quarta-feira, 7 de março de 2018

“UM CANCRO LEVOU A SENHORA”


Minha crónica no Público de hoje:


São tristes as recentes notícias de fecho de livrarias nos centros urbanos: a Leitura no Porto, a Pó dos Livros em Lisboa, a Miguel de Carvalho em Coimbra. São, como José Pacheco Pereira já assinalou (PÚBLICO, 3/3/2018), sintomas do alastramento do que ele chama “nova ignorância”. A dolorosa verdade é que cada vez se lê menos e que se lê cada vez pior. Entre os jovens, o que se lê são snapchats e legendas, mostrando que a escola não tem estado a cumprir o seu dever.

Em Coimbra existem circunstâncias particulares, que se juntam ao fenómeno do declínio das mentes que Lisboa e Porto também exibem. Ao contrário destas cidades que possuem centros históricos reabilitados e transbordantes de vida, com a ajuda não só do boom turístico recente mas também e desde há algum tempo de movimentos culturais dinamizados em boa parte pelas autarquias, Coimbra tem o seu centro histórico – a Baixa – praticamente morto. Não só o turismo está quase todo canalizado para a Universidade, como a Câmara Municipal não tem investido na reabilitação urbana nem numa política cultural que leve as pessoas ao centro. O livreiro Miguel Carvalho, em declarações à Lusa, percebeu bem o que lhe aconteceu: “ ‘Casei com uma senhora chamada Cultura, em Coimbra, durante 20 anos, mas um cancro levou a senhora e eu agora vou enterrá-la e vou para outro sítio’, sublinhou, constatando, para além de um ‘desprezo e desrespeito para com o centro histórico’, uma realidade de ‘anticultura’ em Coimbra.”

O declínio da Baixa tem sido gradual, mas acentuou-se dramaticamente nos últimos anos. Moro em Coimbra e, tal como os meus conterrâneos, é raro deslocar-me à Baixa por ser deprimente lá ir. Quem não acredite que faça um passeio como eu fiz no passado sábado de tarde, no qual só encontrei abertos dois ou três cafés (parei nesse oásis que ainda é o Santa Cruz) e duas ou três lojas de recordações (recordo-me delas pela negativa: como é possível que se venda tão atroz bugiganga?). A Baixa está mesmo em baixa: as lojas têm fechado dia após dia; as ruas estão degradadas e sujas; o casario está dilacerado por um grande tumor que é o buraco aberto para o Metro Mondego passar. Quando dizem que está tudo bem, os governantes da cidade ou estão a ser cínicos ou estão a revelar a sua incapacidade de ver a realidade que está diante dos olhos de todos. Falta-lhes mundo, não devem viajar, nem mesmo no território nacional onde há, para além de Lisboa e Porto, várias cidades onde dá gosto ir (Guimarães, por exemplo). A Coimbra ainda falta o básico: estações ferroviária e rodoviária funcionais, uma política de mobilidade inteligente, praças e parques cuidados, limpeza urbana, restauração moderna e lojas atraentes (naturalmente, há excepções), percursos convidativos.

Por seu lado, a cultura em Coimbra está tão doente como a malha urbana à beira rio. Assim como não há um plano de recuperação do centro histórico, também não há uma ideia directora na cultura. Não há uma estratégia cultural participada e mobilizadora. Alguns equipamentos como a Biblioteca Municipal estão anquilosados. E um equipamento recente como o Convento de S. Francisco não está bem aproveitado, permanecendo sem gestão autónoma e, por isso, sem uma programação a médio e longo prazo. Os grandes espectáculos não passam por lá e quem os quiser ver terá de ir, por exemplo, à Figueira da Foz, para onde a livraria de Miguel Carvalho se deslocalizou.

Há que reconhecer que a maleita coimbrã não é só camarária. Embora bastante mais activa do que a Câmara, a Universidade é também parte do problema. Será que na Universidade se lê e se dá a ler na medida suficiente? Será que a Universidade tem uma ideia cultural para si e para a cidade que ultrapasse os meros chavões do turismo de massas? Se a Universidade não se transformar mais do que aquilo que tem feito, se não conseguir uma reinvenção cultural que seja ao mesmo tempo uma reinvenção cívica, dificilmente Coimbra terá futuro. A Universidade tem de ser parte da solução. E, para isso, poderia preparar, em conjunto com a Câmara, uma candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027. Por que não reanimar a Baixa com cultura? Outros estão mais adiantados? Talvez. Mas Coimbra se acordar ainda vai a tempo.

4 comentários:

António Pedro Pereira disse...

Caro Prof. Fiolhais:
Além de Guimarães, que muito bem refere, sugiro-lhe que visite Braga, Viseu, Viana do Castelo, Castelo Branco, Belmonte, Óbidos, Idanha-a-Nova, que são bons exemplos de localidades (cidades e vilas) que saíram da mediania passada e, num espaço de 30 anos, entraram numa realidade bem diferente e muito interessante em diversos aspectos: reabilitação urbana; revalorização do espaço público; dinamismo cultural, etc.
Certamente que haverá outras.
Falo-lhe apenas das que conheci há 40 anos e tenho revisitado nos últimos anos.

Anónimo disse...

O preâmbulo do texto é apenas um alibi para um texto do pulhitico Fiolhais. Parece-me um texto pouco natura para o berloque rerum

Anónimo disse...

Quem nos garante que os bandos de turistas que nos últimos anos têm arribado aos portos de Lisboa e Porto, de repente, não levantem voo e deixem à mostra as ruínas, tão decadentes como as de Coimbra, que ainda são o verdadeiro motivo da atração.
A importância económica do setor turístico, num país depauperado como Portugal, está fora de discussão, mas se não construirmos a nossa casa com alicerces assentes na pedra sólida, à maneira dos judeus, não basta vendermos a imagem e o estado real de decadência a que chegamos para ficarmos ricos.
Para o desenvolvimento económico ser sustentável terá de assentar na pedra angular que seria uma nova industrialização de Portugal.
Se, teimosamente, persistirmos em trilhar o caminho que conduz à formação de autênticas turbas de professores mal preparados, a quem se pede que ensinem o mínimo possível do pouco que sabem, ou, por exemplo, a investir todo o pouco dinheiro que temos no futebol, nunca mais sairemos da cepa torta!

Anónimo disse...

Sr. Anónimo de 8 de março às 10:22,

O Professor Carlos Fiolhais é um grande animal político, que se move muito acima de álibis inventados por cabeças pequeninas de seres roidinhos de inveja!
Depois do trágico terramoto de 1755, o grande Marquês de Pombal reconstruiu - a régua e esquadro, e utilizando técnicas de construção anti-sísmica, como a célebre gaiola -, a belíssima Baixa de Lisboa que, ainda hoje, é um exemplo maior do que o espírito humano, quando bem iluminado, pode obrar.
Quem não consegue ver a semelhança entre o Marquês de Pombal do Século das Luzes, a braços com uma cidade de Lisboa destruída, e o Professor Carlos Fiolhais, apontando as mazelas que corroem a baixa coimbrã, tem de ser muito mesquinho!

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