segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

PENSAR SOBRE O PENSAMENTO

A. Galopim de Carvalho
 
Feito dos mesmos átomos que existem nas estrelas, nos minerais, nas plantas, nos outros animais e em tudo o mais que existe, o cérebro humano, cuja estrutura vai sendo a pouco e pouco desvendada, é matéria que adquiriu complexidade tal que, além de coordenar toda a actividade vegetativa do corpo em que está inserido, se assumiu com capacidade de se interrogar, de se explicar e de intervir (positiva ou negativamente) no seu próprio curso e no do ambiente onde surgiu e habita como mais um elemento da biodiversidade.
 
Ao interrogar-se e explicar-se, o homem, entendido como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria, adquiriu a possibilidade de pensar sobre o pensamento.

A filosofia (do grego philo, amor, e sophía, sabedoria), ou seja, o amor pelo conhecimento, é, sobretudo, a via que conduz o nosso cérebro ou a nossa mente a “pensar sobre o pensamento”, como dizia o meu professor desta disciplina, em Évora, nos meus 6.º e 7.º anos do Liceu (actuais 10.º e 11.º), António Hortêncio da Piedade Morais. Daí que os filósofos sejam, muitas vezes, referidos por “pensadores”.
 
Acrescente-se que devo a este belíssimo professor o ter mantido, ao longo da vida, um certo respeito pela filosofia, uma interessantíssima área do conhecimento que nunca aprofundei. Sei, no entanto, que o Homem, na sua capacidade de adquirir conhecimento, de o aprofundar e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do Universo, avaliada em cerca de 13 800 milhões de anos. 
 
É o expoente máximo da evolução matéria que se questiona a si própria. Foi esta a evolução, que a própria filosofia (como amante da sabedoria que é) desvendou, que permitiu aos pensadores ou filósofos pensarem sobre o pensamento.

O pensamento, que não surgiu no cérebro humano da noite para o dia, é um produto imaterial da matéria. Não tem dimensão física. Não tem volume, nem massa, nem peso, nem cor e não ocupa espaço. Para ele não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui, no interior de um núcleo atómico, na superfície abrasadora do Sol e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a milhares de milhões de anos-luz. 
 
É imaterial, mas produz trabalho. Se produz trabalho é porque tem força, e muita. Sendo precisa, pode “mover montanhas”.
 
“Esforço intelectual” e “trabalho mental” são expressões correntes. Como tal, o pensamento é força e energia com capacidade de interagir com a matéria. E isso tanto acontece no acto de talhar o sílex entre as mãos de um neandertalense, de lapidar um diamante ou de fabricar um computador, por um conjunto de operários especializados.
 
Se tivermos em atenção a evolução do ser humano, desde o mais antigo primata até ao Homo sapiens, o actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é
- a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a pensar racionalmente? Foi no do “Neanderthal”, aparecido há umas centenas de milhares de anos, foi antes dele, ou foi só no do "Cro-Magnon", que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?
Sabemos que muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho, de um elefante ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos? 
 
Sabemos, pois, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados pré-históricos exerceram actividade psíquica mais elaborada do que a dos animais vulgarmente ditos irracionais.
 
A pré-história ensina que, ao longo da sua evolução física e psíquica, os nossos antepassados desse longínquo período observaram, experimentaram e estabeleceram relações de causa-efeito, transmitindo aos descendentes o saber que foram acumulando, servindo-se para tal da linguagem de que dispunham, de início o gesto e, mais tarde e progressivamente, a fala. 
 
Fizeram tudo isto e muito mais antes dos sumérios terem iniciado a arte de escrever, há cerca de 5000 anos. 
 
E foi só, a partir do momento em que passaram a viver em grupos progressivamente mais alargados, que se depararam com questões associadas à linguagem e aos valores morais, estéticos, políticos e religiosos. 
 
Nesta caminhada surgiram os primitivos filósofos, designação genérica pela qual são habitualmente referidos os mais antigos geógrafos, historiadores, astrónomos, matemáticos e outros pensadores.
 
Há tempos tive curiosidade em passar os olhos sobre um Programa oficial desta disciplina (não sei se ainda em uso), no nosso ensino secundário, e uma das frases que li e que, como se costuma dizer, fiquei de boca aberta, com esta evidente tentativa de impressionar o leitor com propósitos de manifestações de erudição bacoca. Diz-se aí:
“Iniciar à discursividade filosófica, prestando particular atenção, nos discursos/textos, à análise das articulações lógico-sintácticas e à análise dos procedimentos retórico-argumentativos”.
Com uma tal fraseologia, acentuou-me a convicção de que um discurso tão desnecessariamente rebuscado aparenta mostrar o elevado nível filosófico de quem o escreveu, mas deixa-me sérias dúvidas e perplexo no que respeita a sua qualidade pedagógica. 
 
Discursos assim fazem fugir “a sete léguas” um qualquer adolescente. A mim, cuja idade pesa mais do que cinco adolescentes, foi o que me aconteceu, fugi.
 
Com boa vontade, podemos admitir que todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja sobre minerais ou rochas, borboletas, literatura, castelos, gastronomia, pintura, planetas e satélites, jardinagem ou até, mesmo, futebol, moda ou tauromaquia. Tudo é sabedoria e tudo é, de facto, para os respectivos cultores, motivo de amor ou interesse. Mas o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É, por assim dizer, uma sabedoria com uma longa história, vasta e complexa, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.
 
Como disciplina do secundário, a Filosofia é um ramo do conhecimento como qualquer outro. Afasta muitos alunos porque, como se viu, usa um vocabulário para eles erudito e hermético, fora do seu dia-a-dia e, portanto, sem interesse. Acontece que, se este “falar caro” for “trocado por miúdos”, deixa de “meter medo”, passa a ter significado e, até, acredite-se, pelo menos para mim, tem beleza. Como filósofo que sou, no estrito sentido de gostar de saber coisas, das mais simples e vulgares, como levantar uma parede de tijolos ou ferrar um cavalo, as ondas de gravidade previstas por Einstein há 100 anos e agora, finalmente, descobertas, ou o bosão de Higgs, não resisto a “meter o nariz e espreitar” este maravilhoso domínio do génio humano.
 
Fique claro que não pretendo “meter a foice em seara alheia”. Não adquiri preparação académica em filosofia. Limito-me, pois, a procurar tornar acessíveis as leituras que a condição de “arrumado na prateleira”, como aposentado, desde 2001 (há 22 anos, é muito tempo), me vão ensinando.
 
Que perdoem os muitos que tratam por tu o discurso filosófico. Não é para eles (que, certamente, dispensarão, estas minhas despretensiosas incursões) que escrevo. A eles peço, sim, que me corrijam onde eventualmente possa errar ou ser menos claro ou incompleto. Escrevo para os que não tiveram oportunidade de contactar com os temas que habitualmente divulgo e que, todos os dias esperam estes meus escritos. E é a pensar neles que vou pondo aqui, e “enquanto é tempo” (o horizonte de vida não permite dilatar o tempo), o que aprendi e continuo a aprender, bem como o que meditei ao longo da vida.
 
Com boa vontade, podemos admitir que a filosofia interessa a todos. Tanto podem falar dela os académicos, numa linguagem elitista, só a eles acessível, mas hermética para o cidadão comum, como nós, numa exigência mais modesta, ao nível da chamada divulgação. Todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja o que for. Tudo é sabedoria, pelo que tudo é filosofia. Mas, volto a dizer, o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É uma sabedoria vasta e complexa, com uma longa história, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.
 
Foi o confronto entre a realidade e as ideias que, a partir dela, foram formulando, que conduziu os pensadores no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase, se confunde com a filosofia. É nesta fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências". Foi a admiração e a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.

Já o dissemos e continuamos a poder dizer que foi entre os gregos que começou a audácia e a grande aventura do pensamento. Há quem afirme que terá sido no decurso do século VII a.C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade.
 
É hoje consensual que a filosofia, como superior elaboração do pensamento, nasceu da recusa ao carácter sobrenatural dos mitos, que então dominavam as crenças, não só da sociedade grega, mas de toda a Ásia Menor. A passagem de uma mentalidade fundamentada em crenças de carácter religioso, a uma outra, assente no raciocínio, marca, pois, o início da filosofia.
 
A filosofia surge, assim, como uma espécie de rompimento com a visão mitológica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, a filosofia inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico.
 
Ao contrário da religião (neste caso, também a mitologia), baseada na fé, que não contesta, respeita e, praticamente, não se afasta da tradição e dos textos sagrados, a filosofia serve-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe deparam. A dinâmica social em crescimento nas cidades-estados (“polys”, em grego) jónicas, nas colónias gregas da Ásia Menor, apagou progressivamente as instituições e os valores arcaicos, dando nascimento a uma nova maneira de ver e pensar o mundo.
 
Um parêntesis para lembrar que, na Grécia antiga, cidadão era aquele - nunca aquela - que gozava do direito de participar na vida política da “polys”, um direito igualmente vedado a estrangeiros e a escravos. Foi por essa secundarização da mulher, na chamada civilização ocidental (praticamente, até começos do século XX), que a filosofia, as ciências e muitas outras atribuições lhes foram vedadas.
 
Durante o século VII a.C., as novas condições de vida nas ditas “polys” acentuaram-se com o fortalecimento do artesanato, do comércio e da navegação, marcando definitivamente a decadência da organização social baseada numa estrutura de base agrária, patriarcal e gentílica. Este tipo de organização social deu lugar a uma nova forma de pensamento racional, que não partia da tradição mítica, mas de realidades apreendidas na experiência humana quotidiana.
 
Dito de outra maneira, os resultados da experiência sensível no dia-a-dia conduziu à laicização da cultura e à sua integração numa visão racional e unificadora
 
Neste quadro, admite-se que tivessem surgido, nas colónias gregas da Ásia Menor, as primeiras manifestações de um pensamento racional, embrião da filosofia, abrangendo os primórdios de uma ciência teórica (sem qualquer apoio experimental). Admite-se ainda que foram também certas particularidades da mitologia grega que conduziram ao pensamento filosófico e que a contribuição dos primeiros filósofos foi dessacralizar e despersonalizar as narrativas tradicionais sobre a origem e organização do cosmos.
 
Por outras palavras e por fim, não esqueçamos que, não obstante os mitos serem narrativas fictícias, afastadas do discurso racional (“logos”), foram eles que levaram à reflexão por parte dos filósofos, tornando-se, assim, num domínio de fronteira entre as crenças religiosas e a filosofia.

A. Galopim de Carvalho

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