quinta-feira, 17 de março de 2022

"És capaz de parar de ler esse livro idiota?"

A evolução da "narrativa" da dita Educação do século XXI/do futuro e das medidas "pedagógicas" que dela decorrem, cuja implantação em diversos países é bem observável, transporta-nos, inevitavelmente, para uma certa ficção disruptiva saída da pena de diversos escritores. Ficção que, note-se, construiriam, com imaginação, a partir da realidade e do que ela lhes sugeria.

Isaac Asimov foi um desses perspicazes escritores. Escreveu, designadamente, sobre os contestáveis fins da educação (formal) e os estranhos modos de o concretizar. Num conto saído em 1957 com o título A profissão – o primeiro no alinhamento da obra Nove amanhãs – faz, além do mais, uma brilhante abordagem sobre o lugar do livro e da leitura, do estudo individual, sempre difícil, demorado e caro, na aprendizagem para... se aprender mais! E que sentido tem aprender-se mais? Hábito, necessidade... faculdade de criação... são razões que perpassam no conto. Mas quem as percebe?

(…) gritou para Omani: És capaz de parar de ler esse livro idiota? 
Omani virou a página e leu ainda algumas palavras, depois levantou a cabeça (...) e disse: O quê? O que é que tu ganhas em ler esse livro? – Avançou e bufou. 
– Mais electrónica – E arrancou-o das mãos de Omani.
Omani levantou-se devagar e apanhou o livro. Endireitou uma página amarrotada sem visível rancor. 
– Chama-lhe satisfação da curiosidade – disse – aprendo alguma coisa hoje, talvez um pouco mais amanhã. De certa forma é uma vitória. 
– Uma vitória. Que espécie de vitória? É isso que te satisfaz na vida? Chegares a saber o suficiente para seres um quarto de engenheiro electrónico registado quando já tiveres 65 anos? 
– Talvez quando tiver 35.
– E nessa altura quem é que te quererá? Quem é que te vai usar? Para onde é que vais? 
– Ninguém. Ninguém. Para lado nenhum. Ficarei aqui a ler outros livros. 
– E isso satisfaz-te? Diz-me! Tu arrastaste-me para a aula. Fizeste-me ler e memorizar, também. Para quê? Nada disso me satisfaz.
– O que é que ganhas em negar-te a satisfação?
– O que te estou dizendo é que desisto desta farsa. Vou fazer o que sempre planeei fazer desde o início, antes de me teres convencido com tua conversa mansa (…)".

3 comentários:

Anónimo disse...

A Educação do século XXI destina-se, sobretudo, às massas. As massas de hoje, e de sempre, satisfazem-se plenamente com "panem et circenses". Assim, por exemplo, nas escolas secundárias, os professores não estão autorizados a lecionar matérias cuja compreensão exija estudo e trabalho por parte dos alunos. Em Portugal, o objetivo é chegarmos à terceira década do século XXI com a geração mais bem qualificada academicamente de sempre, em termos de quantidade. Os altos estudos, onde os livros continuarão a ter um papel crucial, estarão reservados para chineses, judeus e outros que ainda gostam de usar a cabeça para pensar.

Carlos Ricardo Soares disse...

Quem está no terreno há muitos anos, desde o ante-xerox até ao pós-windows, passando pelo digital, se a memória não falhar, e tiver interesse nisso, pode dizer que o ensino e a escola, em geral, deixou de ser dos professores.
Os professores que tiveram a oportunidade de o perceber foram poupados a uma angustiante batalha contra gigantes, que outros tomaram por moinhos de vento.
O problema coloca-se de modo simples: o professor, na acepção clássica de profissional do ensino, especializado numa disciplina, a quem compete ensinar e discutir e questionar as matérias com os alunos, para depois os avaliar em função desse processo vivo, interactivo e crítico, acabou de ser banido e não é mais figura grada.
Só não percebe a mensagem, vinda de cima, quem teima em acreditar que ser professor é exercer um múnus cultural e educacional baseado na sua competência e autonomia científica e pedagógica. Foi assim que o professor do século XX aprendeu a ver, a representar e a desempenhar o seu papel, nunca lhe passando pela cabeça que um professor, por exemplo, fosse um mero dispensador de fichas de perguntas ou actividades sobre temas e respectivas propostas de solução, ou de resposta, preferencialmente, ou mesmo obrigatoriamente, produzidas por entidades heterónomas, essas sim, especializadas e exclusivamente credenciadas para o efeito.
Mas é isto que se pretende, que o professor não tenha qualquer intervenção científica no processo, que já nem pode designar-se de ensino-aprendizagem. Pretende-se evitar, senão impedir, que o professor seja algo mais do que um funcionário do ensino pré-formatado, tipo "fast-food", que nem precisa de saber nada sobre aquilo que está a "ensinar".
E isto, sob a bandeira e o pretexto, a meu ver perverso, de que é para aliviar o trabalho do professor e dispensar os alunos da seca de o ouvirem e aturarem.
Na pior das hipóteses, podemos pensar que o professor caiu num descrédito total, ou seja, nada do que ele possa dizer aos alunos merece a garantia, ou sequer o benefício da dúvida, de que não são disparates. E se os alunos (esses sim, instruídos) o disserem ao director da escola, este, prontamente, e sem indagações, acreditará.
Chegamos ao ponto em que a escola se tornou o lugar em que o ensino e a aprendizagem são a parte menos relevante da sua função institucional, não obstante se continuar a perseguir os professores, e mais ninguém, pelos resultados menos bons dos alunos.

Anónimo disse...

Admito que possa haver alguém que não abarque o sentido profundo e trágico das suas palavras. Pode ser um político profissional, um limpa-chaminés, um engraxador de rua, um palhaço de circo, um especialista em educação, um educador de infância... mas, um professor, não!

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