domingo, 28 de março de 2021

QUEREMOS RECUPERAR AS APRENDIZAGENS PARA OS "JOVENS GANHAREM DINHEIRO"


Título de notícia do jornal Expresso, assinada por Tiago Miranda
Tenho acompanhado, tanto quanto o dever profissional me obriga e a paciência me permite, a mobilização da "sociedade portuguesa" para ajudar as crianças e os jovens apanhados pelo confinamento provocado pela Covid-19 a superar as aprendizagens que ficaram para trás. Tive hoje a paciência de ler muito do que se tem escrito, resultando daí o seguinte resumo e reflexão. 

Para fazer o resumo uso ideias e palavras que constam nas várias notícias e entrevistas que li. Não são, portanto, ideias e palavras minhas.

Sobressai uma ideia forte: é preciso superar, acelerar, reforçar, consolidar as aprendizagens que deviam ter sido feitas neste último ano.

As vozes que mais se ouvem são de fundações, associações, sociedades científicas, federações, instituições de ensino superior, autarquias... e de muitas empresas, nacionais e internacionais, algumas apresentadas como ONG. O Ministério da Educação (através da Direcção-Geral da Educação) tem sido solicitado a autorizar, a participar, a supervisionar e, em geral, tem-se mostrado reconhecido e tem colaborado. É agora solicitado a subsidiar, veremos qual é a sua resposta. De notar que estas diversas entidades não trabalham isoladamente: como dizem, "coordenam esforços". 

O núcleo mais comum nessa coordenação de esforços é formado por uma tríade: 1) associação/ções e/ou sociedades (profissionais e/ou científicas) e/ou escolas superiores/universidades, que dão o aval científico e prático; 2) fundação/ões e/ou empresa/s, que dão o suporte financeiro e/ou logístico; 3) e Ministério da Educação/Direcção-Geral da Educação, que dá o enquadramento e legitima.

Os envolvidos são designados, ou auto-designam-se, por mentores, colaboradores, dinamizadores. Trata-se de políticos, investigadores, dirigentes, gestores, mas também professores e muitos jovens com formação indiferenciada.

Criam-se e implementam-se mentorias, tutorias, programas e planos suplementares semanais, de férias, de verão... para recuperar sobretudo no Português e a Matemática. Mas a avaliação, individual (diagnóstica, formativa e classificativa) e de mais largo espectro, também está prevista.

Independentemente da designação atribuída à intervenção, o que importa é que seja certeira, incluindo medidas imediatas e eficazes, "baseadas em evidências", porque, afirma-se, "não há alternativa", sobretudo, para ajudar os mais desfavorecidos, alegam, em coro, as entidades e pessoas que se têm pronunciado em público, e que se declaram movidas por fins exclusivamente altruístas. 

Poderíamos pensar (por certo, muitos pensam): excelente! 
Excelente porque temos um país inteiro a querer que os alunos aprendam na escola, presencialmente!

Introduzo aqui, de modo muito breve, a minha reflexão. Nessa reflexão:
Parto de um princípio: é à escola e aos seus professores que deve ser confiada a tarefa (profissional) de ensinar (sim, ensinar!) para que os alunos possam aprender, no caso, a partir do ponto em que estão. Se os professores não têm tempo, que sejam libertados de tarefas que são marginais ao ensino; se não têm conhecimentos, que sejam apoiados por académicos capazes; se faltam professores que se permita que aqueles que estão em formação entrem no ensino, mas devidamente preparados;

E coloco uma questão: para que quer a sociedade, com tanto empenho, recuperar (certas) aprendizagens suspensas? Implícita ou explicitamente, o que vejo como pano de fundo nos discursos beneficentes é a economia (ou, melhor, a lógica financeira neoliberal, arredada de valores fundamentais como a justiça distributiva). Quer-se preparar os alunos para... o mercado de trabalho! Não se pode interromper a produção de "capital humano"!
Ora, juntando as duas pontas - princípio e questão - para obter esse produto, não são precisas escolas, nem professores, nem formadores de professores verdadeiramente empenhados em educar. Mais, essas escolas, esses professores e esses formadores serão um verdadeiro empecilho a todas as "boas vontades" emergentes.

E se dúvidas houvesse, bastaria ver a proposta Aprendizagens perdidas devido à pandemia: Uma proposta de recuperação, recentemente entregue ao Ministério da Educação por um grupo de dinâmicos economistas.

Disse um dos elementos desse grupo, ultimamente com protagonismo mediático, em declarações ao jornal Expresso: “Sabemos que as perdas de aprendizagem têm impacto na capacidade dos jovens em ganharem dinheiro". 

Explicou que a base da proposta que co-assinou decorre dos cálculos apresentados pela OCDE (relembro o significado das siglas: "Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) no recente relatório com o título Schooling disrupted, schooling rethought: How the Covid-19 pandemic is changing education.

Explica, ainda, que será o Estado a pagar (apenas 422 euros por aluno, que a multiplicar por muitos milhares de alunos... será... é fazer as contas!)

E, claro, não falta, o toque de manipulação das consciências, sensíveis aos ganhos financeiros (eventualmente) proporcionados pela educação. Cito o Expresso e, assim, termino.
“Em educação, sabemos que os retornos [do investimento] são mais elevados quanto mais desfavorecida é a população a ser intervencionada”, diz. Neste caso, “os ganhos de rendimento futuro, mesmo tendo em conta as estimativas mais conservadoras, são substancialmente superiores ao custo da intervenção por aluno”, garante. Na prática, isto significa que cada euro gasto neste programa de recuperação de aprendizagens pode significar um retorno de três a dez euros ao longo dos próximos 40 anos."

4 comentários:

Rui Baptista disse...

Saúdo, como um dever de consciência docente, a luta que a Professor Helena Damião tem desenvolvido contra arcas-encoiradas daqueles, com a melhor ou menos boa das intenções, disparam tiros de pólvora seca julgando que, desta forma, bem ou mal intencionada, atingem o cerne dos complexos problemas da Educação, em época do confinamento, em que eles atingem o seu auge. Não resolvem, não! Quando muito satisfazem a sua pequena ou grande vaidade.

Rui Baptista disse...

NA 2.º linha do meu comentário, onde escrevi "daqueles disparam", corrijo daqueles que disparam!

Anónimo disse...

A narrativa da "Recuperação das Aprendizagens", que a Doutora Susana Peralta vai buscar ao eduquês mais mal amanhado do Ministério da educação, é uma farsa. Eu, como professor do ensino secundário, com formação universitária, Licenciado e Mestre de Faculdade de Ciências, que sou, proponho-me, nas quatro ou cinco linhas seguintes, arrasar a base de sustentação etérea em que Peralta pretende apoiar a sua ciência educativa estranha à experiência em ensino secundário.
Em Portugal, nos últimos vinte ou trinta anos, a filosofia seguida pelo Ministério da Educação tem um grande princípio orientador:
Temos de elevar a formação profissional e académica de toda a população portuguesa em todos os níveis, sejam eles básicos, secundários, politécnicos ou universitários, para que as comparações, que se fazem lá fora, com os nossos indicadores educativos estatísticos, deixem de nos envergonhar. Ora, isto não tem nada a ver com aprendizagens nem recuperações. Bem pelo contrário, o que se verifica na prática, ao longo dos últimos anos, são ordens, mais ou menos veladas, das autoridades governamentais, que vão sempre no sentido de fazer diminuir a quantidade e qualidade das matérias lecionadas pelos professores. Atualmente, em pleno estádio de aprendizagens "essenciais" (as mínimas das mínimas), os professores, quais funcionários de segunda ou terceira linha no processo educativo, veem-se obrigados pela tutela a preencher grelhas e mais grelhas de documentos e burocracias que respaldam as classificações que atribuem a cada um dos seus cento e tal alunos, ou mais, em critérios científicos, e por escrito...
Se o aluno for menos dotado, ou simplesmente preguiçoso, o professor é castigado com o preenchimento de mais papelada, até que o sucesso inevitável, também de cada um destes casos especiais, fique atestado num diploma tão bonito como os demais!
Portanto, Doutora Peralta, os seus belos raciocínios estão feridos de falácia.
No atual sistema, não precisamos de recuperação de aprendizagens; se os alunos da covid-19 forem sujeitos a critérios de avaliação ainda mais permissivos, e dado que o "essencial" das suas aprendizagens já pouco vai além do escrever, ler e contar, só perderão menos tempo para chegarem, simultânea e facilmente, ao sucesso educativo e ao dinheiro!

Outro professor disse...

Se os professores, que se formaram para tal e têm experiência bem sedimentada, não servem para 'recuperar os alunos dos atrasos devidos a um ensino 'não presencial', há duas perguntas que se podem colocar: porque é que esse ensino passa a ser importante se o governo der subsídios a associações, empresas, etc., que são as mesmas que desdizem do valor do ensino escolar? Propor fazer uma coisa que se diz não ser eficaz ou que nem deve ser feita é algo estranho, no mínimo. Mas há outra pergunta ainda: se os professores, sujeitos colocação por concurso nacional não servem, quem garante que uma empresa, associação, ONG, ou algo do género, tem melhores profissionais para instruir -já não digo educar-?
Há muito 'empreendedorismo' de empresas privadas para tentar ir buscar dinheiro público para uma tarefa que deve ser da responsabilidade pública.

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