sábado, 5 de março de 2022

A FUGA À REALIDADE

 Novo texto de Eugénio Lisboa:

 The whole  problem with the world Is that fools and fanatics are so certain of themselves and wiser people so full of doubts (Bertrand Russell).

Quando ainda vivia em Moçambique, tive um amigo, agora já falecido, que era um conhecido jornalista, poeta, contista, cronista, com um razoável talento e bastante leitura. Embora não enfeudado a nenhum partido, “torcia”, como grande parte da juventude, naquele tempo, para o lado da esquerda dura.

Um dia, em conversa amena, falei-lhe do escritor inglês Aldous Huxley, que eu lia desde a minha adolescência e de quem admirava a inteligência acutilante, alimentada por uma enorme erudição. Os seus romances Antic Hay (1923), Point Counter Point (1928), Brave New World (1932), Eyeless in Gaza (1936), After Many a Summer (1939), os seus admiráveis contos Two or Three Graces (1926) e os seus provocantes ensaios Proper Studies (1927), Ends and Means (1937) e The Human Situation (1978) deixaram marca profunda, na sua época e ainda hoje são altamente dignos de serem revisitados.

Nove vezes candidato ao Prémio Nobel, a egrégia Academia Sueca nunca se decidiu a dar-lhe o galardão, talvez por razões que têm muito que ver com a história que comecei a contar e vou acabar.

Esse meu amigo dos tempos de Lourenço Marques, ao mencionar-lhe o nome de Huxley, teve uma reacção muito particular: fez um sorriso, muito contraído, quase doloroso e, a muito custo, lá disse de sua justiça: “Prefiro não ler esse escritor. É demasiado inteligente e por isso, perigoso.” 

Nunca mais esqueci esta resposta, que ouvi depois na boca de muitos outros, igualmente inclinados para a mesma ideologia, pródiga em oferecer certezas confortáveis. A inteligência, por outro lado, desassossegava, oferecia só hipóteses de trabalho, sempre efémeras e substituíveis por outras hipóteses menos erradas. Mas os ideólogos não costumam gostar de pensar. Foi precisamente Huxley quem disse que pensar é a excepção à regra de não pensar. E Russell notou, com inquietante justeza, que a maioria das pessoas preferiria morrer a pensar e, de facto, faz isso mesmo. 

Esta rejeição muito generalizada do acto de pensar explica a prosperidade de tantas religiões e ideologias, que são outras tantas religiões. Só os destemidos pensam e os destemidos são uma minoria da humanidade. Uma ideologia forte oferece certezas fortes e nada é um nicho tão acolhedor como uma certeza forte. O problema é que o refúgio em certezas fortes é sempre uma fuga à realidade da incerteza e da dúvida, mesmo que sejam estas que fazem andar para a frente o conhecimento humano.

O hábito de fugir à realidade torna-se particularmente perigoso em chefes políticos como Hitler, Estaline ou Putine, cuja alienação pode tornar-se a causa de grandes catástrofes. Nunca esqueço os oficiais alemães que chefiavam dantescos campos de extermínio, mas, à noite, eram carinhosos maridos e pais de família e ouviam, com deleite, a mais refinada música clássica. As cartas de Himmler à mulher são cartas de um marido modelarmente carinhoso. Estes homens encontravam, na noite doméstica, uma fuga à horrenda realidade do dia. Putin, ex-funcionário superior dessa fábrica de assassinatos sem julgamento que foi a KGB, deve ter tido, como o Mr. Kutz da novela de Conrad, Heart of Darkness- que Coppola transportou para o cinema, colocando-a no Vietnam – que refugiar-se fora da realidade, para sobreviver. Esse “fora da realidade” é onde ele continua a residir, para grande risco de ucranianos, de russos e de europeus em geral.

Viver com certezas fortes é, repito, um dos maiores perigos para a continuação da vida na terra. Deixo aqui, para terminar esta pérola de saúde mental: “Ensinar como viver sem certezas e, contudo, sem nos deixarmos paralisar por hesitações, é talvez o essencial que a filosofia da nossa época pode fazer pelos que a estudam.” (Bertrand Russell).

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

A citação, atribuída a Bertrand Russel, no último parágrafo, também na minha opinião, é uma pérola de saúde mental e faço todo o gosto em reforçar isso. Pela experiência, cada um de nós aprende que certezas, nem no fim do jogo. Até a ciência se depara com o problema da incerteza e não é apenas um problema prévio às conclusões, é inerente às próprias conclusões. A relação entre o conhecimento e a certeza é uma relação interessante e não apenas filosófica. De qualquer modo, e atalhando, os níveis de previsibilidade dos efeitos ou consequências das escolhas, quaisquer que sejam, científicas, económicas, éticas, estéticas, morais, jurídicas, filosóficas, ideológicas, ficam sempre aquém da realidade e, ainda assim, a certeza do que seriam essas consequências se outras tivessem sido as escolhas, na maior parte das situações, não poderíamos saber. Podemos ser responsáveis por algumas das escolhas que fazemos, mas dificilmente ou nunca poderemos ser culpados pelos efeitos e consequências das escolhas que deixamos de fazer, ou que, simplesmente, não fizemos. Não obstante, ficar paralisado por hesitações parece mais uma forma de escolha, no sentido em que, até quando não escolhemos, essa é a nossa escolha.

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