segunda-feira, 1 de março de 2021

2021

 Com a devida vénia, transcrevemos o artigo do psiquiatra José Luís Pio de Abreu nas Beiras de hoje:

Entrámos em 2021. Por muito que nos tenha sido penoso, guardaremos poucas memórias dos dois meses que passaram. Não festejámos o ano e rapidamente nos esqueceremos. Impedidos de agir, fi ámos em casa a pensar nas radicais alterações que o novo ano e o século nos trarão. Mas, na verdade, é a incerteza que nos domina. Sabemos que existiram epidemias e guerras bem piores, geralmente coincidentes, mas a nossa tendência a esquecer o mal é irrevogável, e ainda bem. Temos memória, sim, dos loucos anos 20, da explosão cultural do pós guerra e da celebração do fim das ditaduras europeias. À escuridão da morte, sempre se sobrepôs a vida bruxuleante. 

Desta vez, porém, tudo se acelera. Contámos muitos mortos, mas não comparáveis às catástrofes que existiram no passado. As armas atómicas foram contidas, as guerras de pólvora relegadas para localizações precisas, e a grande guerra a que assistimos é feita com as armas da informação. Como geralmente acontece, a ela se juntou uma pandemia anunciada. E em apenas num ano, a pandemia eclipsou as armas mas foi perpassada pela guerra da informação. 

O desespero das guerras do Século XX fez catapultar os progressos tecnológicos e emergir a aeronáutica, agora em declínio. Também chegámos então ao fundo do átomo. Hoje, porém, é o progresso da informática e da biologia que, em tempo real, acompanha a pandemia. As ciências que baseiam a Medicina fazem um caminho aberto que todos acompanham mas cuja metodologia de discussão, verificação e nova discussão, poucos entendem. Mas ela está aí, num estranho casamento com a economia e política, por vezes com laivos aventureiros, como sempre aconteceu. 

A grande diferença das antigas guerras, é que esta é global. Conhecem-se os vencedores, e dir-se-ia que eles são os de sempre: os que já acumulavam maior riqueza. Agora, porém, são muito menos e estão em lugar nenhum (embora nos apareçam no YouTube). Também parecem perenes porque se disfarçam em Fundações. Mas a sua vitória é provisória. Sabia-se antes que o problema dos ricos era serem invadidos pelos pobres, por muito muralhados que estivessem. Hoje, eles também sabem que a sua sobrevivência depende da sobrevivência da humanidade e do eco-sistema. O facto de serem invadidos não fica ao sabor da violência de humanos, fi ca sim ao sabor de uma sequência de RNA que nem se pode considerar um ser vivo. Mas atravessa todas as fronteiras. 

Hoje sabemos que a sobrevivência de cada um depende da sobrevivência dos outros. Mais uma vez, sempre foi assim, por muito iludidos que estivéssemos com o mito de Robinson Crusoé ou com o individualismo competitivo, de facto aplicável a essa abstracção jurídica que dá pelo nome de “pessoa colectiva”, um eufemismo para designar as empresas mercantis. Portanto, nada de novo. O ano que passámos só serviu para dar visibilidade a tudo aquilo que já sabíamos. 

O ano de 2021 será o que fizermos dele. A guerra da informação pode levar-nos a vários caminhos em conflito. Mas a natureza das coisas vai ter um peso decisivo para nos encaminhar no sentido da solidariedade.

José Luís Pio de Abreu

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