quarta-feira, 23 de março de 2022

OS CIENTISTAS NÃO 'ACREDITAM'

Por múltiplas e diversas razões, não gosto nada, mesmo nada, de usar aqui ou noutro lugar público casos ou exemplos pessoais, mas vou abrir uma excepção para registar um fenómeno que tenho visto acentuar-se e de que outros investigadores e professores terão dado igual conta.

Esse fenómeno é o uso de expressões como "acredito", "acreditamos" e "acredita-se" em trabalhos académicos de licenciatura, mestrado e doutoramento. Desde há uns anos a esta parte não há nenhuma época de avaliação em que não assinale múltiplas vezes a imprecisão (ou o erro) nesses trabalhos e a explique aos estudantes. Faço isso também no início de cada "unidade curricular", e devo dizer que os resultados estão longe de ser animadores. "Nunca pensei nisso", "é o hábito", dizem-me eles. Será assim, mas as palavras traduzem ideias e, em Educação (onde convivem disciplinas de teor filosófico e científico) as ideias precisam de ser escrutinadas sob pena de  nos conduzirem a sentidos indesejados.

O físico e biólogo Alexandre Quintanilha percebeu, por certo, esta tendência linguística/de pensamento antes de mim, pois em Setembro de 2009 tornou-a tema de uma conferência realizada no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, integrada nas celebrações dos 150 anos de publicação da Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin. A conferência foi apresentada da seguinte maneira:
"Frequentemente são noticiados debates entre os que 'acreditam em Darwin' e os que 'acreditam no criacionismo ou desenho inteligente'. É muito importante esclarecer que os cientistas não 'acreditam' em Darwin" (...) "a ciência tem como objectivo analisar a evidência e a partir [dela] apresentar hipóteses que podem ser verificadas ou não", daí que "o fundamental continua a ser sempre a necessidade de pôr essas hipóteses à prova". Assim, debater se o homem evoluiu a partir de outra espécie ou se foi criado por um ser inteligente não deve ser matéria de "crença". "Os que acreditam no criacionismo não têm dúvidas. Os cientistas têm muitas dúvidas. São elas que fazem avançar a ciência", sublinha. De resto, o trabalho científico "é longo e laborioso e beneficia muito dos escolhos que encontra pelo caminho".
Nessa conferência, a que assisti, tirei as seguintes notas:
“Nós, os biólogos, não acreditamos na Teoria da Evolução”. Esta foi a primeira frase que enunciou. E explicou: “acreditar” é uma palavra sem sentido em ciência, pois o que os cientistas procuram é dados, provas para confirmarem ou infirmarem as teorias. A Teoria da Evolução não pode ser entendida como uma crença porque ao longo do tempo, os cientistas foram acumulando factos que os levam a pensar que ela está certa. 
Isso não significa que a devam entender como uma Verdade com “V” grande, mas como com “v” pequeno, pois as teorias são constantemente revistas, o que desencadeia alterações, correcções… Aqui está uma das características mais empolgantes da ciência: a transitoriedade de muitas respostas, a “verdade” está sempre sujeita a revisões. 
Segui-se a questão: como acedemos ao conhecimento científico? Ou seja, quando queremos conhecer, no campo da ciência, como fazemos? É preciso ter curiosidade e imaginação: a primeira influencia/determina as perguntas que fazemos e a segunda influencia/determina a forma como tentamos responder às perguntas. Os pensadores (e fazedores) mais criativos são aqueles que imaginam novas perguntas e respostas, pondo em causa as existentes. 
A maneira como tentamos responder a perguntas faz-se através: (a) da formulação de hipóteses; (b) concebendo formas de testar essas hipóteses; (c) acumulando e integrando informação, identificando semelhanças e diferenças; (d) e prevendo consequências. 
As respostas que se vão encontrando surgem frequentemente em forma de “estórias”, as quais podem ser mais ou menos robustas, em função da sua coerência (ausência de contradições e incoerências) e da sua fertilidade (construindo pontes novas entre áreas diferentes do conhecimento e permitindo formular hipóteses). 

Isto conduz-nos aos valores que entende serem os da ciência: 
(1) Exactidão preditiva, ou a capacidade de se prever aquilo que ainda é desconhecido;
(2) Coerência interna, ou a exigência de que os vários elementos de uma teoria não se podem contradizer;
(3) Consistência externa, ou a ideia de que não se devem violar princípios científicos já estabelecidos que, por serem sólidos, muito dificilmente podem ser questionados;
(4) Capacidade unificadora, ou a possibilidade, que infelizmente só raramente surge, de se conseguir esclarecer em simultâneo vários dados;
(5) Fertilidade (ou fecundidade), ou a aptidão para abrir novos domínios de pensamento.
Adicionou a estes, mais um valor (que não é comum invocar-se):
(6) Simplicidade ou elegância, que remete para a ideia de que a teoria tem sempre qualquer coisa de esteticamente atraente ou apelativa.  

Em suma, para se perceber que a/s expressão/ões em causa não deve/m ser usada/s no contexto que referi, como sinónimos de "considero", "entendo", parto do princípio"..., é preciso entender em profundidade, o que Alexandre Quintanilha disse. Mas como é isso possível se as disciplinas que servem de base à Educação têm desaparecido do currículo do ensino superior? Em 2009 eu leccionava, no primeiro ano da licenciatura em Ciências da Educação a disciplina de "Epistemologia das Ciências da Educação", onde questões como as que estão aqui em causa tinham lugar. Foi, naturalmente extinta, no quadro da Reforma de Bolonha, para dar lugar a "unidades curriculares" mais funcionais, deixando os estudantes mais vulneráveis a modas, pressões e afins.

5 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Se quisermos ser rigorosos no uso das palavras, temos que aceitar usá-las dentro de uma convenção de significado e de comunicação em que, pelo menos, se assegure que as subjectividades se reconhecem no intersubjectivo e, quanto ao objecto e ao objectivo/objectivação, que, pelo menos, as subjectividades acreditem ser coincidentes.
Se alguém, seja biólogo, neurocientista, filósofo ou teólogo, cartomante ou adivinho, matemático ou relojoeiro, poeta ou asceta, souber um modo ou forma de garantir que aquilo que uma pessoa pensa, ou sente, corresponde àquilo que ela diz, ou, por outra, que aquilo que lhe dizem corresponde àquilo que ela pensa, ou sente, creio que teremos resolvido um severo problema humano.
Acreditar em Darwin, ou naquilo que o médico diz, ou nas razões de Darwin, ou do médico, ou acreditar em dados, ou que uma teoria está certa, vai dar tudo ao mesmo e não adianta jogar com as palavras para as esvaziar de significado.
Perante os factos, a nossa condição física, humana, sensorial, perceptiva, cognoscente, é o que é e os factos são o que são. Tentar compreender o fenómeno do conhecimento dos factos é tentar compreender e explicar o fenómeno das crenças, que não são apenas verdadeiras ou falsas, certas ou erradas, mas não apenas o fenómeno das crenças. A maior parte dos factos relevantes para nós não coloca problemas de verdadeiro/falso, de certo/errado, mas já coloca problemas de bom, mau, bem, mal. Outros, ainda, colocam problemas de expectativas e de investimento, de apostas, que poderão ou não ser goradas. E isto é quanto aos factos, passado, a ciência é sobre factos, passados, não é sobre futuro, nem previsão, ou previsibilidade. Prever não é ciência. Ainda assim, a ciência sendo declaração acerca de factos, só acredita nessa declaração quem sabe, pode e quer. E, como dissemos no início, o acreditar nessa declaração (mesmo reproduzindo-a ipsis verbis) não garante qualquer correspondência entre essa declaração e aquilo que o declarante pensa ou entende acerca dela. A prova de um facto, sendo um facto, não é o facto, mas ainda há o problema do entendimento, que é subjectivo e, na melhor das hipóteses, intersubjectivo, porque, quanto à objectividade, não creio que seja possível demonstrá-la, ou prová-la, mesmo num contexto de ciência física pura e dura.
A questão do acreditar levar-nos-ia mais longe e tem mesmo a ver com a ciência e as hipóteses, porque acreditar ou não acreditar é, de algum modo, acreditar, até prova em contrário.

Anónimo disse...

Lembro-me de, há uns anos atrás, quando frequentava um mestrado em física para o ensino, ter entrado num anfiteatro da Faculdade de Ciências, um professor convidado, doutorado em ciências da educação da Universidade de Braga, se não estou em erro, que, logo para começar transmitiu-nos a sua alegria triunfante por estar ali, aonde os senhores professores das ciências clássicas tiveram de o chamar, e a mais alguns como ele, para terem a autorização governamental de abrirem o referido curso de mestrado. Das suas palestras, só retive na memória que os tempos em que os pedagogos defendiam que a ciência, a ciência e a ciência (no sentido galileano) devia estar na espinha dorsal dos currículos liceais já lá vão. Por muito que custe acreditar, atualmente, nas escolas EB 1,2,3 + S+ JI de Portugal, as ciências da educação, transmitidas aos professores e alunos numa linguagem muito própria chamada "eduquês", têm a última palavra na conceção das chamadas aprendizagens essenciais de disciplinas como a Física, a Química ou a Biologia. Por exemplo, o estudo do movimento relativo, iniciado por Galileu Galilei, que só por si constitui uma revolução no campo da ciência física, dado que vem substituir as conceções aristotélicas de movimento, saiu do programa do 12.º ano, porque os teóricos da educação assim quiseram. Não é essencial que um cidadão que conclua um curso científico-humanístico saiba um mínimo sobre Galileu Galilei e os seus estudos. Esta lógica estende-se aos professores. Se eles só estão na sala de aula para entreter e avaliar os seus alunos, também não precisam de saber na sobre a Ciência que dá nome à disciplina que lecionam.
Basta-lhes saber fazer muitas grelhas que, devem preencher com muitos domínios e subdomínios, aprendizagens essenciais e medidas universais, e, se nada disto funcionar, dar a nota para passar.
No meio desta farsa monstruosa, para que serviria a epistemologia?!

Helena Damião disse...

Caro Leitor Anónimo
Agradecendo o seu comentário, permito-me dizer o seguinte:
1) Persiste, na verdade, a confusão entre conhecimento escrutinado e escrutinável que se reúne na designação “Ciências da Educação” e decisões políticas. É importante notar que estas decisões pouco têm de político pois, em vez de defenderem a educação, como "bem comum", legitimam interesses vários, entre os quais se destacam os económico-financeiros.
2) Por mais que os representantes desses interesses e, por arrastamento, os decisores políticos procurem ancorar as suas opções deseducativas nas Ciências da Educação não o conseguem pois as Ciências da Educação têm o propósito de estudar a Educação a fim de melhorar a Pedagogia (a ciência da educação cujo foco é a prática).
3) O "eduquês" – expressão do ex-Ministro da Educação Marçal Grilo – é, como já escrevi neste blogue, uma “linguagem” inocente quando comparada com o “economês” ou, melhor, o “finançaguês”, que, para melhor conseguir os seus intentos, ultimamente se tem socorridos de dialectos como o “psicologuês” e o “sociologuês”. Trata-se de uma “linguagem” altamente sofisticada, fabricada por quem domina regras de marketing. As reformas curriculares implementadas neste século em vários países têm sido redigidas nesta linguagem. Mesmo sendo ininteligível, conduz o pensamento num sentido que se afasta do educativo. E consegue-o.
4) Quanto às Aprendizagens Essenciais lembro que elas foram redigidas por associações de professores. Assim, no exemplo que dá, as concepções aristotélicas de movimento saíram do currículo porque os professores quiseram e não porque os teóricos da educação quiseram. Poderá dizer-me que foram influenciados pelas orientações políticas (ou económico-financeiras). Respondo-lhe que talvez, sim… mas quem se propõe colaborar no currículo deve ter sérias preocupações com o conhecimento. Como compreenderá, não se trata aqui de transferir responsabilidades, mas da obrigação que cada um de nós tem de assumir as suas próprias responsabilidades. Quem se propõe educar deve comprometer-se com a educação. Muitas vezes, como diz a filosofa Victória Camps, isso implica "remar contra a maré", mas sempre foi assim e há-de continuar a ser assim. Educar, ensinar é lutar contra a maré sempre que a maré vai em sentido contrário ao que deve ser o da Educação.
5) Por fim, não sei se a Epistemologia serviria (ou se serve) para pensarmos a Educação, mas sem ela não ficamos melhor. É esta a razão que me leva a insistir na sua importância.
Cordiais cumprimentos,
MHDamião

Anónimo disse...

Cara Helena Damião,

Reconheço que na redação do meu último artigo cometi alguns erros gramaticais e ortográfico e fui particularmente injusto quando implicitamente tratei as pessoas formadas em ciências da educação como se fossem todas iguais. Eu próprio tenho alguma formação em ciências da educação porque no meu curso de licenciatura frequentei as chamadas didáticas, bem lecionadas por professores do curso e horrivelmente lecionadas por doutorados em ciências da educação, as Psicologias, a Sociologia e a inesquecível disciplina anual Desenvolvimento Curricular e Aprendizagem, lecionada por uma professora catedrática em ciências da educação, que me proporcionou as maiores barrigadas de riso por que passei em aulas teóricas e teórico-práticas.
Acredito que haja cursos de ciências da educação mais bem organizados e lecionados.
A luta constante, neste blogue, da professora Helena Damião a favor da educação e do conhecimento, e contra a destruição da escola, fez-me ver que dentro das ciências da educação ainda há quem reme contra a maré. Mas, como em todas as áreas, houve, e continuará a haver, pessoas com perfis quadrados.
Todos se lembram de uma célebre Secretária de Estado, com formação superior em Ciências da Educação, que, um belo dia, decidiu que a norma de duração de uma aula de liceu tanto poderia ser os cinquenta minutos do fascista Salazar, com intervalo de dez minutos para descansar e ir à casa de banho, como 100 minutos, sem intervalo.
Atualmente, as aulas de 100 minutos podem ser um fator decisivo da melhoria das aprendizagens, mas para a maioria dos professores e alunos são um inferno.
Contrariamente ao que as suas palavras fazem supor, os professores do liceu, equiparados que foram a educadores de infância, atualmente são funcionários públicos ordinários, sem liberdade sequer para avaliar os seus alunos.

Helena Damião disse...

Caro Leitor Anónimo
Sei bem do que fala: da enorme, da inqualificável, da iníqua pressão que políticos e suas réplicas no sistema, bem como a panóplia dos ditos stakeholders fazem sobre os professores do ensino básico, secundário e superior para se anularem como professores. E muitos, desses três níveis de ensino, anulam-se, uns conscientemente, outros indiferentemente, outros entusiastamente.
Não sei como se poderá conquistar a dignidade da profissão, nem sei se isso será possível, pelo menos a curto prazo, nem sei, mesmo, se a profissão se manterá no futuro (temo que não), mas entendo que aqueles que tem noção dessa dignidade estão obrigados a fazer valê-la. E são (ainda) bastantes que o fazem com custos elevados, em esforço, em isolamento, etc.
Cordialmente,
MHDamião

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