sexta-feira, 27 de agosto de 2021

MARIA DE LOURDES MODESTO E AS COISAS QUE ELA SABE


Minha recensão ontem no Inevitável (dantes I):

Já falei nesta coluna de dois livros de gastronomia, um da historiadora da alimentação Guida Cândido (A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa, Dom Quixote) e outro da romancista Deana Barroqueiro (História dos Paladares, vol. 1, Prime Books; está quase a sair o vol. 2). Agora é a vez de falar do novo livro da «Diva da gastronomia portuguesa», Maria de Lourdes Modesto (n. Beja, 1930; fez em Junho 91 anos), um nome absolutamente cimeiro da gastronomia nacional. 

A sua carreira iniciou-se em 1958 com um programa de culinária na RTP, cujas emissões tinham começado escassos dois anos antes, que se tornou um dos mais populares programas televisivos de sempre. Hoje está na moda a gastronomia e há concursos de masterchefs, uns importados e outros cópias dos que são importados, mas é tudo gravado e editado quando, na época, Modesto actuava ao vivo (embora não a cores, porque a televisão era a preto e branco). Então quase não se falava de gastronomia portuguesa e, se hoje se fala, é graças a ela, que ajudou a definir a nossa cozinha tradicional.

A história da entrada de Maria de Lourdes Modesto na televisão é muito curiosa. Ela era uma jovem professora de Trabalhos Manuais no Liceu Francês, em Lisboa, quando alguém da RTP reparou no seu desempenho numa peça de Molière. Havia nela uma presença e um desembaraço que mereciam divulgação. E o convite foi logo feito. Acabou por ficar responsável por um programa de culinária, que não sendo teatro tem um lado teatral. Os seus programas apresentavam a cozinha alentejana, pela qual ela naturalmente era uma apaixonada, mas também a cozinha de outras regiões do país (criou um concurso para recolher receitas provenientes de todo o território nacional) e do mundo.

A sua primeira publicação foi a Grande Enciclopédia da Cozinha (Verbo, 1965), que dirigiu. O segundo livro estava associado ao programa televisivo: As Receitas da TV (Verbo, 1967; nova edição: Babel, 2019). E o terceiro foi Receitas Escolhidas (Verbo, 1982; nova edição: Verbo 2013). Mas o seu sucesso mais retumbante, a sua coroa de glória, foi o volume Cozinha Tradicional Portuguesa (Verbo, 1982), com fotografia de Augusto Cabrita e de António Homem Cardoso, e introdução do escritor António Couto Viana, do qual saíram até hoje 25 edições (em 2001 saiu uma tradução em inglês). É o livro de cozinha português mais vendido de sempre!

De acordo com o catálogo da Biblioteca Nacional, Modesto é autora de 20 obras, para além de 15 prefácios e 47 adaptações. Os seus últimos livros são Sabores com Histórias: Alimentos, preceitos e mais de 60 receitas, com ilustrações de João Pedro Cochofel (Oficina do Livro, 2014), Comer e Beber com Eça de Queiroz, com Beatriz Berrini (Alêtheia, 2014) e Gulodices com Menos Açúcar e o Mesmo Prazer, com Maria João Afonso (Babel, 2017). O novo título, O Que Eu Sei. Sabores, Segredos e Receitas (Oficina do Livro), segue um modelo semelhante ao de Sabores com Histórias, incluindo também ilustrações de João Pedro Cochofel. É uma selecção de textos, muito bem escritos, sobre alimentos e pratos em que eles entram, não só da cozinha portuguesa tradicional mas também da cozinha mundial, algumas das quais saíram nas páginas do Diário de Notícias, e que nalguns casos são acompanhados por receitas.

Dá gosto não só ler o livro como tê-lo como objecto de design, não só pela bela capa dura, mas também pela qualidade do papel, pela arte das ilustrações e ainda pela fitinha que nos permite fixar a página à qual queremos voltar (por exemplo, uma receita que queiramos experimentar). As receitas estão escritas com clareza exemplar: cada uma delas parece um algoritmo daqueles que os computadores executam sem engano. Sem ter grande experiência culinária (sei apenas fazer ovos estrelados, salada de atum, frango no forno, etc.), sinto que fiquei com todas as indicações necessárias para fazer alguns pratos, incluindo a misteriosa Chibança de Bacalhau e a secreta Marmelada Branca de Odivelas (a verdadeira, cuja receita foi fornecida por uma conhecedora que não queria que o segredo morresse com ela).

Mas, antes de voltar ao conteúdo do livro, convém complementar o registo biográfico da autora e adensar o encómio aos seus dotes.

Apesar do manifesto interesse pelos doces («um dia não são dias», como diz uma nutricionista que eu conheço), é notória a preocupação de Maria de Lourdes Modesto com a saúde, como mostra o último título da Babel. Mas, se é precisa uma prova adicional, veja-se um outro título seu: À Mesa com o Coração, com Graça Castelo Lopes e prefácio do cardiologista Fernando Pádua (Verbo, 2006).

Modesto é uma pessoa generosa. Começou por apadrinhar, ou melhor, “amadrinhar”, o livro Em Banho Manel (Alia, 1983) de Manuel Luís Goucha (já poucos se lembrarão que o famoso apresentador da TVI começou a carreira como cozinheiro), com um prefácio seu, e continuou, entre outros, com prefácios para um guia de restaurantes de José Salvador, um gastrónomo e crítico de vinhos, e para livros de receitas de José Avilez e Vítor Sobral, dois conhecidos chefs

Para mim o prefácio mais interessante foi, contudo, o que escreveu para um livro de gastronomia molecular de duas professoras universitárias de Química, Margarida Guerreiro e Paulina Mata: A Cozinha é um Laboratório (Fonte da Palavra, 2009).

Além disso, o seu nome está ligado à adaptação de numerosas obras estrangeiras, algumas de iniciação à cozinha e outras de divulgação da cozinha internacional. Destaco A Colher de Pau: O meu primeiro livro de cozinha, de Denise Perret; com ilustrações de Catherine Cambier (Verbo, 1966; reedição em fac-símile: Babel, 2010) e O Mais Belo Livro da Cozinha de Itália, de Lorenza de Medici (Verbo, 1992).

A página da Wikipédia que lhe é dedicada, embora modesta e sem tradução noutras línguas, reúne grandes louvores: o gastrónomo José Quitério (já falecido tal como José Salvador), laureado em 2015 com o Prémio Universidade de Coimbra, disse que ela era “uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo”; Miguel Esteves Cardoso considerou-a em 2013 "Uma das três grandes génios nascidas no século XX”; e o New York Times chamou-lhe, num artigo de 1987, «the Portuguese Julia Child,» invocando a celebrada autora e apresentadora de TV norte-americana.

Voltemos ao novo livro. Que coisas é que Maria de Lourdes Modesto sabe? Pois sabe muitas coisas que eu não sabia e agora, por generosidade dela, fiquei a saber. Na introdução explica sumariamente o conteúdo da obra. Começa assim: «Passa-se a vida a aprender coisas, e aos 90 anos há muitas coisas que eu sei. Coisas que fui sabendo, para usar uma fórmula cara aos alentejanos.» Na secção seguinte («Enquanto é tempo…») faz uma denúncia, destacada na contracapa. Reconhecendo embora o progresso gastronómico no país desde os anos 50, escreve: «Em nome da cozinha portuguesa e da sua defesa vêem-se nalguns grandes restaurantes verdadeiros atentados à nossa memória colectiva. Em seu nome, faz-se o que se faz em todo o mundo, sem o menor sinal do que em gastronomia nos diferencia. Não pensem que têm pela frente a padeira de Aljubarrota da cozinha tradicional, inflexível a qualquer mudança. Apenas se pede que separem as águas - a chamada cozinha de autor não tem memória, é por regra, irrepetível. A tradicional é factor de identificação de uma região, de um grupo, de um país, e quer-se bem copiada.»

Gostei, em particular, de ler a secção “Sabores e sabores da minha infância”, pois, como toda a gente, tenho boas reminiscências dos pratos da minha mãe. A autora gaba o pão alentejano, que está omnipresente nos pratos dessa cozinha, em particular na açorda. Diz: «Ao lembrar os excelentes comeres do Alentejo a primeira coisa que vem à memória é a Açorda» (assim, com maiúscula).

O livro cobre uma variedade de temas. A autora refere a sopa como um prato excepcional (a minha nutricionista concorda): «Não hesitarei em considerar sensato quem disser que a sopa – o caldo mais ou menos espesso que é produto de decocção de certos alimentos, seja carne, legumes ou peixe – é o melhor, o mais eficaz e o mais saudável dos aperitivos.» E, mais adiante: «A sopa foi um passo de gigante na evolução da culinária.» 

Discorre sobre vários alimentos vegetais (alho, feijão verde, tomate, curgete, gengibre, abóbora, etc.), contando histórias sobre eles e fornecendo receitas. Nas fontes de proteínas destaca o peixe, o marisco e os ovos. Não se esquece das saladas, que «tornam apetecível o mais banal dos frangos assados». Dos frutos releva a laranja (lembrando que a laranja doce surgiu na Europa, vinda de África Oriental, graças aos Descobrimentos portugueses). Entre as sobremesas, elogia o arroz-doce, contando que na região de Coimbra a entrega de um prato de arroz-doce com as iniciais dos noivos em canela significa participação de casamento (confesso que adoro arroz-doce e que mo pode dar mesmo não havendo casamento).

Termina falando da gastronomia do Natal, que entre nós é particularmente rica. Não esqueço as rabanadas e filhoses que a minha mãe preparava para a consoada. Mas uma outra saudosa recordação que tenho das festas religiosas era a bola de carne que ela, como boa transmontana, preparava pela Páscoa. Maria de Lourdes Modesto fala, na secção «Bolas e folares transmontanos» da Bola de Carne do Alto Barroso e do Folar de Valpaços. Já pus a fitinha na página da receita do folar pois pode ser que, com alguma ajuda, venha a preparar esse manjar, na esperança de andar para trás no tempo…

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