quinta-feira, 18 de março de 2021

TOMÁS HALÍK E AS IGREJAS VAZIAS


Minha recensão no I de hoje:

Tomás Halík é um padre católico checo, que veio da “Igreja do Silêncio” da antiga Checoslováquia comunista. Converteu-se aos 19 anos sob a influência de leituras de livros de G.K. Chesterton e Graham Green, dois escritores convertidos, e foi ordenado sacerdote na Alemanha de Leste, em 1978, dez anos depois da Primavera de Praga. Ocupa desde 1996 uma cátedra na Universidade Carolíngia de Praga. Tem-se notabilizado como teólogo, filósofo e sociólogo, com numerosos escritos traduzidos em várias línguas.

Halik recebeu o prémio Templeton em 2014 pela sua "contribuição excepcional para a afirmação da dimensão espiritual da vida" (esse prémio já distinguiu desde a canonizada Madre Teresa de Calcutá até ao agnóstico físico teórico brasileiro Marcelo Geiser). E, em 2010, ganhou, com Paciência com Deus, o prémio do melhor livro teológico europeu. É padre na paróquia académica de São Salvador em Praga, ligada à universidade onde ensina, na qual tem organizado várias sessões ecuménicas. Visitou várias universidades como Oxford, Cambridge e Harvard. Também fez uma curta visita em 2016 à Universidade de Coimbra, onde deu uma conferência intitulada “O Cristianismo depois do seu meio-dia” na Capela de São Miguel (na altura, não pude, com grande pena minha, assistir). Em 2018 voltou a Lisboa para lançar a sua autobiografia. É membro desde 1992 do Conselho Pontifício para o Diálogo com os Não Crentes, um dos seus temas de eleição. Recentemente falou-se na hipótese de concorrer a presidente da República Checa, que o próprio descartou.

Tenho todos os seis livros dele em português, publicados pelas Edições Paulinas. Por ordem cronológica de publicação entre nós elenco: Paciência com Deus (2013), que já vai na quinta edição; A Noite do Confessor (2014); O meu Deus é um Deus Ferido (2015); O Abandono de Deus (2016), em colaboração com o beneditino alemão Anselm Grün (escrevi o prefácio dessa obra); Quero que tu Sejas! (2016), com prefácio do Padre José Tolentino de Mendonça, hoje cardeal e bibliotecário do Vaticano; e Diante de Ti, os Meus Caminhos (2018), uma autobiografia espiritual, onde fala da sua conversão num ambiente ateísta, da sua participação na Revolução de Veludo, de 1989, ajudando Václav Havel, e da recente evolução política e social do seu país. Salvaguardadas as devidas distâncias, o livro assemelha-se às Confissões de Santo Agostinho, por misturar experiência pessoal com discussões teológicas e filosóficas (também Santo Agostinho se converteu ao Cristianismo). Acabo de ler o seu sétimo livro, saído há pouco entre nós: O Tempo das Igrejas Vazias, com tradução de Karin Sousa (feita a partir do checo original). Corroboro a impressão que já tinha de que o padre Halík é o teólogo contemporâneo mais original e estimulante.

Halík pensa os problemas do mundo de hoje, designadamente a relação entre crentes e não crentes, e escreve de uma maneira simples, directa e, por vezes, o que não é normal num clérigo, provocadora. Interessam-lhe, para além da fé, temas como a tolerância, os valores éticos, a secularização e a política.

O livro O Tempo das Igrejas Vazias, naturalmente com uma igreja vazia na capa, abre com os versículos do Eclesiastes: “Para tudo há um momento. Há um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu”. E o livro fala do nosso tempo, que é de pandemia. E depois de uma introdução (“O Tempo da Visitação”) apresenta 18 homilias quaresmais e pascais de 2020, que vão da Quarta-feira de Cinzas até ao Domingo de Pentecostes, passando pela Vigília Pascal. Homilia significa uma “lição pedagógica” sobre o Evangelho, que é feita em estilo coloquial e familiar, em contraste com um sermão, que, servindo-se de um estilo retórico, visa uma vasta audiência.

O livro começa com a descrição da chegada do autor a Praga vindo de Boston, indo apressadamente celebrar na igreja de S. Salvador, no imponente edifício jesuítico do Clementinum, na Cidade Velha. Já a visitei, assim como a bela biblioteca barroca situada no mesmo edifício aparentada à Biblioteca Joanina. Quando Halík celebrava essa missa do I Domingo da Quaresma não podia imaginar que, em breve, com a chegada do vírus, a igreja estaria vazia. No III Domingo foi isso mesmo que sucedeu. O livro contém as homilias lidas solitariamente perante a câmara. A Igreja recomendava as transmissões das missas online, mas Halík não o fez, por achar que a presença dos fiéis não pode ser virtual, e emitiu apenas as prédicas. Segundo ele, a presença real de Cristo exigiria a presença real dos crentes. Pronuncia-se, nesse aspecto, contra alguns colegas seus: “O argumento de que assistir à missa na televisão evoca sentimentos piedosos nos espectadores revela uma incompreensão do sentido da liturgia e talvez até do sentido da fé.”

Halík critica também a atitude da Igreja oficial durante a crise: “Enquanto no nosso país, durante a crise da pandemia, as autoridades da Igreja ficaram, em grande parte, em silêncio e os líderes do Estado cometeram uma série de erros, a sociedade civil, ao nível dos municípios e de iniciativas civis e de pequenos grupos de leigos cristãos, comprovou sua vitalidade e eficácia. Da parte da hierarquia não se ouviu uma voz comum dirigida à população, que fosse testemunho da sabedoria pastoral, da responsabilidade e da preocupação com a sociedade no seu todo.”

Na paróquia de São Salvador aceitou-se a privação da Eucaristia como um sacrifício. Que sentido tinha? Era “expressão da dor pela divisão das Igrejas e de anseio de unidade dos cristãos a uma mesa comum”; (…) expressão de solidariedade com muitos cristãos em situações ditas irregulares [leia-se divorciados], (…) e expressão da esperança de que a Igreja (…) amadurecesse para uma maior coragem e generosidade no âmbito da aproximação ecuménica”. O autor interroga-se o “tempo das igrejas vazias não era uma visão profética para o futuro”. Muitas igrejas já estavam, aliás, vazias há algum tempo. Halík escreve: “Será que não se cumpriu a visão do Papa Francisco, na qual Cristo (que segundo as palavras da Escritura bate à nossa porta) bate desta vez no lado de dentro da porta da Igreja porque quer ir para fora? E não deveríamos nós segui-lo para além das fronteiras do nosso entendimento actual da Igreja e do Cristianismo, principalmente até ao mundo dos pobres, necessitados e marginalizados?”

Halík não poupa palavras. Compara a crise actual da Igreja, com os escândalos sexuais, com a crise da venda de indulgências que originou a Reforma Luterana no século XVI. E aponta o dedo tanto aos políticos como ao clero: “Os políticos populistas nos países pós-comunistas gostam de se aproveitar da retórica e dos símbolos do Cristianismo e tentam corromper e domar de várias maneiras a hierarquia da Igreja Católica. Se os representantes da Igreja estabelecerem com eles diferentes tipos de alianças, prejudicam tragicamente a Igreja com essa miopia, pois os portadores de futuro dessas sociedades (…) começam a afastar-se da Igreja.”

Continuo a dar a palavra ao autor: “A secularização não consiste numa crise de certezas religiosas, mas de uma crise geral das certezas dos indivíduos de hoje, certezas religiosas e seculares.” Sobre a crença e a descrença, diz, logo a seguir, que a distinção não é fácil, “pois a ‘fé’ e a ‘dúvida’ estão entrelaçadas de maneira complexa nas atitudes e nas mentes de muitas pessoas de hoje.” Segundo Halík, “entre a fé e o cepticismo pode haver uma valiosa ‘permuta de dons’ ”. E, mais adiante: “A sociedade checa é fortemente ‘desigreijada,’ mas não é ateísta. O maior número de pessoas que não pertencem à Igreja são os “apateístas” (pessoas indiferentes à religião como a imaginam ou como a conheceram) e ainda os ‘buscadores espirituais’, os que creem ‘à sua maneira’ ”.

Regista com gosto que, na pandemia, os pregadores do “castigo divino” primaram pela ausência. Mas nota as parvoíces de alguns tradicionalistas católicos, como um bispo polaco que se recusou a cumprir as orientações sanitárias na sua igreja porque o “Senhor Jesus não pode ser contagioso”. Halík comenta que os tradicionalistas são por vezes os mais ignorantes da tradição. Por falar em contágio, o padre Halík apanhou COVID-19, mas conseguiu ultrapassar a doença.

No V Domingo da Quaresma Halík fala sobre fé e ciência, um ponto que me toca particularmente: “As supostas lutas entre a ciência e a fé eram, na maioria das vezes, lutas de uma má teologia (fundamentalismo) com o entendimento primitivo da ciência (positivismo e cientismo). Uma fé adulta nunca precisou de lutar contra a razão e a ciência. Pelo contrário, pode ser o seu valioso aliado. A fé tinha e tem um outro verdadeiro inimigo: superstição, ingenuidade, irracionalidade e, acima de tudo, todos os tipos de idolatria.”

Já no V Domingo de Páscoa cita o jesuíta Karl Rahner: “Deus como o imagina 60 ou 80 por cento das pessoas, felizmente não existe. E acrescenta: “Deveríamos estar gratos aos críticos ateus da religião, como Feuerbach, Nietzsche, Marx ou Freud, por mostrarem que as ideias patológicas de Deus são meras projecções humanas.”

Na última homilia Halík deixa claro que o “mundo não padece apenas do novo coronavírus”: acrescem o “populismo, o nacionalismo, o fundamentalismo religioso, as fake news, as teorias de conspiração e o assombro apocalíptico de futuro.” E nós “devemos aprender a viver num mundo assim.” Aprendemos melhor ouvindo vozes como a dele.

5 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

O Carlos Fiolhais diz-se ateu, mas não permite que isso o incompatibilize com os crentes. E que sentido faria, por exemplo, humilharmos a nossa mãe porque se sente feliz a rezar o terço pela nossa saúde? Ou pela paz do mundo? Ou pelo perdão dos nossos pecados? Ou pela nossa ignorância?
Os ateus não têm respostas, ou, pelo menos, melhores respostas do que os crentes para as questões a que eles respondem com a fé.
Os crentes colocam Deus no ponto de partida e os ateus não o colocam, em ponto nenhum, nem no ponto de chegada. Mas estão todos perante o desconhecido. Desconhecido, nesta matéria, significa mesmo que ninguém sabe, se bem que os crentes afirmem um tipo de conhecimento metafórico, adjectivo e analógico.
Não é como alguém dizer que não conhece a Condessa de Ségur, confessando a sua ignorância.
O problema dos crentes é que os ateus não têm razões para crer no que eles acreditam e não são capazes de lhas darem. Mas os ateus têm razões, muitas, aliás, para crerem que os crentes são pessoas de boa fé.
O problema dos ateus, no entanto, é que há falsos crentes e esses não são pessoas de boa fé.
Os crentes, por sua vez, têm muitas razões para crerem que os ateus não se dizem ateus só para os importunar e por à prova a sua fé, ou seja, os crentes têm razões para pensar que os ateus o são de boa fé.
Agora, a questão é a seguinte: faz sentido que haja um ateu de má fé?

Rui Baptista disse...

Salvo algum lapso de autoria, julgo que foi Santo Agostinho que disse: Para os crentes nenhuma explicação é necessária, para os não crentes nenhuma explicaçã0 é possível. Desta forma, na crença ou descrença deve haver sinceridade e honestidade que não ande a reboque de modismos ou do politicamente correcto.

Referências pouco claras disse...

O que é um ateu?
Um ateu só é ateu se Deus existir...

Do Vazio disse...

“Deus como o imagina 60 ou 80 por cento das pessoas, felizmente não existe." Portanto, 60 ou 80 por cento das pessoas andam enganadas. Os líderes religiosos deveriam, então, explicar exatamente como Deus é, sem a interferência da imaginação. Como é?
Será que depois da imaginativa explicação, os 60 ou 80 por cento dos criativos se manteriam nas Igrejas?
Explicar demasiado pode ser perigoso. A dissecação infundada de uma teoria que se quer mágica pode dar cabo do encantamento que prende os pombos ao céu.

Carlos Ricardo Soares disse...

Diria que um herege, e não um ateu, só seria herege se, entre outros pressupostos, o Deus o julgasse como tal. Ou seja, é mais razoável considerar herege quem acusa alguém de o ser e, por maioria de razão, quem se arroga poderes para condenar.

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