa, num território com aquela dimensão, o esforço militar que implica e a opressão que sempre utilizou contra os povos que o habitavam. Ora isto deixa marcar em quem manda e em quem obedece. As tiranias levam ao aviltamentos dos povos e a Rússia é um caso exemplar. O imperialismo czarista e o modo como aviltava e explorava o povo explicam a revolução, o império soviético, o estalinismo, os gulags, o fim da URSS, enfim, tudo. E até, agora, a tentativa de vingança de Putin, como se a causa de todos estas desgraças que aconteceram ao povo russo fosse culpa nossa. Mais uma vez: Custine permite-nos compreender como estava implícito na realidade sociopolítica russa dos começos do século XIX, tudo o que aconteceu à Rússia desde então, bem como o que está a acontecer à Ucrânia, hoje, e, obviamente, também à Rússia e à sua população. O povo russo sempre foi um povo mártir, vítima sobretudo de si próprio, isto é, dos seus dirigentes. O não ter consciência disso só acrescente esta verdade.

Carlos Ricardo Soares disse...

Caro João Boavida,
estou na linha dessa sua visão. Os grandes vultos da cultura russa também manifestaram os sinais e trabalharam sobre os males dessas sociedades arcaicas, nomeadamente denunciando e descrevendo o domínio político e económico-social tão implacável em justificar-se e louvar-se na servidão e na escravidão, em nome de Deus, quanto o era a negar a liberdade e a impedir a igualdade «propter nos homines et propter nostram salutem».

João Boavida disse...

Exatamente, meu caro Caros Ricardo Soares, e os que não veem isso e se insurgem contra o Ocidente, não percebem que estão a escavar a base do Ocidente, e a criar condições para um dia podermos vir a estar como eles estão, e sempre estiveram. Claro que a América tem muitos telhados de vidro, mas foi, e continua a ser, uma terra de esperança para onde todos querem ir, o que não acontece, de modo nenhum, com a Rússia.

João Boavida disse...

Ah, sim, e nada como ler a literatura russa que, como sabe, é riquíssima e teve vultos da maior grandeza, tanto no século XIX como no XX, para perceber a doença dessa sociedade e o que estava a criar dentro de si própria. O comunismo acabou com muitas injustiças, alterou toda a sociedade mas os métodos não mudaram e, consequentemente, não criou condições para verdadeiramente se transformar.

Anónimo disse...

O povo russo sempre foi um povo mártir, vítima sobretudo de si próprio,...

Pois, então não se está mesmo a ver aquilo que o sr, professor João Boavida, insigne preopinante, nos ensina:

Que foi o povo russo que deu existência a Napoleão e a Hitler!

Pois é: As invasões de Napoleão e de Hitler à Russia foram apenas culpa do povo russo, mas não culpa de todos os outros povos igualmente invadidos, tão diferentes que são do povo russo.

Da mesma forma as guerras do ultramar tambem foram culpa só do Salazar, pois claro, que o povo português não é como o povo russo.



Ainda bem que existem professores como o sr. João Boavida para nos chamar à realidade com a sua férrea dialéctica.

Longa vida para os Doutores, para nos ensinarem as coisas que só eles, Doutores sabem.

João Boavida disse...

Quando falei no povo russo como mártir, não me queria referir, como era evidente, nem às vítimas de Napoleão nem às de Hitler, porque as vítimas, tanto num caso como no outro, foram de quase toda a Europa e não só da Rússia. O martírio do povo russo tem que ver com a sua eterna subjugação a tiranias, que nunca trabalharam minimamente no sentido da sua democratização, que sempre atuaram com o maior desprezo pelas vidas humanas, e a um nível de crueldade que é difícil de imaginar. Se o caro Anónimo quiser informar-se sobre isto, tem inúmeros livros onde o pode fazer, mas para além do já referido Custine, que o informa sobre a realidade social e política russa que vem desembocar nos século XIX, eu aconselho-o, para o que veio depois, a ler o livro da escritora bielorrussa Svetlana Aleksievtch (Prémio Nobel da literatura em 2015) intitulado "O fim do home soviético", editado pela Porto Editora em 2015.

Anónimo disse...

"O martírio do povo russo tem que ver com a sua eterna subjugação a tiranias, que nunca trabalharam minimamente no sentido da sua democratização, que sempre atuaram com o maior desprezo pelas vidas humanas, e a um nível de crueldade que é difícil de imaginar.

É Falso.
Em relação à URSS, em muitos aspetos, houve uma democratização cultural de massas, acompanhando a nova democracia. Foi um surto como não houve outro na história do século passado, em que aqueles povos de analfabetos na sua esmagadoura maioria aprenderam a ler, frequentaram escolas, tiveram ensino gratuito, frequentaram as universidades e tiveram bolsas de estudo... e desenvoveram a ciência, conquistaram o espaço, dominaram a energia nuclear, o desporto, e a arte.

Custine, é, toda a gente sabe isso, considerado o "pai" da russófobia.


Quanto à Sra. Svetlana Aleksievtch, não lhe conheço uma única linha sobre os massacres prepertados, diáriamente, contra o povo do Donbass desde 2014, em que morreram milhares de pessoas inocentes vítimas de bombardeamentos.

Esta Sra. jornalista, incomodou-se com isso meu caro professor? diga-me lá onde posso ler uma linha, por ela escrita, desse lamento.


Anónimo disse...

... o maior desprezo pelas vidas humanas, e a um nível de crueldade que é difícil de imaginar.

Caro professor, pode haver nível de crueldade maior que aquela que está a ocorrer em GAZA.

Olhe que a crueldade do Tarrafal não foi nem melhor nem pior que a dos Gulag.

Aos fanáticos, é bom saibam que não está muito longe uma guerra entre o Ocidente e a Russia, é bom que saibam que está na hora de arrepiar caminho, e deixarem-se de falsificações históricas.

Já agora caro professor, a Russia, por acaso deitou alguma bomba atómica, conhece algum país que o tenha feito, ufa, se tivesse sido a Russia não se repescava os Gulag.


P.S.: A Sra. Svetlana Aleksievtch foi a primeira jornalista a ganhar um prémio nobel da literatura, em 2015, era preciso dar-lhe voz para a sua russófobia. Isso percebe-se de imediato. Se portugal fosse um país importante, a Zita Seabra tambem seria Nobel, acredite, professor.

Anónimo disse...

...meu caro Caros Ricardo Soares, e os que não veem isso e se insurgem contra o Ocidente, não percebem que estão a escavar a base do Ocidente, e a criar condições para um dia podermos vir a estar como eles estão, e sempre estiveram.

bibi amanhã vai falar ao congresso... hoje agradeceu "o apoio de biden à guerra" (sic).

Se o silêncio vale para tudo, se nos acenam com espantalhos para calar as maiores misérias do mundo, então isso é fanatismo.

João Boavida disse...

Caro Anónimo
Concordo consigo na primeira parte da sua resposta. E Revolução trouxe uma enorme promoção cultural do povo russo na medida em que houve um grande processo de escolarização e muito investimento na investigação. É óbvio que não podemos comparar o nível do povo russo do tempo dos czares com o atual.
Mas os outros povos também sofreram igual transformação, veja o que aconteceu com os portugueses desde os começos do século XX até hoje. Mas o ambiente claustrofóbico que então existia na Rússia - e que a literatura bem demonstrava - mantem-se.
Chamo a atenção para o facto de que o livro "O fim do homem soviético" ser constituído por centenas de depoimentos de pessoas velhas e novas, do período da URSS e posterior, e de a autora não escrever praticamente nada, e que há inúmeros depoimentos que são mais esclarecedores que todas as teorias e propagandas.
Quanto ao que nos diz do Donbass não sei se é verdade se não é, o que todo o mundo conhece, porque está mais que provado, é o métodos de Putin - que já usou noutros lugares - de mandar militares à paisana e arruaceiros criar instabilidade nas regiões que quer conquistar e depois aparece com as suas tropas salvadoras do povo. Foi assim que ele andou a pôr ovos em ninhos alheios, como na Abecásia, na Moldava, na Geórgia e se prepara para o fazer noutros lugares. Se isto não é imperialismo, o que é wntão?
Finalmente, se todos os livros que podem contraditar a nossa fé são falsos e agentes do capitalismo, mais vale não os ler, mas será também a maneira mais segura de ficarmos prisioneiros de nós mesmos. E por aqui me fico.

Anónimo disse...

"O pai da bomba de hidrogênio americana E. Teller, que estava pessoalmente familiarizado com Landau, chamou-o de "comunista inflamável". Ele fez essa conclusão com base naquelas ideias que Landau expressou em conversas privadas e em entrevistas a jornais. Enquanto na Europa, Landau admirava as transformações revolucionárias na Rússia Soviética, afirmou que não havia exploração, e cada pessoa trabalhava para o benefício de seu país, enquanto na URSS ele prestou muita atenção ao desenvolvimento da educação e da ciência. Ele desprezava os preconceitos e privilégios burgueses e acreditava que a revolução acabaria com eles.

Landau acreditava sinceramente que na Rússia Soviética havia uma construção de uma nova sociedade. Mesmo as repressões stalinistas de 1937 não abalaram essa fé: ele as associou exclusivamente à ditadura pessoal de Stalin, que traiu a causa da revolução, mas considerou o curso geral verdadeiro."


Caro professor João Boavida, o génio da física Lev Davidovich Landau, diz-nos que "não havia exploração", o senhor vem aqui dizer-nos que o ambiente era claustrofóbico!!!

O senhor professor não é como Landau, na medida em que este desprezava os preconceitos e privilégios burgueses, é o que nos resta concluir.



Se Landau não lhe basta, para perceber o espirito da União Soviética, de Lenin, recomendo-lhe a leitura de "Mulher, Estado e Revolução" da Historiadora americana e professora da Carnegie Mellon University, Wendy Goldman - apresentacão no link abaixo.

Uniao-Sovietica-foi-pioneira-nos-direitos-das-mulheres-afirma-historiadora-americana

Anónimo disse...

A Grande Revolução Socialista de Outubro emancipou as mulheres, dando a elas plenos direitos iguais aos dos homens.



O Artigo 122 da Constituição da URSS declara:



“Às mulheres na URSS são concedidos direitos iguais ao homem, em todas as esferas da economia e da vida do Estado, cultural, política e socialmente.”



“O gozo desses direitos é assegurado pela concessão à mulher do direito ao trabalho como ao homem, com o mesmo salário, e com todos os direitos de descanso, seguro social e educacional e pela proteção do Estado aos interesses da mãe e da criança, descanso durante a gravidez, assistência em maternidade, enfermarias e creches.”



E o Artigo 137 da Constituição da URSS declara:



“As mulheres têm o direito de elegerem e serem eleitas em condições iguais aos homens.”




As Mulheres na URSS

Onde está o ambiente claustrofóbico, professor doutor João Boavida?

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