Minha recensão hoje no jornal I:
O italiano Carlo Rovelli (n. Verona,
1956, portanto um rapaz da minha idade), professor na Universidade de Aix-Marseille,
em Marselha, França, é actualmente, depois do falecimento de Stephen Hawking,
em 2018, e de Steven Weinberg, em 2021, talvez o físico mais mediático do
mundo. O seu livro Sete Breves Lições de Física, saído em italiano em
2014, foi um sucesso internacional, tendo vendido milhões de exemplares em mais
de 40 línguas. Em português saiu na Objectiva em 2015. Confesso que vi o livro
em Itália, mas não consegui prever o êxito que viria a ter. Essa obra alavancou
outras duas entre nós: A Ordem do Tempo (Objectiva, 2018), sobre o mistério
do tempo, e A Realidade Não É O Que Parece (Contraponto, 2019), sobre a
ideia de realidade. Acaba de sair mais uma, nas Edições 70: traduzida da edição
francesa por Jorge Milícia, intitula-se Anaximandro de Mileto ou o Nascimento
do Pensamento Científico (original: Mondadori, 2012). O tema é o legado do
filósofo pré-socrático grego. Outros livros de Rovelli ainda por traduzir em
português são There Are Places in the World Where Rules Are Less Important than
Kindness (Allen Lane, 2018), um conjunto de crónicas jornalísticas, e Helgoland
(idem, 2021), uma discussão da teoria quântica.
Qual é o segredo do êxito de
Rovelli? A originalidade do seu pensamento, a qualidade da sua escrita e as
numerosas presenças nos média. E, acima, de tudo, o facto de ele abordar os
grandes segredos do Cosmos. Tal como sucedeu com Hawking e Weinberg, Rovelli tem
trabalhado em problemas de unificação das forças, que se aplicam ao Big Bang.
Enquanto Hawking, o autor de Uma Breve História do Tempo
(Gradiva, 1988), previu a radiação de buracos negros, ainda não observada, usando
uma versão quântica ad hoc da gravidade, Weinberg, o autor de Sonhos
de uma Teoria Final (Gradiva, 1996), unificou, com outros físicos, a força
electromagnética e a força nuclear fraca na chamada força electrofraca, o que
lhes valeu o Nobel da Física de 1979. Rovelli está mais próximo de Hawking, por
também investigar a gravidade quântica, um cenário de grande unificação necessário
para descrever o Cosmos no seu início.
Formado em Física na Universidade
de Bolonha, a mais antiga do mundo, Rovelli doutorou-se em 1986, em Pádua. Na
sua juventude foi preso, por ter recusado o serviço militar, obrigatório em Itália
na altura. Fez pós-doutoramentos na Universidade Sapienza, em Roma, no Centro Internacional
de Física Teórica, em Trieste, e na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Propôs,
em 1988, com Lee Smolin e Abhay Ashtekar, a teoria da gravidade quântica em
laços, uma alternativa à teoria das cordas, o quadro mais convencional de
unificação de todas as forças. É decerto o fascínio pelo Cosmos que tem levado tantas
pessoas a interessar-se pelos livros de Rovelli baseados em teorias
matematicamente difíceis. Um problema muito discutido nos seus textos de divulgação
é a natureza do tempo: talvez, diz ele, o tempo não exista, não passando de uma
ilusão. Rovelli já ganhou vários prémios, dos quais o mais recente foi o prémio
literário Galileu para divulgação científica pelo seu livro A Realidade Não É
O Que Parece. E apareceu – glória maior! – como um personagem numa história
do rato Mickey. Como não podia deixar de ser, fui ouvi-lo quando visitou
Portugal, dando uma lição sobre o tempo numa conferência da Fundação Francisco Manuel
dos Santos, em 2019.
No seu mais recente livro em
português, Rovelli mostra o seu interesse pela história e filosofia da ciência.
Para ele, Anaximandro (c. 610- c.546 a.C.) foi o iniciador do pensamento racional,
ao arredar o pensamento mitológico. Matemático, astrónomo, geógrafo e filósofo,
viveu em Mileto, na costa ocidental da actual Turquia, tendo sido discípulo de
Tales de Mileto, o fundador da escola jónica. Escreveu Sobre a Natureza,
uma obra que se perdeu, só se conhecendo este fragmento, um tanto enigmático: “Todas
as coisas tem raízes umas nas outras/ e perecem uma nas outras,/ segundo a
necessidade./ Todas elas fazem justiça umas às outras,/ e recompensam-se das injustiças,/
de acordo com a ordem no tempo.” Atribui-se-lhe o primeiro mapa do mundo, a
introdução na Grécia do gnómon (relógio solar) e as primeiras medições das
distâncias interestelares. Anaximandro acreditava que o princípio de tudo era o
ápeiron, uma matéria imortal, infinita e indiferenciada da qual todas as
outras se separam.
Há quem defenda que o início da
racionalidade se deu com Tales, cujo nome está associado a um teorema da
geometria, alegando que ele terá sido o primeiro a explicar um eclipse solar: a
ocultação do Sol pela Lua não era uma brincadeira dos deuses do Olimpo, mas um
fenómeno natural. Existe racionalidade no Cosmos, porque certas causas produzem
certos efeitos. Rovelli prefere dar primazia a Anaximandro, destacando o facto
de este ter sido o primeiro a imaginar a Terra como suspensa no espaço, abandonando
a ideia da terra plana com o céu por cima. Mas. mais do que isso: “Anaximandro
abriu caminho para a física, para a geografia, para o estudo dos fenómenos meteorológicos
e para a biologia. Além destas enormes contribuições, iniciou o processo de repensar
a nossa imagem no mundo: o modo de procura do conhecimento baseado na
revolta contra as ‘certezas’.” Embora bem ciente da relevância para o
pensamento moderno da Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, associada ao
nome de Galileu e à experimentação, Rovelli reclama que as bases da rebelião
contra o pensamento estabelecido remontam à Grécia Antiga. Escreve na
introdução: “O aspecto do pensamento científico que gostaria de salientar nestas
páginas é a sua capacidade crítica rebelde, de reinventar o mundo perpetuamente.”
Mais adiante: “Mas a ausência de certezas, longe de ser a sua fraqueza, constitui,
e constituiu sempre [itálico no original], o segredo da força da
ciência, entendida como pensamento da curiosidade, da revolta e da mudança. As
suas respostas não são credíveis porque são definitivas; elas são credíveis
porque são as melhores do que dispomos num dado momento da história do nosso
saber. É justamente por sabermos que elas não podem ser consideradas definitivas
que continuam a aperfeiçoar-se.”
Li este livro de 178 páginas de um
trago. Nos capítulos I e II o autor descreve como era o mundo no século VI a.C.
e os numerosos feitos de Anaximandro. Destaca nos dois capítulos seguintes os
fenómenos atmosféricos e a flutuação da Terra no espaço. Os capítulos V, ”Entidades
invisíveis e leis naturais”, e VI, “Quando a revolta se torna virtude”, enfatizam
o ponto principal: a retirada de poder aos deuses feita pelo sábio grego. No
capítulo VII, o autor aborda a relação entre ciência e democracia, que resume assim:
“A base cultural do nascimento da ciência é também a base do nascimento da
democracia: a descoberta da eficácia da crítica e do diálogo entre pares.” O centro
filosófico do livro situa-se no capítulo VIII, “O que é a ciência? Pensar
Anaximandro depois de Einstein e Heisenberg”, onde Rovelli expõe a sua visão do
processo científico, enfatizando que a ciência exige questionamento e mudança.
O capítulo IX, “Entre o
relativismo cultural e o pensamento do absoluto”, onde o autor contrasta a visão científica com
a visão pós-moderna, foi o que mais me encantou. Apreciei em especial a crítica
que faz a um artigo de história da ciência sobre as avaliações da distância
entre o Sol e a Terra realizadas por chineses e gregos no século III a.C. No
quadro da cosmologia da terra plana, os chineses achavam que o Sol, muito mais
pequeno do que é, estava muito mais perto da Terra do que de facto está. Por seu
lado, o grego Eratóstenes, considerando um Sol maior e mais distante, conseguiu
medir com grande rigor o raio do nosso planeta. Contudo, o artigo não dizia em
lado nenhum que Eratóstenes estava certo e os chineses errados. Rovelli perguntou
à autora a razão dessa omissão. Ela respondeu que não compreendia a questão,
uma vez que as duas teorias estavam certas nos respectivos quadros epistemológicos.
Mas, para o físico, o acordo de Eratóstenes com a realidade faz toda a
diferença. Porque é que os chineses estavam errados? Segundo ele, o pensamento
científico não nasceu na China, porque aí “o mestre nunca é criticado,
nunca é posto em questão. O pensamento chinês desenvolveu-se através do
enriquecimento e do aprofundamento, não por alguma vez ter posto em causa a
autoridade intelectual.” Foi preciso que ao Império do Meio chegassem os
jesuítas, alguns idos de Itália, para lá se ficar a saber que a Terra era
redonda.
No breve capítulo X, “Podemos nós
compreender o mundo sem os deuses?”, Rovelli aborda o conflito entre ciência e religião.
O autor, que se considera “serenamente ateísta”, escreve: ”A ideia de formular o
problema de compreender o mundo sem os deuses é uma ideia radical do seculo VI a.C.
(…) É uma das raízes mais profundas do mundo moderno. Mas está longe de ser uma
proposta que se impõe a todos: são muitos os nossos contemporâneos, a maioria
deles, sem dúvida, que estão hoje armados para combater a tese central de Anaximandro.”
O autor encerra esse capítulo dizendo: “A questão aberta pela sua proposta
continua a ser colocada e a dividir a nossa civilização.”
Rovelli conclui o livro no capítulo XII com uma fotografia do nosso planeta, tirada pelos astronautas da Apollo 17: não há dúvida de que a Terra, redonda, flutua no espaço, isto é, Anaximandro e Eratóstenes tinham razão.
2 comentários:
A minha teoria, passe a imodéstia (e já estou a lançar uma provocação) sobre a racionalidade e o início da racionalidade, que neurocientistas mapearão no caminho dos sistemas de cognição dos seres vivos até ao sistema de consciência, é que a racionalidade é um acto de consciência acerca de relações entre dois ou mais termos (representações), assumindo, ou não, valores. A maior confusão que existe, no que toca ao discurso sobre a realidade, seja cultural ou meramente natural (física), tem a ver com a ideia de que, por exemplo, o pensamento mitológico não é racional ou não é tão racional como outros pensamentos racionais. A minha teoria é que o pensamento humano, desde o início, é racional e que o racional, além de ser uma aptidão natural dos seres vivos, atingiu as proporções, ou a escala, ou o calibre, que tem no ser humano, pela capacidade neurológica deste em exercer essa racionalidade sobre termos abstractos, ainda que meramente imaginados, ou inferidos, numa teia sem fim. De modo que o pensamento racional não é por ser racional que merece credibilidade, ou que corresponde a factos. O exemplo referido no texto, sobre a explicação dos chineses e a dos gregos, ilustra bem o que acabei de dizer.
Mas temos toda a cultura e civilização para ilustrar esse fenómeno da racionalidade sobre dados falseados, ilusórios, viciados, fictícios, meramente hipotéticos.
O nosso problema não é a racionalidade, mas os termos, ou os dados, sobre os quais ela opera e o modo, mais ou menos condicionado, como opera.
A nossa racionalidade sobre os fenómenos naturais não é mais, nem menos, do que a racionalidade dos primitivos de pensamento mitológico, ou de que os contemporâneos de pensamento teológico-católico, ou astrofísico. Os termos, ou os dados sobre os quais se exerce é que são outros.
Daqui por uns anos, a nossa racionalidade não será considerada pior se alguém descobrir que tudo aquilo em que acreditamos, neste momento, é mero efeito do sistema cognitivo que temos.
Uma característica essencial da ciência popular é a capacidade de caricaturar outras culturas.
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