Mais um artigo de Eugénio Lisboa, saído no "J.L.", que ora se transcreve, com muito agrado, aqui no DRN":
O cinquentenário da morte de António Sérgio não tem sido assinalado com a forma e a dimensão que esta grande figura indubitavelmente merece. Um artigo aqui ou ali e pouco mais. A universidade tem-lhe decididamente voltado as costas: colóquios ou uma edição cuidada da sua obra completa – não há qualquer indício disso.
E, no entanto, António Sérgio é um dos nossos maiores ensaístas, se não o maior. Problematizador exímio, definia assim o ensaio: “… o ensaio, com efeito, é a mais nítida forma de ver a criação ideológica; do exercício real, efectivo, de uma inteligência viva que indaga. Evoca a pesquisa, o tenteio, o ímpeto descobridor, o progresso.
Um «tratado» pode limitar-se à mera organização do já feito, ou a uma obra de carácter primacialmente erudito, ou ainda à aplicação a casos particulares definidos de uma teoria genérica já previamente admitida; pelo contrário, o ensaio promete originalidade, agilidade, finura; o esto juvenil, desportista; o duvidar metódico cartesiano, que está sempre aberto à problemática.”
Inquiridor incorrigível, intemerato experimentador de hipóteses, Sérgio deixou-nos um acervo de obras ensaísticas que fecundou, deixando marcas profundas, mais de uma geração – mesmo que alguns discípulos o hajam depois traído, trocando o duvidar metódico pelos confortos de uma ortodoxia compacta. Mas, apesar da sedução do seu caminhar indagador, a verdade é que, após a sua morte, um injusto esquecimento tem caído sobre o homem e a obra. E nem o pretexto do cinquentenário da sua morte contribuiu para alterar, de modo substancial, esta situação.
Eis, porém, que chegou ao meu conhecimento que se estava a preparar, para sair em data não muito distante, uma volumosa e sumarenta fotobiografia do grande ensaísta, da responsabilidade de Alfredo Campos Matos. O qual acaba, aliás, de dar à luz uma terceira edição, muito aumentada, do seu Diálogo com António Sérgio. Uma fotobiografia será sempre uma muito útil revisita à obra, às ideias e ao mundo do autor dos Ensaios, além de constituir um permanente instrumento de consulta. E talvez seja uma boa maneira de acender o interesse de novos leitores e reacender o esmorecido interesse de outros. Resolvi, pois, fazer um certo número de perguntas ao autor da futura próxima fotobiografia.
– Porquê trabalhar agora numa fotobiografia de António Sérgio?
Vivemos hoje numa época de predomínio da imagem, e este género literário permite transmitir, com mais facilidade, os dados biográficos fundamentais e o pensamento de um autor que é, decerto, o nosso maior escritor de ideias. Como o meu Amigo salienta no seu prólogo, Sérgio continua muito
esquecido, pelo menos do grande público, a quem ele se quis dirigir. Digamos que se trata de um género aliciante, capaz de atingir um mais vasto número de leitores. Eça de Queiroz, António Nobre, Pessoa, Torga, Vergílio Ferreira e outros mais, eis nomes de fotobiografados. António Sérgio carece de uma fotobiografia.
– Uma fotobiografia exige uma minuciosa recolha de materiais, um enorme empenhamento e um profundo conhecimento do autor escolhido…
De acordo. Tal como acontece com Eça de Queiroz, vem da juventude o meu convívio com o autor dos Ensaios. Tenho, de há muito, tudo o que publicou e a maior parte do que sobre ele se escreveu, inclusivamente, em periódicos. Acresce que editei uma enorme antologia dos seus textos, em recente reedição aumentada e definitiva, Diálogo com António Sérgio. E, em 1983, publiquei uma desenvolvida Bibliografia, na Revista da História das Ideias, de Coimbra. Além disso, dispus do maior espólio deste autor, o do Arquivo Família de Fernando Rau. Servi-me também do arquivo do grande sergista Jacinto Baptista; do vasto acervo da Casa de António Sérgio, através de Sonia Queiroga, e do material inédito reunido por vários outros amigos e bibliófilos.
– Suponho que um grande motivo de interesse deste trabalho é o capítulo que contém os testemunhos sobre António Sérgio…
Assim acontece de facto. Trata-se de uma extensa e importante secção que implica verdadeiros ensaios, uns já publicados e completamente esquecidos, da autoria de eminentes sergistas, outros agora escritos propositadamente para inserção na fotobiografia. Muitos deles contêm matéria de altíssimo interesse para a dilucidação do pensamento filosófico, nada fácil, diga-se de passagem, do autor dos Ensaios. Capítulo não menos importante é o do levantamento de todos os autores com quem Sérgio polemicou, alguns deles que hoje já ninguém conhece.
– Teremos então novidades com interesse?
Certamente. No domínio biográfico da imagem, consegui um feito único, graças à ajuda da já referida Dra. Sónia Queiroga que, através de um descendente de Sérgio, me conseguiu a fotografia de seus pais na Índia, cerca de 1880, poucos anos antes do seu nascimento, entre altos dignitários brâmanes, foto muito bela e muito rara, apenas conhecida dos seus descendentes. Neste trabalho apresento muita matéria de reflexão no domínio ensaístico, que constitui preciosa ajuda para uma futura Biografia, dado que exige grande cultura filosófica e, mesmo, científica. Um outro capítulo com interesse é o do levantamento de todas as numerosas epígrafes da sua obra, o que permite tirar certas conclusões… Gostaria de salientar que me tenho esforçado por dar uma ideia alargada da atmosfera opressiva da ditadura salazarista, “tempos para sempre passados, memória quase perdida”, relatando as prisões, os exílios de Sérgio, as proibições das suas obras, publicando na íntegra, por exemplo, a carta de Sérgio ao Cardeal Cerejeira e a resposta deste, e a carta do bispo do Porto a Salazar, etc.
– Quando podemos contar com a publicação da fotobiografia?
Logo que entregue o trabalho a Edições 70, para o final do ano. Propus-lhes, desde o início, a sua edição, mas devo dizer que não tenho garantia a 100%...
– Algum outro projecto sergiano ou queirosiano?
Como é evidente, o Eça é uma constante sempre presente na minha vida, tanto assim que vou preenchendo um enorme dossier, com artigos meus e de outros, destinados ao prolongamento do Dicionário de Eça de Queiroz, que darei por terminado no próximo ano. Entretanto, tenho quase pronta a recolha de um livro de ensaios intitulado Comentários, título expressivo sugerido por um clássico bem conhecido da autoria de Júlio César. Além do mais, trabalho também, nos intervalos, na reedição da Bibliografia de Sérgio, trabalho ciclópico e minucioso que implica milhares de novas entradas. Ninguém pode imaginar a quantidade de estudos, teses e artigos que constantemente aparecem sobre o autor dos Ensaios, o que nos leva a afirmar que, entre o público erudito, Sérgio permanece vivo!... Aqui tem o meu Amigo, apetecendo-me concluir com uma citação expressiva, que Sérgio algumas vezes usou: “So runs my dream” (Tennyson)
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