domingo, 1 de março de 2020

"É impossível ensinar nestas condições. Impossível."

Um texto saído hoje no jornal online Observador com o título Um dia na vida de um professorassinado por uma professora portuguesa, Cristina Miranda, fez-nos lembrar um documentário realizado em Inglaterra, na zona de Londres, e apresentado em 2005 com o título Caos nas salas de aulas. A descrição do contexto social e escolar é a mesma, assim como os problemas e as dificuldades de ensino. Não se aprende com o que já se sabe, nem se muda nada em prol dos alunos: da sua aprendizagem e da sua formação como pessoas. 

A questão é saber até quando, até que ponto, políticos, sociedade, sindicatos, académicos, pais, directores... e, mesmo, professores, serão capazes de manter este estado de não-educação que chega à demissão ostensiva da responsabilidade de educar; até quando, até que ponto, a sobrevivência do que resta dos sistemas de ensino públicos fica nas mãos de alguns, poucos, que... como se compreende, pouco ou nada podem fazer de substancial e que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por desistir...

Compreende-se melhor o que dizemos se se lerem alguns extractos do mencionado texto.

Maria Helena Damião e Isaltina Martins

Depois da minha saída em 1994 - por já naquele tempo achar que esta profissão em que se anda de mochila às costas não oferecia estabilidade suficiente para poder organizar a minha vida –, nunca mais tive sequer vontade de retomar a carreira. A cada ano, as notícias sobre professores só me davam razão. Porém, acabei por aceitar substituir uma colega que saíra e não havia docente para suprir a vaga. Já lá vão 3 meses e ainda estou estupefacta com o estado a que chegaram as escolas públicas. 
É preciso estar dentro do problema para entender o problema. Ninguém de fora, por muito que tente, consegue sequer vislumbrar o real estado da educação pública em Portugal. Ninguém. Mesmo contado, fica muito aquém. Mas vou tentar. 
As escolas públicas parecem manicómios. Não, não estou a ironizar. As crianças têm mesmo imensos problemas de toda a ordem. E profundos. É perturbador. Numa sala de aula, mesmo na presença do professor, temos meninos que berram em vez de falar; que correm e saltam por cima das mesas; que choram por tudo e por nada; que atacam outros colegas com agressividade; que fazem bullying uns aos outros; que têm necessidades já diagnosticadas de acompanhamento especial. Como é que se pode ensinar com qualidade os meninos que chegam assim e estão todos reunidos numa turma? 
É muito fácil culpar os professores quando não se sabe com que batalhas se confrontam todos os dias. É dos desafios mais difíceis que já vi. E só agora percebo por que razão os meninos vêm da primária a saber pouco: é impossível ensinar nestas condições. Impossível. 
Numa turma, enquanto estavam a fazer um trabalho de grupo, uma menina, a líder da turma, começa de repente um jogo: “quem gosta do professor levanta o braço!”. Toda a turma levanta o braço (...). Interrompi abruptamente a “brincadeira”, ainda tonta com o que acabara de ouvir. Escusado será dizer que a partir dali a aula foi (...) advertência e proibição absoluta destes comportamentos nas minhas aulas (...). Numa aula do 1.º ano explicava uma actividade que íamos desenvolver e, enquanto formávamos um círculo, dou conta que um menino e uma menina estavam de boca aberta e a tocarem-se com a língua, mesmo à minha frente. Quando os questionei sobre o que era aquilo, não responderam. Minutos depois voltaram ao mesmo e de novo tive de os separar (...). Noutra ocasião, por um motivo fútil, começou uma batalha campal com um teor de agressividade que não se consegue imaginar em tão tenra idade. Uma violência tal, com expressões de fúria, que me obrigaram a separar os agressores exigindo um pedido imediato de desculpas, para passados poucos minutos voltarem ao mesmo. Ontem as meninas divertiam-se com gritos estridentes e contínuos, de tal ordem que a funcionária (a única àquela hora) ao ver-me chegar disse num tom de desespero e cansaço: “isto hoje não se aguenta”. 
É notório que os problemas vêm de casa. Sem qualquer sombra de dúvida. São meninos cuja maioria não sabe ter limites, não sabe respeitar colegas, não sabe obedecer, não sabe falar com educação, não sabe estar, não aceita ser contrariado e não sabe ouvir. Na origem disto, uma falha colossal de transmissão de valores, de afectos e de atenção (...) Porque as psicologias modernas ensinaram a anular a autoridade dos pais e dos professores, com pedagogias que transformam os seres humanos em pequenos ditadores (...). 
Muitos dirão que é ao professor que cabe impor respeito na sala de aula. Sim, é verdade, mas… quem se atreve a ser mais duro com estas “pobres criaturas”, para depois ser sovado pelos pais (...) ser literalmente abandonado pela Direcção da escola e até pelo próprio Ministério da Educação se houver algum problema? Ninguém. 
Por isso, quando chego vejo rostos envelhecidos e sem alegria, como de quem vai cumprir pena, a deambularem pela escola. Dizem que são docentes. A mim parecem-me penitenciários. 
Já pensei desistir e dei por mim a perguntar-me tantas vezes o que estava ali a fazer. É impossível seguir o programa. Todas as aulas são interrompidas mais de uma vez para impor ordem, separar alunos que se envolvem em lutas, consolar outros que foram vítimas de agressões, dar atenção a outros que se sentem perdidos ali. Mas como não sou de desistir dos desafios, assumi uma missão diferente: mudar estas crianças até ao final do ano, tornando-as melhores seres humanos. Será que consigo? Vamos ver.

2 comentários:

Anónimo disse...

"É impossível ensinar nestas condições. Impossível."

A melhor maneira de lutar contra a violência e indisciplina em meio escolar não é deitando mais dinheiro para cima do problema. A massificação do acesso às profissões de professor do ensino básico e secundário e de educador de infância, nas últimas décadas, levou praticamente à falência o Estado Português, assoberbado com os avultados e sempre crescentes recursos financeiros que vinham sendo alocados no pagamento de salários, sem que tal hercúleo esforço se traduzisse em melhorias visíveis na educação dos utentes do sistema de ensino.
Para acabar com a violência e a indisciplina residuais que, a céu aberto, inquinam o ambiente das nossas escolas, nada como uma burocratização radical dos métodos de ensino e avaliação. Por exemplo, com grelhas de avaliação excel, que permitem quantificar cientificamente tudo, desde as classificações dos testes e das “questões de aula”, até aos comportamentos e atitudes mais aberrantes de cada um dos alunos, o professor disporia de uma escudo protetor que o colocaria ao abrigo das invectivas mais descabeladas de educandos e encarregados de educação que, percecionando que atualmente na escola indisciplinada já pouco ou nada se ensina, mas ainda se passam diplomas de acesso ao ensino superior, só sabem exigir altas notas, mas então, o professor poderá defender-se colocando-lhes à frente dos olhos as cruzinhas e quadradinhos da grelha rigorosa e indestrutível! Outra medida eficiente para acabar com a indisciplina nas escolas básicas e secundárias é conceber e levar à prática horários sem componente letiva para professores primários e educadores de infância, mais idosos ou cansados de lecionar! A monodocência é um martírio!
A polidocência é fácil!

dúvida disse...

O post a azul está a referir-se a alunos ou a professores?

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