sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

MINHA ENTREVISTA À "CASA DO JOÃO"


Dei uma entrevista ao escritor João Ribeiro, director da revista "A Casa do João", que acaba por ser publicada. Republico-a aqui, depurada de pequenas gralhas:

João Ribeiro - É um cientista divulgador e comunicador de ciência. Fá-lo por dever profissional ou (também) por outra razão?

Carlos Fiolhais - Por dever pessoal, mais do que profissional. Os cientistas não têm a obrigação imperiosa de serem comunicadores de ciência. Se fizerem ciência bem feita, já cumprirão a sua missão. Alguns não terão sequer habilidade para falarem ou escreverem de um modo acessível.  Mas a ciência é de todos e para todos: para que o seja basta que alguns cientistas, em colaboração com outros intermediários (como, por exemplo, jornalistas), se encarreguem de traduzir as descobertas da ciência. Mais do que os novos conhecimentos, importa, na minha opinião,  transmitir o método da ciência, o modo como se chega ao conhecimento. Graças a esse método, a ciência vai sempre produzindo conhecimentos novos, isto é,  a ciência deve ser considerada mais um processo do que um produto. Eu senti dentro de mim a vocação para a comunicação de ciência após o doutoramento, feito na Alemanha em 1982 (talvez tenha sido antes, mas não tinha tempo!). O início dos anos 80 foi a época em que apareceu a série de TV “Cosmos,” de Carl Sagan, cujo guião foi logo traduzido em português pela Gradiva (uma editora então criada que se focou na cultura científica). Publicou  também as edições em português de outros grandes autores de ciência como Richard Feynman (eu traduzi dele "O que é uma Lei Física"), Paul Davies, Heinz Pagels,  Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, Ilya Prigogine, etc. Tiro o meu chapéu ao editor Guilherme Valente, que soube romper com uma velha cultura portuguesa.

Foi nessa altura que senti uma voz interior que me chamava para a divulgação de ciência. Colaborei com a  Gradiva primeiro como tradutor e consultor editorial, depois como autor e a partir de certa altura como director de colecção “Ciência Aberta”.  De onde veio essa  chamada? É difícil olhar para o passado, mas julgo que foi porque eu próprio entrei na ciência pela porta dos livros que li na minha juventude, entre os quais os livros de divulgação científica de Rómulo de Carvalho, o professor de Física e Química que escrevia poesia sob o nome de António Gedeão. Diziam-me, nos meus anos juvenis, que eu tinha jeito para a comunicação: escrevi e desenhei os jornais do meu liceu, o D. João III,  e da Faculdade de Ciências e Tecnologias  da Universidade de Coimbra. Mais tarde descobri os jornais nacionais, a rádio e televisão. E também as exposições, (ajudei no planeamento da exposição do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra no Laboratório Chimico). Tentei, com sítios da Internet e um blogue (“De Rerum Natura”), a divulgação na World Wide Web, a cujo nascimento assisti. E,  desde há onze anos, dirijo o Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que começou por ser só  uma biblioteca, passou também a ser um sítio de palestras e hoje é também uma escola, uma oficina e um espaço de exposições, Gosto de experimentar as várias possibilidades de comunicar ciência e acho que as temos de usar a todas.

JR- A ciência em geral e a física em particular são mesmo divertidas ou o adjetivo é  marketing?

 CF- Reconheço que há um pouco de marketing no título "Física Divertida", que parece paradoxal, mas talvez por isso atraiu na  época (anos 90) um público enorme. Continua hoje a atrair. A comunicação tem de se servir de uns truques de marketing: os títulos servem precisamente para chamar a atenção do leitor. Mas, de facto, também penso que a ciência em geral, e a física em particular, é muito mais divertida do que geralmente se pensa. É um grande prazer intelectual quando se percebe que a ciência é uma aventura humana, resultado do esforço continuado de muitos seres humanos (infelizmente, muito mais homens  do que mulheres) ao longo da história. Em vez de ser algo escrito de uma vez por todas na pedra, é uma escrita permanente,  podendo ser reconhecidas nessa escrita todas as marcas do humano: a curiosidade, a inquietação, a paixão, o medo, o desafio, a rivalidade, etc. O livro "Física Divertida” conta histórias de descoberta da Física, a começar pela lendária história do Arquimedes, que terá saído da banheira para correr nu pelas ruas da cidade de Siracusa. Um aspecto essencial da comunicação da ciência é mostrar que a ciência é uma actividade humana. É o ser humano que arranca à Natureza o conhecimento, um conhecimento que é sempre passível de revisão, uma vez que a ciência continua.

JR. Como despertar nas crianças o que designou de “curiosidade apaixonada"? Ou não é preciso?

CF- A expressão  “Curiosidade apaixonada" é de Einstein. Quando lhe perguntaram qual era o seu talento especial, ele respondeu, modesto, que não tinha nenhum talento especial, mas tinha “curiosidade apaixonada". Curiosidade todos nós temos, curiosidade apaixonada, isto é, uma curiosidade intensa e obsessiva como uma paixão, só estará ao alcance de poucos. Não penso que tenhamos de despertar a “curiosidade apaixonada” nas crianças, porque muito poucas, quase nenhumas, virão a ser Einsteins. Basta que simplesmente  lhes despertemos a curiosidade. Ou melhor, uma vez que elas já vêm de nascença com curiosidade, que lha avivemos. Como? Julgo que se deve começar pela experimentação: as experiências a brincar são o prelúdio das experiências a  sério. É possível com materiais simples responder a perguntas simples. Por exemplo, pensando na flutuação de Arquimedes, podemos perguntar e verificar quais são os objectos que flutuam e os que afundam na água. Uma batata afunda, mas uma maçã já flutua. Escrevi, em parceria com colegas,  uma série de dez livros intitulada "Ciência  Brincar" na Bizâncio. Na Escola do Rómulo em Coimbra fazemos algumas dessas experiências para crianças de nove anos, que estão no quarto ano de escolaridade. O método da ciência consiste na observação, na experimentação (que é a observação controlada) e no raciocínio lógico. Experiências convenientemente escolhidas permitem uma iniciação no método. E o método é tudo. Há certas afirmações a respeito da Natureza que estão certas ao passo que há outras que estão erradas. É o método científico que as permite distinguir.

JR- Considera possível a aproximação entre a ciência e a literatura, nomeadamente a literatura Infantil e juvenil (sem que nenhuma se renda à outra)?

CF- A ciência, o nosso confronto com a Natureza, é uma dimensão humana. Pode e deve dialogar com outras dimensões humanas, como as artes, onde se inclui a literatura. Na arte tal como na ciência também se responde a questões colocadas pela mente, mas o método é evidentemente outro. A aproximação entre ciência e arte é possível porque ambas buscam sentido, ordem, a partir de informação desordenada. Se olharmos para a literatura portuguesa encontramos muitos exemplos de proximidade com a ciência. Logo numa das primeiras obras escritas em português, os “Colóquios dos Simples”, do médico Garcia da Orta, Luís de Camões deixou os seus primeiros versos impressos. O mesmo Camões, nos “Lusíadas”,  apresenta o sistema do mundo ptolemaico, assinala muitas plantas e descreve  fenómenos naturais como o fogo de Santelmo. Antes disso Gil Vicente tinha escrito o  “Auto dos Físicos”, onde são retratados os médicos da época. Bastante mais tarde, Bocage escreve sobre a primeira subida em balão efectuada em Portugal pelo italiano Vincenzo Lunardi, há 225 anos. Rómulo de Carvalho soube juntar de uma forma única ciência e literatura na sua poesia.  Muitos escritores, ao longo da história, tiveram formação científica-técnica: é o caso de Jorge de Sena, que foi engenheiro civil (nascido há cem anos), ou de António Lobo Antunes, que é médico. Também nas artes visuais se podem encontrar paralelismos notáveis com as ciências. No século XV, antes da Revolução Científica, foi a geometria que permitiu uma representarão tridimensional realista do mundo, ao proporcionar às técnicas da perspectiva. Além disso, há uma longa tradição de matematização da beleza, onde entra a chamada "razão dourada" ou “divina proporção”. Tal como na arte existe harmonia e quebra de harmonia, também na ciência há elementos estéticos: simetrias e quebras de simetria. Vendo bem, procuramos o belo por todo o lado. E o verdadeiro muitas vezes identifica-se com o belo. 

JR- O que é necessário fazer, em seu entender, para promover uma cultura científica entre os mais novos?

CF- Chamamos cultura científica à relação da ciência com outras actividades do ser humano: a ciência tem relações com a saúde, com a lei, com a filosofia, com a ética, com a lei, etc. Já falei da iniciação à ciência que pode ser a experimentação. Relacionada de perto com a experimentação deve ser valorizada a colocação de perguntas. Ora o questionamento permite imediatas ligações com outras actividades humanas. Nunca se deve aceitar sem critica as afirmações que chegam até nós. Citando de novo Einstein, “não podemos parar de fazer perguntas”. Ter cultura científica significa perguntar. Perguntar uma vez, outra e outra ainda.

JR- Aparece como coautor do livro “Entre Estrelas e Estrelinhas este Mundo anda às Voltinhas”, de José Fanha, Daniel Completo. Em que consistiu e como foi a sua participação neste projecto?

CF- O José Fanha e o Daniel Completo procuraram-me para eu colaborar num projecto que tinham de um livro de poemas sobre temas de ciência a musicar depois. Achei uma óptima forma de cultura cientifica para os mais novos. Fiz sugestões sobre os poemas, preparei um breve prefácio e, depois do livro pronto (que é acompanhado por um CD) temos ido a várias escola. O Daniel e o José tocam e cantam as canções eu faço duas coisas: uma e explicar o tema de cada canção e outro é, perto do final, responder a qualquer pergunta que os pequenos queiram colocar. E há perguntas muito curiosas… A perguntar se exercita a curiosidade.



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